II
É nosso primeiro encontro, e estamos no Quo Vadis, um dos melhores restaurantes de Londres. Thessalia está sentada à minha frente, com os cotovelos apoiados na mesa e as mãos cruzadas sob o queixo. Usa um magnífico lenço circulando a cabeça, grandes brincos que chocalham ao mais simples movimento, e uma sombra que deixa ainda mais misteriosos seus olhos de mel. Está mais linda do que jamais a vi.
Não me custou muito convidá-la para sair. Naquele dia no St. Mary, ficamos conversando durante o que pareceram horas à calçada do hospital; só paramos quando Ludovico e Emilia reapareceram, minha irmã me repreendendo por não ter entrado para ver nosso pai. Ainda assim, só me despedi de Thessalia quando obtive dela a promessa deste encontro.
Agora que aqui jazemos, contudo, estou sem palavras. Não sei se é a beleza excepcional dela que me intimida, ou se é a formalidade desse momento. O fato é que, aparentemente, perdi a capacidade de iniciar uma conversa.
- Você está muito linda! – digo, num tom vacilante.
- Obrigada, Sr. Keller.
Ficamos outros minutos em silêncio. O sol da tarde inunda o ambiente e, ao fundo, um tenor canta a alegre Tiritomba.
- Então... Você vive num acampamento? – pergunto, tentando puxar assunto. Mas me arrependo. – Perdoe-me se a ofendo! É que, segundo dizem, o povo cigano vive...
-...em acampamentos – ela completa, divertida. – Sim, já vivi em alguns. Hoje estou adaptada à sociedade.
Sorrio, aliviado por não ter ofendido. A conversa morre novamente, e não sei o que dizer.
"Bom Deus, não foi tão difícil assim no St. Mary!".
- Parece que estamos sem assunto – diz Thessalia, de um jeito descontraído.
- Desculpe-me! É que estou tão encantado com sua beleza que me fugiram todas as palavras.
- Oh! Se eu fosse branca estaria enrubescida agora!
Ficamos nos olhando por um longo tempo. Sinto-me ser engolido por aqueles olhos de mel, e começo a viajar nas curvas daqueles lábios vermelhos... Que sabor terão?
- Já sei do que podemos falar – Thessalia se inclina ainda mais sobre a mesa, de uma forma que uma dama britânica jamais faria.
- Falaremos sobre o que você quiser, Srta. Thessalia.
- Tragédias pessoais – seus olhos ganham nuances misteriosas. – Falaremos sobre tragédias.
- Um tema muito interessante – fico admirado. – Mas por que ele?
- Porque nada une melhor duas pessoas do que compartilhar tragédias. Dividir um drama é como doar um pouco de sua alma ao outro.
Fico maravilhado com a lógica daquelas palavras. Apoio meus cotovelos na mesa e aproximo meu rosto do de Thessalia, de um jeito que um cavalheiro britânico jamais faria.
- Isso faz todo sentido, senhorita!
- Pois então comecemos! – ela diz, excitada. – Todos têm uma tragédia a contar. Qual é a sua?
Reflito por alguns instantes.
- Minha maior tragédia aconteceu durante a infância. Em 1939, a Segunda Guerra estourou e, em 1940, os alemães começaram a bombardear Londres. Uma das bombas matou meus pais. Eu tinha dois anos.
- Sinto muito, Sr. Keller! – o sorriso de Thessalia desvanece.
- Obrigado. Eu devo tê-los amado muito, imagino, mas hoje sequer lembro seus rostos.
- Mas não compreendo. Seu pai não está vivo? No hospital?
- Sim, o pai que me criou desde meus dois anos. De sangue, o velho Wagner é apenas meu tio. Aos meus seis anos, todavia, até mesmo esse pai foi tirado de mim. Em 1944, ele foi convocado para a campanha na Alemanha e teve que partir.
Thessalia me ouve com o rosto tenso. Naquele instante, sinto que estamos realmente nos conectando. Estou desnudando minha alma para ela.
- Felizmente, a guerra acabou no ano seguinte e meu pai retornou vivo – digo, mais relaxado. – A saúde permanentemente danificada, mas vivo. E eu, já com sete, ganhava uma irmã. Esta sim a maior de todas as tragédias – concluo.
O corpo de Thessalia sacode, o tilintar dos brincos se mesclando ao som do riso:
- Não fale assim de sua irmã!
- Oh, não se engane sobre ela, Emilia é terrível. – Debruço-me um pouco mais sobre a mesa, aproximando meu rosto do de Thessalia. – Já lhe contei minhas tragédias, senhorita. Quais são as suas?
- Ah! – ela faz uma expressão irônica. – A minha vida inteira é uma sucessão de tragédias.
- Conte-me todas elas!
Sinto nossas respirações se cruzando no ar. Estamos tão próximos! Tenho certeza de que os outros clientes do restaurante estão escandalizados.
- Bom, deixa-me enumerar... – diz Thessalia. – Pra começar, sou uma roma. Pertenço a um dos povos mais perseguidos da História. Ainda hoje a sociedade tem dificuldade em aceitar um povo nômade, que habita acampamentos e tem costumes e independentes próprios...
- Não aceitar coisas se tornou a única função da sociedade moderna.
- Bem isso, senhor. Bom, nasci em um acampamento cigano na Alemanha, na época em que Hitler já estava mandando encarcerar os roma nos campos de concentração. Aos dois anos, fiquei órfã de pai. Aos seis, vi os nazistas invadirem nosso acampamento e levar todo mundo para um campo, incluindo eu e minha mãe. Alguns de nós fomos obrigados a fazer trabalhos forçados, outros foram mandados direto para o extermínio. Foi um período de completo terror... Então, seis meses depois, veio a salvação. Como anjos enviados do céu, os soldados britânicos chegaram e libertaram aquele campo.
- Deus salve a Rainha! – proclamo, com uma pontada de orgulho.
- Ainda não acabou! – ri Thessalia. – Entre os anjos havia um demônio. Naquela noite, enquanto dormíamos sob a proteção dos britânicos, um dos soldados entrou discretamente em nossa barraca e estuprou minha mãe. Eu vi tudo. Ele ameaçou nos matar se um dia contássemos a alguém.
- Um soldado britânico? – espanto-me. – Dos que libertaram vocês?
- Um demônio dentre os anjos. E minha mãe manteve silêncio. Depois disso, agora libertos, os de nós que tinham sobrevivido ao campo viemos para a Inglaterra, tentar construir uma vida nova aqui. Era 1945, e a Guerra tinha enfim acabado. Foi a essa altura que minha mãe descobriu que estava grávida. Mesmo sabendo que aquele era o fruto da violência, porém, ela resignou-se a ter aquela criança. Lembro-me ainda hoje de quando ela entrou em dores de parto e precisou ser levada para um hospital...
Thessalia faz uma pausa, estudando meu rosto. Ela deve estar sentindo o que há pouco senti: que se desnuda para mim.
- Infelizmente, por uma ironia trágica do destino, o médico que atendeu minha mãe era o outrora soldado que a violentara na Alemanha. Imagino que ele a reconheceu na hora. O fato é que, naquele dia, minha mãe e a criança morreram no hospital, vítimas de complicações do parto.
- Bom Deus!
- Eu te disse que era uma sucessão de tragédias! – Thessalia sorri, soturnamente. – Resumindo: ao término de meus sete anos, eu já tinha perdido meu pai, passado seis meses num campo nazista e visto minha mãe ser violentada e, posteriormente, assassinada.
- Eu sinto tanto, senhorita! – digo, sentindo um misto de pena e perturbação. – Mas admiro sua força. Creio que se isso tudo tivesse acontecido comigo, eu hoje não seria um homem são.
Thessalia descruza as mãos e as põe sobre a mesa. Adianto-me e as toco, carinhosamente.
- Está vendo, Sr. Keller? – sussurra ela. – Agora não é como se nos conhecêssemos a vida inteira?
"Sim! Indiscutivelmente sim! Eternamente sim!", penso, entorpecido pelo calor daquelas mãos. Realmente, parece que já nos conhecemos desde a infância.
- Você acertou, Srta. Thessalia. Dividir dramas é, de fato, um método efetivo de duas pessoas se conectarem. Mas talvez haja um ainda melhor.
- E qual seria, gadjo?
- Compartilhar momentos bons – sussurro. – Como esse.
E, adiantando-me, eu a beijo.
A eclosão de sensações varre de nossas memórias todas as tragédias, e sinto que minha alma acabou de se mesclar irreversivelmente à da cigana.
Ao deixarmos o restaurante, declinamos a ideia de pegar um taxi e decidimos por caminhar até a casa de Thessalia. Assim, teremos um pouco mais de tempo na companhia um do outro, e prolongaremos ainda mais esse momento bom.
Enquanto andamos, a cigana assovia tranquilamente a melodia de Tiritomba.
- Essa canção gruda mesmo em sua cabeça – comento.
- O que fazer, se os italianos sabem como compor uma boa música?
- Nós ingleses também sabemos!
- Claro que sim, senhor. Mas os italianos são bem mais festivos. Parecem até ciganos.
E, antes que eu discorde, ela começa a cantar a Tiritomba no meio da rua, com uma voz tão natural que causaria ciúme no tenor do Quo Vadis. Não obstante, ela para, sobe na calçada, leva as mãos às barras do vestido e começa executar uma dança italiana, atraindo instantaneamente os olhares dos transeuntes.
- Com todo perdão, senhorita, você é louca! – exclamo, espantado.
"Louca não: artista", corrijo-me em seguida, com um sorriso impressionado.
Alguns passantes param ao meu lado e ficam assistindo Thessalia. Provavelmente, creem que isso é um espetáculo de rua. E a interpretação dela é tão alegre, que as expressões carrancudas são varridas do rosto dos britânicos e se tornam sorrisos quase... italianos.
Quando Thessalia termina, ouvem-se vários aplausos calorosos.
- Viu? Esse é o irresistível poder de uma melodia alegre, de uma dança saltitante – diz ela, despedindo a plateia inesperada e tornando a caminhar ao meu lado. – E a Itália é mestra em nos dar ambas.
- Correta novamente, Srta. Thessalia!
Caminhamos cada vez mais devagar, com medo de chegar ao nosso destino e encerrar aquele bom momento. Vamos conversando sobre canções tradicionais, danças folclóricas e o poder da arte de evocar alegria nas pessoas – e acabo confessando a Thessalia que ela tem um poder similar sobre mim.
Quando nos aproximamos do centro de Londres, deparamo-nos com um pequeno movimento numa esquina. Um homem, de terno e gravata, segura uma Bíblia na mão e grita aos que param e aos que não param pra ouvi-lo.
- O fim está próximo! – ele aponta a Bíblia para o rosto das pessoas. – Se arrependam, antes que as chamas do Inferno vos consumam a todos!
- Que ousadia! – fala Thessalia, e não sei se está elogiando ou censurando o homem.
- Ainda é tempo, senhora! – o pregador salta os olhos em Thessalia, quando passamos por ele. – Se arrependa enquanto é tempo!
- Arrepender-me de quê? – ela para diante dele, incisiva.
- Vejo o demônio como uma sombra atrás de ti, movendo-te como uma marionete, conduzindo seus passos por um caminho de loucura... O espírito da loucura paira sobre você! Oh, ele paira! Arrepende-te de seus pecados, e Deus terá misericórdia de sua alma!
- O que te faz vir à rua gritar acusações contra as pessoas? Deus?
- Minha preocupação pelas almas perdidas! – o pregador abraça a Bíblia. – Todos deveriam ter essa preocupação, inclusive você. Afinal, o que você faria se alguém que você ama acabasse indo para o Inferno?
Um sorriso desdenhoso pousa nos lábios de Thessalia.
- Eu desceria ao Inferno e conviveria com o próprio Demônio, impedindo-o de tocar nessa pessoa.
O homem faz uma cara tão horrorizada que não sei se me compadeço dele ou se rio. Certamente, deve estar pensando que Thessalia é uma lunática.
"É como se ela quisesse me matar! E é o que ela fará, sei disso!", meus pensamentos traduzem a expressão do pregador. Ele faz o sinal da cruz e dá as costas para nós.
Quando nos afastamos dele, Thessalia começa a rir.
- Viu a cara dele?
- Você foi muito ardilosa – sorrio. – Impressionou até a mim. Então a senhorita é uma cética?
- Oh, não! Sou uma anglicana como o senhor, Sr. Keller. Só não aprecio o método daquele homem de anunciar o Evangelho.
Naquele momento, minha admiração por Thessalia atinge o céu.
- Você é, definitivamente, a mulher mais encantadora que já conheci.
E o sorriso radiante da cigana faz minha alma explodir em luz.
*********
roma: povo cigano
***
Hey, pessoal!
Eu ia postar esse capítulo apenas amanhã, mas como vou passar o dia fazendo prova de concurso, resolvi adiantar a postagem.
Na mídia, está uma versão em italiano de "Tiritomba", interpretada pelo grande Fritz Wunderlick.
Existe uma versão em português muito linda, cantada pela Zezé Gonzaga, que vale a pena ouvir também.
https://youtu.be/Qv1NBhyegew
Obrigado a todos que estão lendo!
Até quarta-feira!
Abraços!
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