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O terraço

 LORENA

Dois dias depois, eu acabava de fechar o forno quando a campainha tocou. Meu coração bateu forte porque eu sabia exatamente quem era.

─ Eu abro! ─ Meu pai gritou, vindo lá do seu quarto.

Eles moravam num apartamento de dois quartos em um prédio antigo, por isso os cômodos eram enormes e havia todo um charme da arquitetura dos anos 50, com pés direitos altos, pisos de taco de madeira e nada de suítes, apenas banheiro social, com direito a bidé. Meu pai era arquiteto e fizera verdadeiro milagre em seu apartamento, e por gostar tanto da "arquitetura Moderna", comprei um apartamento em cima do deles e também fiz minhas reformas.

─ Olá!

Olhei por sobre o ombro, enquanto lavava as mãos. Apoiado no marco da porta, ele usava uma camisa de malha preta, de mangas compridas e calça jeans. Os cabelos estavam bagunçados, claro, e desejei mergulhar os dedos ali.

─ Olá. A lasanha está quase pronta.

─ você quem fez?

Ele entrou na cozinha e me deu um beijo na bochecha.

─ Claro que não. Foi a mamãe.

─ Lory... eu estava pensando... ─ E se aproximou, cúmplice, coçando o queixo. ─ Depois do jantar, deixaria eu matar a saudade do seu terraço?

Eu não esperava por isso e sorri. O meu andar era o último e nas minhas reformas, aproveitei e fiz um terraço com um jardim muito agradável. Não sabia que ele gostava tanto de lá.

─ Claro, Tutie. Podemos tomar um vinho, enquanto falamos da minha dança indecente, o que acha?

Ele ergueu as duas sobrancelhas, surpreso.

─ Cara, você ainda está irritada com isso?

Larguei o pano de prato sobre a pia e me aproximei, alisando a camisa e seu peito, enquanto encarava seus olhos perfeitos.

─ Estou brincando com você, bobo. Não já conversamos? Então...

Ele estreitou os olhos para mim e me abraçou, beijando minha testa.

─ Mas você não perde a oportunidade, né? Ok, baixei a guarda e você me pegou. A próxima é minha.

Sorri e me veio um impulso violento de beijar sua boca, ali tão próxima.

─ Ei, vocês dois... ─ Minha mãe colocou a cabeça para dentro da cozinha e nos afastamos imediatamente. ─ Wilson está todo atrapalhado com o som. Alguém pode ajudá-lo?

─ Eu vou! ─ Arthur se ofereceu. ─ Antes que Lorena ache de colocar uma Kizomba!

Ergui o pé e chutei de leve seu traseiro, antes que ele deixasse a cozinha. Minha mãe o acompanhou e eu acabei encostando o quadril na pia e me perdendo em delírios, com um sorriso ingênuo nos lábios.

Seria tão perfeito se estivéssemos juntos. Tínhamos nossos pais à favor, nossas famílias interligadas, conhecíamos demais um ao outro e, ninguém iria me dizer que era mentira... tínhamos a tal da química.

─ Vem, Lory! Sei mexer nisso aqui não! ─ Arthur gritou e eu corri ao seu chamado.

Jantamos em um clima maravilhoso de boas lembranças, piadas e ternura. Arthur comeu até se fartar, e quase duas horas depois, chegávamos ao meu terraço, carregando duas taças e uma garrafa de vinho branco.

Arthur havia nos contado, durante o jantar, como fora sua vida na Mauritânia, um país de cultura árabe/mulçumana, com muita pobreza e restrições. Fiquei imensamente orgulhosa do trabalho que o Arthur desenvolveu ali. Ele é um cara incrível, competente e muito sério com sua profissão. De todas as pessoas que já havia conhecido na vida, ninguém se comparava a ele, em coração, em lealdade e honestidade. Tudo o que nos contou, sobre salvar vidas e ajudar o próximo, só me fez ter ainda mais orgulho do seu caráter. E para a harmonia completa do jantar, ele pouco havia citado sua namorada. Eu agradeci, silenciosamente.

Sentamos nas espreguiçadeiras e enquanto ele nos servia de vinho, eu observava meu celular. Lembrava do Daniel, o gatinho que havia conhecido no aeroporto. Hoje à tarde ele havia me ligado e tivemos uma conversa super legal, e agora, buscando seu número, vejo que o contato sumiu.

─ O que foi, Lory? ─ Perguntou, servindo o vinho para nós dois.

─ O telefone do Daniel... Não encontro. ─ Eu revirava a agenda, supondo que, talvez, tenha salvo com outro... Não, salvei como "Daniel aeroporto", estou certa disso.

─ Aquele gaiato do aeroporto? ─ Entortei a boca para o adjetivo inapropriado, mas nada disse, continuei buscando o contato. ─ Deveria cuidar melhor do seu celular, Lory... Esses aparelhos de hoje em dia...

O tom irônico de Arthur Cabral me era demais familiar, mas não... Ele não seria capaz. Todavia...

─ Arthur, você mexeu em meu celular? você apagou...

─ Eu?! Como, se nem sei a senha?! ─ Ele ria, cínico, e fiquei constrangida porque, se ele havia apagado o número, era porque sabia que a senha do meu celular era o seu aniversário.

Arthur estendeu uma taça para mim e decidi esquecer aquele incidente que, a esta altura, nem tinha importância. Saboreei o vinho gelado.

─ Delicioso, não?

Assenti e voltei a me recostar.

─ Lembra o dia da sua formatura?

Eu lembrava, claramente. Ele estava namorando e havia levado a garota com ele. Por isso, não havia dançado comigo, como havíamos combinado. Também não tive coragem de lhe cobrar nada.

─ Claro que lembro. ─ respondi, buscando manter a voz amena.

─ Eu preciso confessar... Queria ter dançado com você. Me perdoa por isso?

Virei a cabeça e fitei seu perfil.

─ Por que não dançou?

Ele apertou os lábios, um contra o outro, fazendo-os quase sumir.

─ Porque estava com a Rafaela e ela morria de ciúmes de você. Não quis provocá-la.

Eu ri, mais de raiva do que de graça.

─ Ciúmes de mim?!

─ Pois é. ─ Ele riu e eu quis saber o que achava disso.

─ Por que me diz isso agora, depois de tanto tempo? E com que fundamento ela nutria esse ciúme?

Ele ponderou, enquanto bebia seu vinho.

─ Não sei. Apenas quis falar. ─ Bebeu mais um gole, lentamente ─ Ela cismava que eu e você tínhamos um lance. Vê se pode! Por mais que eu negasse, ela dizia que "não botava a mão no fogo" como a gente tinha um caso.

Foi difícil engolir. Pensei em dizer que a garota tinha razão, porque éramos muito próximos mesmo, mas fiquei com medo de que isso o fizesse se afastar de mim. Também pensei em dizer que era uma grande bobagem, que não tinha lógica, mas isso também era uma faca de dois gumes e poderia enterrar de vez qualquer possibilidade de nós dois. Por tanto, fiquei calada. A vida com o Arthur sempre fora assim: cheia de riscos.

─ É engraçado, não é? ─ Ele falava com os olhos fixos no céu.

─ O quê?

─ Uma amizade sincera como a nossa é rara.

Pensei sobre aquilo, mas não cheguei a lugar algum.

─ O que quer dizer com isso?

─ Uma amizade entre um homem e uma mulher, sem sexo, sem envolvimento. É raro. Acho legal.

Olhei para o céu e respirei fundo, sentindo as lágrimas arderem por trás das pálpebras.

─ É sim. ─ balbuciei e ele ficou mudo.

─ Lory?

─ Oi. ─ Eu havia fechado os olhos, me concentrando em afogar a decepção, mas estava bem acordada.

Arthur virou-se na espreguiçadeira, deitando de lado, de frente para mim.

─ Senti sua falta, pequena. ─ Pelo canto do olho o via passar a mão pela barba clara e curta. ─ De hoje em diante, vou me esforçar para estar sempre que possível com vocês... Eu, você e o Adriano. Somos uma família.

Eu não queria ouvir. Não queria ouvi-lo dizer mais coisas que me machucariam. Mesmo assim, virei o rosto para fitá-lo.

─ Senti sua falta também. ─ Tínhamos conotações diferentes. Será que havia percebido? Achei que talvez sim, pois fechou os olhos momentaneamente. Assim queria crer.

─ você... você é especial para mim e eu jamais pediria algo assim para qualquer outra pessoa. ─ Comecei a orar, internamente, porque a minha intuição estava gritando. Ele abriu os olhos e me encarou. ─ Lory, Mônica chegará no final de semana... Queria que fosse para ela a mesma pessoa que é para mim.

Voltei a fitar o céu porque não suportava olhá-lo. Arthur era a melhor pessoa que eu conhecia e ele jamais me pediria isso se imaginasse que eu o amava como a um homem. Será que era tão cego? Ou simplesmente não queria ver? Ou será que me testava?

─ O que isso significa, exatamente? ─ Virei a cabeça e olhei para ele.

─ Que sejam amigas. Que a ajude na adaptação por aqui.

Respirei fundo, ainda mais perturbada do que antes.

─ Tudo bem. Vou tentar. ─ disse, voltando a mirar o céu escuro, mas cheio de pontos luminosos.

─ Tentar?

Eu estava magoada.

─ Sou ocupada, Arthur. Tenho trabalho, especialização, projetos...

─ E a dança, não é?

Inevitavelmente, o mirei irritada, mas ele sorriu e me desarmou.

─ você é um besta mesmo!

Ele riu, colocou o sua taça no chão e saltou da sua espreguiçadeira para a minha, me empurrando e colando seu corpo ao lado do meu. Enrijeci e me encolhi. Seu rosto estava tão próximo, que seu hálito gostoso, misturado com o álcool, batia em minha bochecha.

─ Adoro abusar você, pequeno demônio!

Empurrei ele e quase caiu. Eu queria distância, queria que saísse dali, que me deixasse em paz, que voltasse ao raio que o parta!

─ Odeio que me abuse.

─ Odeia nada! ─ E passou sua perna sobre a minha, me prendendo. ─ você também gosta de me abusar.

Ele tentou me fazer cócegas, mas bati em sua mão e virei o rosto para ele. Se me movesse meio centímetro para a frente, o beijaria.

─ Escute bem, Arthur... Estou há quinze dias sem beijar ninguém. Se não se afastar agora, meus hormônios falarão mais alto do que a nossa amizade e não responderei por mim. Cai fora!

Ele me olhou sério e então, seus olhos desceram para a minha boca, logo depois ergueu seu braço, em rendição, e levantou-se, ficando sentado ao meu lado.

─ O caso é sério, hein? Preciso arranjar um namorado para você, garota.

Eu olhava a sua cara cínica, com ar de riso para mim e, juro por Deus que quis jogar o vinho nele. Me levantei, empurrando-o para que me desse passagem.

─ Já curtiu meu terraço, agora se manda. Enquanto não conseguir um cara competente para me fazer gozar como louca, quero você bem longe de mim. ─ E já da balaustrada, virei para ele e falei com ironia, mas duvido que ele tenha percebido isso. ─ você é meu irmãozinho, Arthur, mas tem um pau, e por nada no mundo quero estragar nossa linda fraternidade com um incesto.

Ele me olhava, paralisado, então, comecei a rir, desfazendo a tensão no ar.

─ Anda, cretino! Estou morta e amanhã cedo tenho uma reunião.

Ele levantou sorrindo, pegou a taça no chão e me entregou, enquanto estalava um beijo em minha bochecha.

─ Tchau, desesperada. Minha missão agora é te conseguir um namorado.

Ele caminhava todo sexy para a porta.

─ Não quero um namorado, Arthur, quero um cara que me coma bem, só isso.

Ele ergueu a mão com o dedo médio em riste, mas sequer olhou para trás. Ri com vontade.

─ Eu sei o caminho da saída, pequeno demônio. Boa noite!

Os dias seguintes passaram rápido e não voltamos a nos encontrar, embora nos falássemos diariamente. Estive ocupada com a especialização, com o acompanhamento de um projeto em robótica e mais uma dúzia de problemas pessoais.

Foi no sábado, exatos sete dias após a sua chegada, meu telefone tocou como o grunhido de um corvo, alertando a má sorte.

─ Fala, Tutie. ─ Apenas eu o chamava assim.

─ Lory, tudo bem? Olha, a Mônica acaba de chegar e vamos fazer uma festinha hoje à noite. Coisa simples, só os mais chegados. você vem, né?

Merda! Merda, merda!

─ Ainnn... Eu não sei, Arthur. Tenho que estudar.

Ele ficou calado por algum tempo, eu apenas aguardei.

─ Lory... Eu gostaria que viesse, mas se está ocupada... Entendo.

Sua voz estava pesada, notei. Parecia triste, desanimado, algo assim. Sentei na cama e mergulhei a mão nos cabelos, buscando uma solução.

─ Tutie, não estou me furtando a pagiá-la, certo? Não é isso. Apenas não poderei hoje.

─ Eu sei que não, pequena. É que também... Sei lá, tem dias que não nos vemos. Estive aí anteontem e você não estava...

─ Eu soube. Sinto muito. Estava na casa de uma amiga.

─ Pois é... Bem, se puder vir... Será legal.

─ Olha, não prometo nada. Vou começar a estudar agora, se eu conseguir terminar a tempo, apareço.

Eu já sabia que não terminaria. Não tinha a menor vontade de conhecer a Mônica.

─ Se precisar, me fala e vou te buscar.

─ Não se faz necessário. Divirtam-se.

Não esperei resposta e desliguei. Deixei o celular sobre o colchão e mergulhei as duas mãos nos cabelos. Pronto, agora meu tempo com Arthur estava contado e o melhor era eu tentar esquecê-lo de uma vez.

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