Capítulo 1
Faz uma semana que tia Marlene morreu e a ficha começou a cair junto com as contas que começaram a chegar. Eu não tinha noção de que estávamos prestes a sermos despejadas de casa, pois ela nunca me contava sobre os problemas. Quando tentava resolver situações como essa, minha tia sempre ficava meio calada, apreensiva, e quando eu perguntava se estava tudo bem, ela só dizia:
— Vou dar um jeito, querida. Não se preocupe.
E ela dava mesmo um jeito.
Tia Marlene se formou em literatura na faculdade, fez graduação em pedagogia, ensinou em escolas de outras cidades por um tempo, mas voltou para cá quando minha mãe ficou doente. Ela deixou tudo para trás para cuidar da irmã mais nova e da sua sobrinha pequena.
Depois que mamãe se foi, minha tia tentou alguns empregos em Constantine. Professora assistente, substituta, bibliotecária... ela fazia de tudo e assim conseguimos ter uma vida tranquila até há alguns meses. Mas depois que a última escola em que trabalhou decidiu que estava na hora de ter professores mais novos e antenados a atualidade, eles fizeram um corte com os empregados mais antigos e demitiram todos. Tia Marlene foi um deles.
Ela até que recebeu um bom dinheiro com a demissão, sei disso, mas metade foi para as contas atrasadas, outra parte para a manutenção do túmulo da mamãe e o resto para despesas gerais.
Realmente queria poder ter sido mais útil quanto a nossa situação financeira. Trabalho desde que terminei a escola, já que não consegui ir para a faculdade. Minha mãe até tentou guardar um dinheiro para mim, mas ela morreu antes de conseguir juntar o bastante e eu nunca pude contar com o babaca do meu pai.
Só o vi uma vez. Quando tinha 10 anos. Ele veio me visitar e trouxe um bichinho de pelúcia. Teria sido melhor me dar uma nota de cem.
Vinha pulando de emprego em emprego tentando ganhar o bastante para ajudar nas despesas e quem sabe um dia sair daqui para enfim fazer mesmo a bendita faculdade, mas agora que Tia Marlene morreu, as coisas estão diferentes.
Recebemos a carta de despejo e o pessoal do banco ligou mais cedo. Tia Marlene tinha feito uns empréstimos depois que foi demitida e claro, não deu tempo de pagar. Ela morreu antes disso. E agora o banco quer tomar a casa para quitar a dívida que eu não tenho como pagar.
Eu sei que poderia só entregar a casa e me livrar disso, mas teria que viver embaixo da ponte ou pedir abrigo a alguém. No caso, Theo e o marido dele.
Por mais que os dois sejam ótimos (sério mesmo, minha tia os adorava), não tenho a menor intenção de pedir favores como esse. Podem me chamar de orgulhosa ou qualquer outra coisa, mas odeio a sensação de estar sendo um peso para alguém.
Então só tenho mais duas semanas para pagar a dívida ou entregar a casa. Duas semanas para resolver essa merda de situação.
Passo pela porta da frente e acendo a luz da sala. Tiro os tênis e a blusa da lanchonete onde trabalho, a jogando no chão. Está toda suja de milk-shake que um moleque derramou em cima de mim quando passou correndo sem olhar por onde anda.
Clientes. Trabalhar com gente não é para qualquer um. Seria melhor tentar um emprego em um estábulo ou em uma fazenda na próxima vez. Lidar com galinhas e cavalos deve ser bem mais fácil.
Somente de calça jeans e sutiã, vou para o sofá de couro marrom desgastado. Deito de costas e encaro o tento branco. Aquela rachadura está ali desde o ano passado, nunca mandamos consertar.
— Droga, Tia Marlene. — murmuro sozinha. — Você deveria ter me avisado que estava com dívidas.
Esfrego o rosto com as mãos e fecho os olhos tentando imaginar uma realidade onde nada disso está acontecendo.
Nem percebo quando pego no sono, mas desperto no dia seguinte com o sol passando por entre uma fresta da janela enquanto o telefone da sala toca incessantemente.
O som do toque parece ficar cada vez mais alto e há uma dor de cabeça que quase me impede de levantar. Nem quero imaginar como seriam minhas manhãs se eu fosse viciada em álcool
Ainda com as roupas de ontem, sutiã e calça jeans, sigo até a mesinha onde o telefone branco repousa no suporte e atendo a ligação antes que o toque se torne insuportável.
— Alô?
— Srta. Coline?
— Quem está falando? — com o telefone contra uma das orelhas, me arrasto até a cozinha.
— Aqui é Hilda. Nos falamos há uns dias. Por e-mail. — a voz da mulher do outro lado parece monótona. — Queria saber se ainda está disponível.
— Disponível para o que? — abro a geladeira e pego uma garrafa grande de suco de laranja.
— Para o emprego. — quase posso imaginar essa mulher que não conheço franzindo as sobrancelhas. — O emprego de tutora particular.
— Hum... — bebo suco direto da garrafa.
Tia Marlene deve ter se candidatado a alguma vaga antes de falecer. Ela estava sempre em busca de algo para nos salvar.
— Se estiver disponível, o emprego é seu. Moradia e comida são benefícios inclusos, além de 400 por semana, domingos livres e um plano de saúde básico.
— Plano de saúde?
— Isso. Conforme no e-mail. Srta. Coline, por acaso leu meus últimos e-mails?
— Olha... Hilda, não é?
— Sim.
— Então, Hilda... — troco o telefone de uma orelha para outra. — Acho que está havendo uma confusão aqui.
— Srta. Coline, se não está disponível para a vaga, acredito que outra pessoa possa estar. — ela solta uma longa respiração. — Tivemos outras candidatas, mas por algum motivo minha patroa gostou de você.
Claro que gostou. O currículo de tia Marlene era muito bom, com diversas experiências fora da cidade. Ela teria sido ainda maior se nunca tivesse voltado para esse lugar.
Vai ser decepcionante contar que minha tia não está mais aqui para assumir o trabalho. Ela teria adorado uma oportunidade como essa. Um emprego assim lhe daria toda estabilidade, ela não teria mais dívidas e nem ao menos precisaria se preocupar comigo.
Incrível como certas coisas só acontecem na hora errada.
— Alô? Ainda está na linha?
— Sim, estou. — sento na cadeira ao lado da pequena mesa da cozinha. — De quanto é mesmo o salário que você falou?
— 400 por semana.
É praticamente o dobro do que recebo na lanchonete e nenhum outro lugar em Constantine pagaria isso por semana.
Ah, não. Não gosto nada do pensamento que está passando pela minha cabeça agora. Isso seria muito escroto da minha parte, além de ser uma completa maluquice. Nunca daria certo. Tia Marlene está morta, o seu obituário saiu no jornal, pelo amor de Deus!
Mas ganhar um bom salário e ainda ter onde morar. Nossa, ia ser muito bom.
— Srta. Coline? Está tudo bem?
Fixo o olhar na mesa e vejo as contas empilhadas, a carta de despejo no topo como se pudesse zombar de mim.
Não acredito no que estou prestes a fazer, por isso fecho os olhos e mal escuto o som da minha voz quando digo:
— Marlene. Me chame de Marlene. — aperto os lábios. — Quando posso começar?
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