10 Alguém morreu, não foi?
Esther chegou atrasada para a aula de Nadine.
Ela e Tiago foram dormir tarde e, por isso, Esther se atrasou para acordar e tomar café da manhã com Manu. Nadine estava concentrada na escrita de algumas fórmulas de dosagem no quadro, nem percebeu Esther entrando. A aula foi estranhamente normal, deram continuidade à poção de invisibilidade e trabalharam como se ninguém tivesse morrido na noite anterior. Esther focou no conteúdo para abafar o incômodo. Pelo que havia entendido, a poção era para esconder pequenas espinhas, manchas, até sobrancelhas. Uma poção que cobrisse o corpo inteiro exigia bem mais preparo do que aquilo, para a decepção geral.
Esther estava ansiosa para o final da aula, quando finalmente poderia pegar o computador e mostrar para Nadine os avanços na própria pesquisa. Antes do final da aula, porém, alguém bateu à porta. Esther ficou surpresa ao ver Cíntia, a diretora, pedir para falar com Nadine. A turma ficou em silêncio quando a professora seguiu para fora. O quadro estava lotado de anotações e instruções, então todos estavam bem ocupados.
Nadine ficou fora por uns dez minutos. A turma começou a cochichar, mas, antes que as especulações e conversas fossem longe demais, Nadine voltou para a sala. Ela parecia pálida e espantada, mãos coladas ao lado do corpo como se para evitar que tremessem. Esther soube na hora que havia algo errado.
— As aulas estão canceladas por hoje. Eu preciso que empacotem as ervas e guardem as poções no refrigerador. Depois disso, voltem para os dormitórios e esperem lá até que algum professor vá chamá-los — disse ela, numa seriedade inusual para Nadine. Esther conteve um calafrio, chocada demais com a interrupção súbita da aula. — Aos que não se alojam aqui, por favor, sigam até o pátio, a pedagoga estará lá para ligar para seus pais. Sigam direto para os alojamentos ou pátio principal, por favor. Sem pausas para banheiro ou qualquer coisa do gênero — completou ela.
Cochichos e conversas paralelas emergiram por toda a sala.
— Prof, o que aconteceu? — perguntou uma garota aos fundos da sala. Esther sabia que ela se chamava Ana, ou algo assim. Os outros alunos ficaram em silêncio, esperando pela resposta de Nadine.
— Vocês saberão tudo numa reunião durante a parte da tarde. Até lá, preciso que esperem nos alojamentos — pediu Nadine, agora recuperando a calma no tom de voz.
Ela provavelmente percebeu que precisava parecer calma e falar com firmeza, ou todos ali entrariam em pânico e a situação sairia do controle.
— Alguém morreu? — perguntou um garoto, Esther não identificou quem foi.
Nadine suspirou e se recostou no quadro branco.
— Pessoal, me desculpem, não estou autorizada a dar nenhuma informação agora, eu também não tenho todos os detalhes. Só preciso que vocês voltem para os alojamentos ou sigam para o pátio principal, tudo bem? Não é nenhuma emergência grave, ninguém aqui está em risco. São só medidas de segurança para que a investigação dos protetores não seja prejudicada.
Aquilo pareceu acalmar um pouco os alunos, porque todos começaram a organizar os materiais e sair da sala. Esther guardou os materiais e esperou até que todos tivessem saído para falar com Nadine.
— Mais alguém morreu, não foi? — perguntou Esther, mas acabou sendo mais uma afirmação do que uma pergunta.
Nadine suspirou.
— Esther...
— Alguém próximo do Ferraz? — perguntou Esther.
Mais um assassinato significava que as coisas estavam realmente sérias. Não era apenas um assassinato isolado, era um assassino em série que conseguia escapar de todas as câmeras e do sistema de seguranda da escola.
— O professor Samuel. Um dos alunos o encontrou morto no gramado que fica no caminho para o observatório do bosque, onde ele daria uma aula — disse Nadine, depois de um tempo em silêncio.
O tom de voz dela foi um pouco sombrio e incomodado, Esther engoliu a seco. Não tivera aulas com Samuel, mas o conhecia de vista. Será que ele havia sido responsável pela morte de outra pessoa?
Sabia que o caminho para o observatório era feito por uma trilha não muito longa, mas mesmo assim cercada pelo bosque. Seria fácil se esconder no meio das árvores, fácil puxá-lo para a vegetação e...
— Você acha que vão suspender as aulas? — Esther mordeu o lábio, preocupada enquanto olhava para Nadine.
A professora pressionou os lábios e se recostou no quadro, a mão sobre a barriga. Esther pensava que tudo aquilo devia ser difícil para ela. Todos os assassinatos na escola, a bebê, os burburinhos sobre a gravidez...
Nadine nunca pareceu se deixar afetar por tudo aquilo e, de alguma forma, continuava sendo extremamente competente em toda a sua vida profissional. Esther gostaria de perguntar qual era o segredo, porque tudo tinha desmoronado depois da morte de Gaia: ela tinha uma pilha de trabalhos atrasados e uma coleção de faltas em diversas matérias. Estava quase reprovando em duas disciplinas por causa disso.
— Provavelmente, Cintia está considerando isso. As coisas ficaram complicadas depois das mortes na comemoração de Ostara, muitos alunos pediram transferência — disse Nadine, com os olhos castanhos cheios de preocupação pousados sobre Esther. — Você está bem?
Esther ese sentia estranhamente enjoada e ansiosa, as mãos suadas por causa do nervosismo.
— É só que... o meu projeto — confessou Esther. Não queria falar sobre isso agora, mas não tinha escolha.
Não tinha como continuar a pesquisa sem ter acesso ao laboratório. Suspensão das aulas significava perder o acesso ao laboratório. E, caso as aulas ficassem suspensas por algumas semanas, era provável que Nadine se afastasse antes disso por causa da bebê.
Os lábios de Nadine se entreabriram numa expressão de compreensão.
— Eu vou ver se há mais alguém que possa orientar o seu trabalho, tudo bem? Espero que possamos terminá-lo juntas, mas, caso isso não aconteça, podemos pensar em alternativas — prometeu Nadine, e a calma e a certeza na voz dela pouco confortaram Esther. — Mas esse projeto é seu, Esther. Seu e de mais ninguém, não importa se o Yuri orientou ou não. Tenho certeza de que abrirá muitas portas para você.
Esther a agradeceu pelo encorajamento, depois seguiu para a porta para voltar ao dormitório. Precisava falar com Manu e Tiago, e também com o próprio pai sobre a possibilidade de suspensão das aulas, porque nesse caso precisaria voltar para casa e empacotar tudo no dormitório.
Antes que pudesse sair porta afora, Esther se virou para Nadine, que estava distraída enquanto colocava os materiais dentro da bolsa.
— Prof? — Esther chamou suavemente, recostando-se no batente da porta. — Como você faz isso? Não... desabar, não falhar nunca?
Nadine sorriu suavemente. Ela tinha aquela expressão madura e calma que Esther tanto admirava, expressão de quem sabia exatamente o que fazer.
— Acho que você vai perceber que a vida adulta não dá muita escolha, Esther — disse Nadine, enfiando o estojo de marcadores para quadro branco dentro da bolsa. — E tudo bem desabar e falhar algumas vezes, é a coisa mais saudável a se fazer — complementou.
Mas uma vez Esther a agradeceu e se despediu dela com o peito mais leve.
•••
A sala dos professores estava um caos.
Todos falavam ao mesmo tempo, professores se organizavam em grupinhos, tagarelando. Cintia ainda não havia chegado, provavelmente estava falando com os protetores sobre as próximas medidas. Nadine ficou aos fundos do lugar, sem ânimo para discutir sobre o desenrolar dos assassinatos em série e desejando voltar para casa. Estava extremamente cansada. E preocupada, e enjoada, e com vontade de chorar.
— Ei — sussurrou uma voz, e Nadine se virou para ver Murilo se recostando ao seu lado na parede.
Nadine não teve tempo de fazer perguntas para ele, pois Cíntia surgiu do outro lado da sala dos professores e pigarrou para chamar atenção. Elegante e bem arrumada, usava saia preta justa e camisa social branca, a pele escura tinha um brilho hipnotizante contra a enorme janela que se abria atrás dela. Todos ficaram em silêncio para ouvir o pronunciamento.
— Como a maioria de vocês já sabe, mais uma morte aconteceu em horário de aula. Eu hesitei muito ao tomar essa decisão, mas realmente não tive outra escolha. Com a morte do professor Ferraz, meu celular e meu e-mail ficaram lotados com mensagens de pais preocupados pois, se nem os professores estão seguros, os alunos estão ainda mais vulneráveis — admitiu ela, num tom de voz claro e forte. Cintia tinha esse poder. Uma oratória que chamava a atenção de todos, que passava segurança e inspirava confiança nela. — A questão é que os pais estão certos. Depois de uma conversa com o chefe dos protetores, decidimos que o melhor seria suspender as aulas por duas semanas. Os alunos serão enviados de volta para casa e a escola evacuada durante o período de investigação. Na próxima sexta-feira, haverá um memorial coletivo para todas as vítimas. Por enquanto, isso é tudo que eu posso informar. O andamento das investigações determinará se as aulas continuarão suspensas ou não — concluiu.
Um aglomerado de conversas nervosas surgiu depois disso. Nadine suspirou aliviada quando Murilo pegou a mão dela, sussurrando de leve.
— Quer sair daqui? Está um pouco lotado.
Nadine concordou com a cabeça. O falatório constante a deixava incomodada, a bebê estava se agitando demais e tornando tudo mais cansativo. Mal conseguia respirar. Murilo também parecia ansioso para sair do meio da movimentação da sala dos professores, então os dois foram para o corredor ao lado, o mesmo em que Ricardo levou Nadine para beber água mais cedo naquela manhã.
— E então? Samuel estava envolvido em alguma morte? — perguntou Nadine, virando-se para Murilo.
Nadine não estava preocupada em parecer suspeita por causa do desentendimento com Samuel. Havia câmeras na entrada do banheiro, também tinha o álibi de trinta alunos em sala de aula.
Nadine também achava que uma gravidez tão avançada era mais do que suficiente para não levantar suspeitas. Jamais conseguiria esfaquear alguém sem vomitar até as tripas. Também não teria energia e nem agilidade suficiente para fazer isso e escapar em plena quinta-feira de manhã.
— O depoimento dele foi essencial para que Ferraz fosse inocentado no julgamento contra Renata, tem algumas denúncias de assédio, mas nada além disso. Reviramos o arquivo dele na noite passada — disse Murilo, o tom estranhamente calmo para quem falava de um assunto tão pesado. Nadine imaginou que ele devia estar acostumado a isso.
Ela franziu as sobrancelhas, pensativa com as palavras dele.
— Ou o assassino o considera responsável pela morte da Renata, ou está fugindo dos padrões.
Aquilo fez com que milhares de dúvidas surgissem na mente de Nadine.
— Talvez o assassino tenha uma ligação mais profunda com essa menina que se suicidou depois do julgamento. Ela tinha irmãos? Primos? Certamente é alguém que estuda ou trabalha aqui — sugeriu Nadine, porque tudo aquilo parecia obra de alguém ressentido e querendo vingança. Não conseguia parar de pensar no burburinho entre os alunos de que havia uma pichação chamando Ferraz de porco chauvinista.
Ou talvez Nadine tivesse visto filmes demais. Geralmente não faria comentários tão diretos assim, mas a morte de Samuel havia conseguido impressioná-la.
Nadine analisou o corredor e se certificou de que estavam sozinhos ali. Ninguém além dos dois, o corredor permanecia calmo e deserto, a folhagem das plantas nos vasos de cerâmica balançava levemente com a brisa das janelas enormes. O sol iluminava o lugar como se o mundo não estivesse desabando dentro da sala dos professores.
— Eu acho que não posso dizer nada porque as informações da investigação são confidenciais — disse Murilo, com uma risada baixa. A expressão dele parecia um pouco sombria demais, como se estivesse conectando o comentário dela às informações que ela não tinha. — Mas definitivamente vamos checar se a garota tinha algum parente ou família que está trabalhando ou matriculado na escola.
Antes que Nadine pudesse responder, ouviram um pigarro no final do corredor.
— Me desculpem, eu estava no banheiro e depois todo mundo sumiu.
Era um menino de cabelos castanhos e pele clara, tinha a mochila pendurada num ombro e usava a camiseta da atlética da escola. Nadina demorou um pouco para se lembrar do nome dele, apesar de ter certeza de já ter dado aula para o garoto anos atrás. Ele vivia sempre com Esther nas festas e no intervalo. Tiago.
— Eu te acompanho para o seu dormitório — disse Murilo, depois se virou para Nadine. — Te encontro depois?
Nadine assentiu com a cabeça, depois observou enquanto os dois dobravam o corredor e sumiam de vista ao longo do pátio. Há quanto tempo ele ouvia a conversa? Nadine não se lembrava de ter olhado na direção em que o garoto apareceu enquanto conversavam.
Antes que pudesse pensar mais sobre isso, Nadine viu Cíntia sair da sala dos professores pela porta que ficava ao final do corredor. Ela pegou um cigarro do bolso e um isqueiro, já estava tragando quando Nadine se aproximou.
— Está tudo bem? — perguntou.
Sabia que Cíntia só fumava quando estava no limite do estresse. Ela era uns três anos mais velha que Nadine, tinha cabelos curtos e sempre extremamente arrumados, usava terninhos bem alinhados e costurados que a faziam parecer uma executiva de grande empresa.
— Deixei que o chefe dos protetores tomasse o controle da situação. A maioria não gostou da suspensão das aulas — disse ela, virando o rosto para evitar soprar fumaça na direção de Nadine.
Uma das coisas que gostava em Cítia era que ela não parecia ter esse instinto de superproteção que as pessoas tinham perto de Nadine. Ainda assim, Cintia foi uma das pessoas que mais a apoiaram durante a gravidez, permitindo que Nadine entregasse quantos atestados precisasse e facilitando tudo para que Nadine não saísse prejudicada pelas aulas perdidas.
— Provavelmente estão preocupados com o salário — comentou Nadine, dando de ombros.
Nadine não queria nem pensar na parte burocrática das duas semanas de suspensão, muito menos no dinheiro. Preferia não se estressar com isso e aproveitar esse tempo para resolver as últimas pendências para o nascimento da bebê.
— Isso é a menor das preocupações. — Cíntia deslizou a mão livre de cigarro pelos cabelos curtos, enrolando as mechas crespas com um dos dedos. Uma nuvem de fumaça escapou por seus lábios antes que pudesse falar de novo. — Concordei em suspender as aulas antes que a bomba estourasse nas nossas mãos. Como você acha que os pais vão reagir quando a morte de um professor em horário de aula for noticiada? Porque eu tenho certeza de que os protestos sairão do meu e-mail direto para a entrada da escola.
Nadine mordeu o lábio e tentou não estremecer. Não sabia que as coisas estavam tão tensas com os pais dos alunos, mas era de se esperar. Grande parte dos alunos morava no colégio durante o semestre, como poderiam confiar os filhos aos funcionários da escola num cenário desses?
— Se você quiser um conselho de amiga, Nadine — continuou Cíntia, num tom obscuro e sério demais para o padrão dela. Ela apagou a ponta do cigarro num canto da parede, logo em seguida o jogou numa lixeira próxima —, aproveita a suspensão e adianta a licença maternidade, também dê uma olhada em novas vagas de emprego, porque teremos sorte se tivermos dez alunos aqui no próximo semestre.
Depois disso, Cíntia abriu a porta e voltou para a sala dos professores. Nadine conseguiu ouvir o burburinho de indignação e discussão generalizada.
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