1 - Suposição de matar
O céu de setembro não mostrava uma única nuvem no horizonte. O sol raiava e o céu estava limpidamente azul. Leonor estava expectante pelo seu primeiro dia de trabalho, o primeiro dia do resto de sua vida. Acreditando na sua mãe, a situação meteorológica radiante era prenúncio de boa sorte. Leonor seguiu até à escola com fé. Tentanto convencer seu cérebro que não deveria referir-se ao lugar onde iria trabalhar como escola e sim como colégio. O resto do corpo docente poderia não ver isso com bons olhos.
O seu carro vermelho com duas linhas brancas nas laterais fazia a diferença no estacionamento do colégio. Percebeu isso quando saiu dele e seguiu o seu caminho olhando para ele, por outras palavras, para trás, o que a fez ir de encontro às costas de alguém de forma brusca. Ela quase caiu, porque precisamente nesse lugar, tinha um degrau que separava o estacionamento da entrada exterior do colégio. A sua queda foi aparada por as costas da mesma pessoa que a magoara. Foi muito rápido e dolorido. O homem olhou então para trás de cenho franzido. Leonor se compôs e viu um rosto geometricamente perfeito, num corpo vinte centímetros no mínimo maior que o seu.
— Caramba — ele disse — Como alguém tão pequeno faz um estrago tão grande?
— Eu peço imensa desculpa — ela falou, na velocidade máxima, como sempre fazia quando ficava nervosa — Eu ía distraída e tropecei nesse degrau.
— Ah sim, esse degrau — ele olhou — Quer dizer que se não fosse eu, agora você estaria de nariz cravado no chão.
As bochechas de Leonor ficaram vermelhas.
— Desculpe mesmo. E trate-me por tu.
— Tudo bem. Para a próxima faz atenção por onde andas. Isso é um colégio, uma espécie de selva urbana, não devias facilitar.
Leonor deu uma risadinha. Agora que já não havia rugas na testa do homem, ela podia ver como ele era novo, não tanto quanto ela, mas ainda assim jovem. Era um professor, isso estava óbvio para si, então mentalmente tentou adivinhar que aulas ele daria. Educação física foi o seu primeiro pensamento, foi o que pareceu mais óbvio dada a condição física dele.
— Eu sou o Nuno — disse ele — Vim substituir o professor de música dois mêses antes do último ano lectivo e acabei por ficar.
— O que aconteceu ao outro professor? Morreu?
— Ouvi dizer que é por aí... — meneou a mão — divorciou-se.
Leonor revirou os olhos, mas não podia negar o bom senso de humor, combinava com o calor que aquecia seu rosto de um jeito suave.
— E tu, como te chamas?
— Leonor — respondeu.
Os dois estavam seguindo o caminho até à entrada, onde alguns alunos também começavam a entrar, apesar de ainda ser cedo.
— Prazer, Leonor. Já conheces a escola?
— Pouco. Só o caminho até à secretaria e a sala do director.
— Já é alguma coisa. Vamos até à sala dos professores.
Leonor não disse nada, apenas seguiu seus passos de gigante. A sala de professores parecia vazia à primeira vista, mas logo surgiu alguém em seu campo de visão, alguém que olhou para Nuno e deu um sorriso radiante, como se o seu dia acabasse de melhorar radicalmente.
A tensão que aquela fêmea emanava era tão evidente, que se tornava quase palpável e por consequente desconfortável para Leonor, que só queria sair de ao pé dos dois, mas não havia ali mais ninguém para poder falar, pedir indicações ou qualquer outra coisa.
A mulher à sua frente tinha um cropped branco vestido, que não lhe ficava nem um pouco vulgar, porque deixava apenas um centímetro de pele à mostra. A sua saia começava logo ali onde o cropped lhe chegava e alcancava seus pés, estes calçavam umas sandálias de laços castanhos, na mesma cor que a saia e na mesma cor que o pequeno casaquinho de franjinhas cheio de personalidade. A sua pele estava muito bronzeada, tanto que Leonor sentiu uma pontada de ciúmes, ela no máximo ficava vermelha que nem um camarão, depois ía apanhando um tom mais acastanhado e por fim a sua pele descascava como a de uma cobra, para voltar a ficar branca de novo.
— Eu sou a Mónica — ela disse, num tom tão jovial quanto o sol que trespassava os vidros da sala.
Para além de um estilo incrível, ainda era simpática e bem disposta. Nuno e ela fariam o casal maravilha dali, se o sentimento fosse recíproco. Não dava para julgar isso pelas atitudes dele, mas as intenções dela já haviam ficado bem claras, para si. Não julgava, Nuno parecia ser um protagonista de um daqueles filmes de romance todo meloso.
— Oi, eu sou a Leonor. Sou a nova professora de ciências e de matemática.
— Que bom. Este ano temos vários novatos. É bom sangue novo — o seu olhar foi directo para Nuno na última frase — Talvez não saibas, mas podes pegar os livros de classe aqui — ela apontou o lugar — É... esta passagem vai directamente para a secretaria. Não te esqueças de pedir à Dânia, a secretária o teu plano semanal, ela vai-te ajudar com o livro de classe. Na verdade podes só pedir a ela. Ela pega, arruma e dá.
— Como se não tivesse trabalho que chegue — ironizou Nuno, servindo-se de um chá, o que impressionou um pouco Leonor.
Mónica soltou um risinho.
Pouco tempo depois os professores começaram a encher a sala de professores. Ela sentia-se um pouco nervosa, não conhecia ali ninguém, era o seu primeiro dia de aulas após obter a licenciatura e só queria que tudo corresse bem, com os professores e com os alunos. Sabia que um bom começo era essencial para a sua auto-confiança.
Em pouco tempo já sabia o nome de vários professores, só não tinha a certeza de decorar a todos de uma vez só. Quanto a Nuno, descobrira que errara feio em seu jogo de adivinhas. Ele não era professor de educação física, era professor de música. O professor de educação física era outro por coincidência da mesma faixa etária, mais baixo, menos musculado, igualmente bonito, agradável e memorável.
Sim, ela lembraria-se do nome dele, com toda a certeza. Como esquecer alguém que se chama Romeu? Também era o seu primeiro dia como professor após a licenciatura. Ao lado dele, Leonor sentiu-se menos solitária e mais à vontade.
O seu plano semanal começava logo à primeira hora, com uma turma do nono ano. Conseguira encontrar a sala de aulas graças a Mónica, que a enchera de boas vibrações durante o caminho. Nunca conhecera ninguém tão radiante.
Descobrira uma turma concentrada. Isso animara-a, já lhe haviam contado experiências péssimas com turmas horríveis, mas aqueles alunos pareciam bem reticentes.
O dia parecera acabar rápido. Gostava disso. Os dias que pareciam se arrastar arransavam-na. Gostava de leveza na sua vida.
Chegara a casa sentindo-se realizada. Ser professora era aquilo que sempre quisera.
A sua mãe estava engomando roupa, o avô estava lendo o jornal sentado na sua poltrona e a sua avó via televisão enquanto fazia tricô.
Leonor cumprimentou todos calorosamente, como sempre fazia depois de pousar a sua bolsa em seu quarto.
Estava pousando um beijo terno na bochecha de sua avó, quando o genérico do jornal de notícias começou e então foi divulgada a primeira notícia da noite.
Leonor ficou petrificada no seu lugar. Reconheceu directamente os portões do Colégio Lobo de Matos. Era a escola onde acabava de dar o seu primeiro dia de aulas.
Em rodapé estava passando a frase "É encontrado corpo de professora numa lixeira".
— Vó, meta o som mais alto, por favor! — pediu Leonor.
A sua avó colocou o som mais alto. De repente todos naquela sala pararam o que estavam a fazer para ouvir a notícia.
O jornalista falava com uma dicção perfeita e a repórter situada na escola respondia.
"Bom dia também para ti, José. Eu estou aqui, frente à escola onde essa mulher lecionava e da qual ela possuía cinquenta por cento das acções. Os outros cinquenta por cento pertencem a Amilcar Matos, o director desta instituição de ensino particular. Trata-se do marido da vítima, encontrada morta esta manhã numa lixeira da cidade de Coimbra. A autópsia dirá mais sobre as causas da morte".
Leonor tinha a boca aberta, tal era o seu espanto. Mesmo não a conhecendo sentia que lhe devia algum tipo de luto, nem que fosse por ter sido aquela mulher quem lhe fizera um contrato de trabalho indeterminado. O que era muito, sobretudo para alguém que acabava de sair da universidade.
"Tudo indica que se trate de um assassinato premeditado. As razões que levaram ao ato continuam sendo um enigma que a polícia de Coimbra continua investigando"
A notícia voltou ao pivô do jornal de notícias. Quando voltou à repórter, Leonor viu ao seu lado Amilcar, o director do Colégio. Estava com o rosto vermelho. Ela tinha-o conhecido nesse dia. Achara-o um homem simpático e bem humorado, sobretudo comparado à sua esposa. Ela nem sabia que eram um casal.
Soube no mesmo instante em que viu a notícia, que Amilcar seria o suspeito principal. Os cônjuges eram sempre os suspeitos principais.
Não metia as mãos no fogo por ele, pois não o conhecia, mas também não apostaria a culpa nele. Nem via porque ele mataria a mulher e a jogaria numa lixeira, mas a verdade é que ela não os conhecia, então, a sua opinião não era firme sobre nenhum dos dois.
Leonor estava tão absorta no noticiário e nos pensamentos que o acompanhavam, que nem percebeu que sua tia Paula acabava de se sentar ao seu lado e olhava também a televisão, os olhos pregados às imagens.
— É a escola particular onde tu comecas-te a trabalhar — disse a sua tia Paula.
Assustada, Leonor deu um pulo no sofá.
— Caramba, tia. Queres que eu tenha um ataque cardíaco? — respirou fundo — É a escola onde eu comecei hoje a trabalhar, sim. Eu não sabia sobre essa morte até agora.
— Eu já sabia — disse a sua mãe que pegara novamente no ferro de engomar, após uma pequena pausa olhando para o noticiário — Já passou nas notícias da uma da tarde.
Leonor pensou um pouco. Ela vira Amilcar de manhã, mas não o vira na hora de almoço.
Ali devia estar a razão.
— É, de facto eu também já tinha ouvido qualquer coisa, inclusive lá no mercado. Isto quer dizer que ela é tua patroa, Leonor. A tua patroa está morta.
— Ai, tia. Que mórbida!
— Desculpa, mas é verdade. Já viram? Foi aqui ao nosso lado. Ó aqui — mostrou o braço — até estou com pele de galinha. Deus me livre.
Leonor ficara com aquela notícia rodando na sua cabeça, sentindo uma onda de medo, de mau agoiro invadir seu corpo por completo. Não era só o fato de aquela pessoa ter morrido, era o fato de Glória lecionar exatamente as mesmas disciplinas que ela mesma lecionava, na mesma escola. Sentia-se uma intrusa, ocupando o lugar de um morto. Não saberia sequer exprimir a confusão de sentimentos que a estavam corroendo.
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Esperava ter o coração mais leve, mas não estava conseguindo essa sensação de passividade e na verdade, todo o corpo docente do Colégio Lobo de Matos parecia compartilhar do mesmo pesar. Leonor até parecia muito bem em comparação com alguns dos professores. Os alunos carregavam a mesma aura negativa. A escola estava de luto e um dos professores mais velhos tratara de comunicar a data do funeral. Amilcar não estava e não estaria na escola tão cedo.
Leonor estava adentrando a sala de professores numa das pausas escolares quando se viu recuando. Teria vergonha de admitir, mas estava ouvindo uma conversa sussurada de alguns professores.
— Eu nunca pensei que a situação chegasse a este ponto — disse um deles.
— É. Será que a polícia sabe que ela tinha pedido o divórcio?
— É melhor a gente não dizer nada. Eu não me acredito que o Amilcar fosse capaz de a matar. Aquele homem é um santo por ter aturado aquela mulher tantos anos. Se falarmos podemos mete-lo em maus lençóis e ele não merece. Já viveu inferno o suficiente.
— Se calhar fartou-se — respondeu uma voz diferente das duas primeiras — Ou teve um surto psicótico. Eu acho que devíamos falar.
— Eu acho que devíamos ficar na nossa. Nem sequer nos foi perguntado nada.
— Mas vai. Conscientizem-se que uma hora a gente vai prestar depoimento. É assim que as coisas acontecem quando o crime de homicídio é inegável — pela voz diferenciada, sabia que era um professor de língua portuguesa que lhe tinham apresentado no dia anterior, mas não lembrava do nome dele.
— Eu acho que devemos falar.
— Eu acho que nos devíamos calar, porque pode aparecer alguém e ouvir o que não deve. Lembrem-se, é o nosso segredo e os segredos são segredos por uma boa razão.
— Podem julgar que foi o Amilcar que a matou.
— E se foi? — supôs alguém do grupo.
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Lembrem-se do feedback que ajuda muito.
Eu espero que tenham gostado.
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