Capítulo 1Vida pandêmica
11 de outubro de 2020.
Passo Fundo, Rio Grande do Sul.
– Filhinha! – Rosa ouviu a mãe chamá-la, da cozinha.
Veio correndo, antes que a garota pudesse dar o fora sem ser percebida. Não rolou.
– Está levando a bombinha? – indagou Elaine, meio sem fôlego, por causa da corridinha que deu para alcançar a filha.
Rosa avaliou rapidamente o sorriso cheio de ansiedade de Elaine.
– Tá na mochila, mãe – resmungou.
– E o antialérgico?
– Ah, tenha dó, mãe!!! – Rosa parou de andar, soltando um suspiro exasperado. – Não vou tomar isso a vida toda!
-Vai tomar, sim, enquanto não estiver totalmente recuperada do ataque alérgico que teve. É uma época perigosa do ano, repleta de polen.
Cara... Primavera é uma naba.
– Tá legal – concordou Rosa, revirando os olhos. Voltou em seus próprios passos e parou diante da estante, para pegar a caixa de remédio. Verdade seja dita, sua mãe era uma mulher prevenida. Até demais. Rosa jogou a caixinha dentro da mochila. – Tá satisfeita, agora?
Ao invés de responder, Elaine sentiu os olhos marejarem. Disfarçou o tumulto interior, enquanto segurava a filha carinhosamente pelos braços e a abraçava. – Rosa, todo cuidado é pouco. O mundo lá fora é muito perigoso... Uma selva!
– Uma selva! – Rosa repetiu. O discurso da mãe mais do que decorado.
Rosa se virou para sair. Elaine a reteve pela mão. – Não está se esquecendo de uma coisa muito importante? – Perguntou, num tom austero.
A filha revirou a cachola tentando descobrir, até que finalmente caiu a ficha. Ela arregalou os olhos, mortificada.
– A máscara!
Suspirando ruidosamente, voltou para o quarto. Seu santuário. Porto Seguro. Cantinho de repor as energias. Tudo isso e muito mais desde que a pandemia começou.
Vasculhando o ambiente mais uma vez, para ter certeza de que não esqueceu mais nada, Rosa finalmente voltou para a porta da entrada.
-Pois é... A máscara. – respondeu mamãe, num tom soturno, e avisou: – Coloquei outra, de emergência, na sua mochila.
A COVID-19 a deixava com os nervos a flor da pele, mais do que o normal, desde que foi comprovado que as pessoas com problemas pulmonares corriam mais risco de morte do que outras, embora estudos dissessem o contrário.
Elaine estudou tudo que pode sobre a COVID-19 e descobriu contradições nas publicações, tais como: o portador de asma não é o mais afetado, de maneira geral, porém, os órgãos mais afetados de todos são os pulmões. Durma-se com um barulho desses! Então, os argumentos frequentemente usados, referindo-se à redução de internações, por parte de asmáticos, pode ter ocorrido porque estes pacientes se previnem mais, porque já usam sistemas de saúde e remédios para suporte do problema e usaram mais a máscara do que outros. No entanto, muitos dos asmáticos que foram contaminados, morreram.
Os alvos mais conhecidos da doença, por conta do risco de morte e/ou das sequelas, costumavam ser os hipertensos, diabéticos, os idosos, os portadores de insuficiência real, cardíaca, obesidade e doença respiratória crônica... Os imunossuprimidos de maneira geral. No entanto, jovens saudáveis e atléticos estavam morrendo de COVID-19. Durma-se com um barulho desses!
Como nem os especialistas se entendiam sobre o vírus, Elaine é que não arriscaria a vida da filha. Rosa fora diagnosticada com asma, aos onze anos. Agora, com 16, levava uma vida quase normal, desde que seguisse todas as regras do jogo. E quer guardião mais zeloso das regras do jogo, do que Dona Elaine?
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"Nem sei como minha mãe conseguiu fazer o negócio sobreviver durante a pandemia"... – pensou Rosa, observando Elaine, por um momento. Mas lá estava ela, vendendo quentinhas com sacrifícios, concessões e muito jogo de cintura, a fim de não mandar ninguém da equipe pra rua numa época tão difícil para todos.
Rosa achava que sua mãe só conseguiu superar as dificuldades, porque construiu uma reputação na cidade. Todos confiavam em sua diligência e zelo. Ao invés de ficar sentada esperando ajuda de um governo que só desejava causar tumultos generalizados a fim de esconder seus desmandos corruptos, ela correu atrás do aperfeiçoamento, de ideias inovadoras. Não reabriu o restaurante, mas diversificou o atendimento.
Passou a vender pratos prontos e congelados, sobremesas, pães e tortas também. A comida era boa e bem feita. "Eu que o diga", Rosa sorriu diante das delícias que sua mãe a deixou provar, durante a fase de testes. Isso porque Rosa foi abençoada com um metabolismo que lhe permitia comer como um hipopótamo, e ficar magra como uma girafa.
Sua avó materna, Letícia, costumava brincar, chamando-a de varapau.
Se assim não fosse, Rosa achava que os pratos deliciosos da "Marmitaria da Elaine" já teriam feito com que ela ficasse do tamanho de um hipopótamo.
Suspirando, ela pegou as máscaras (teria que trocá-las a cada duas horas) e as colocou dentro de um estojo previamente higienizado. Voltou para a sala, balançando o estojo no ar, a fim de que a mãe visse que ela tinha pegado tudo que precisava.
A mãe ficou satisfeita.
– Tenho que ir agora, - murmurou Rosa – senão vou me atrasar.
– Está levando o...
– Álcool líquido 70, lenços umedecidos de álcool 70, luvas, - mostrou-as, enquanto as calçava – e... Deu! Chega! Estou pronta! Tchau!
A mãe estava segurando a máscara de acrílico à frente do corpo, diante da porta.
-Ah, não, mãe! - Deu um beijo rápido em sua testa. - Não vou aparecer na escola, no meu primeiro dia de aula presencial, parecendo um ET.
Disparou em direção à rua, antes que Elaine fizesse o habitual discurso sobre "todo cuidado é pouco". Não que estivesse errada. Ao contrário...
E Rosa bem que preferia ir com a máscara de acrílico. Muita gente sem noção saía por aí sem máscara, falando e cuspindo ao vento... Sem se importar se os outros, que sofrem de comorbidades, vivem ou morrem (como era o caso de Rosa com sua bronquite asmática).
No entanto, Rosa também sabia que sair com a de acrílico seria um convite ao bullying. O equivalente a acenar com uma bandeira vermelha na frente dos touros.
A coisa era tão séria, em termos de cerceamento das liberdades individuais, que a vovó Letícia foi empurrada e caiu no chão do supermercado; simplesmente, porque um negacionista fanático não gostou de vê-la usando uma máscara de acrílico. Ele veio por trás dela e a empurrou tão covardemente, que ela caiu e quebrou o tornozelo.
As câmeras de segurança do supermercado pegaram a cena, e o cara teve que pagar todo o tratamento dela. Mas isso não impediu que, em outra ocasião, uma mulher negacionista viesse dando de dedo na cara dela, por estar boicotando o governo, ao colocar aquela máscara.
Em outras palavras, se a avó de Rosa fosse patriota, deveria morrer de coronavirus, calada e heroicamente. Sairia por aí sem máscara e sem vacina, só para demonstrar que apoia o atual governo.
Mas, bah!
A mãe estava certa: o mundo era uma selva. "E agora que estamos falando disso"... – Ela refletiu, enquanto colocava os fones de ouvido. – "Quer selva mais selvagem do que a escola?",
Selvagem e insana!
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Fechou o velho portão de metal que dividia a propriedade e a calçada; então, afastou-se pela rua. Podia apostar que a mãe estava espiando por trás da janela. Rosa caminhou com tranquilidade – quer dizer, fingindo uma calma que estava longe de sentir, mesmo diante da rua deserta.
A sensação era de que mil olhos invisíveis a vigiavam... Olhos de milhares de vírus circulando pelos ambientes, já que o corona aparentemente conseguia sobreviver por mais tempo, sem que precisasse estar dentro de um hospedeiro.
Por um instante, ela se viu num filme de terror pós-apocalíptico, como em Guerra Mundial Z.
Se a mãe percebesse o pânico ameaçando dominá-la, naquele instante, haveria de querer acompanhá-la até a escola. Com isso em mente, Rosa endireitou os ombros e saiu andando rápido.
Sentiu o vento gelado de inverno atravessar a roupa e até a máscara. Respirou fundo, assustada, enquanto caminhava meio que no piloto automático. Aquela era a sua primeira saída por longo tempo, em um único dia, em dois anos de pandemia. Precisava ser forte.
A certa altura, sentiu necessidade de arrumar a máscara, porém, lembrou-se de passar álcool nas mãos, antes de tocar o rosto. Reposicionou os óculos e a máscara, para não embaçar as lentes.
Inesperadamente, alguém passou por ela e soltou uma risadinha de deboche. Era um sujeito de meia idade, sem máscara. Olhava-a num misto de desprezo e euforia.
"Pois é... Além do vírus, a gente tem que lidar com zumbis idiotas", refletiu Rosa.
Procurou atravessar a rua, mas ele começou a chamá-la: – Ei, garotinha! Tá assustada, tá? Acha que o vírus vai te comer viva, sua esquerdopata de merda?
Uma terceira voz soou com o efeito de um trovão:
– Assustadinho vai ficar você, cara, se continuar mexendo com a garota.
O sujeito voltou para a calçada e foi-se embora, lançando um olhar cauteloso para o garoto que, embora tivesse 17 anos, era bem mais alto e forte que ele.
Rosa o conhecia da escola e ficou surpreendida. Mayo era tipo um bad boy que ninguém chegava perto. E ele não era dado a ajudar ninguém... Diziam muitas coisas sobre ele, mas o fato é que havia uma violência contida em tudo o que ele fazia. Como se estivesse sempre pronto para a briga.
Mayo era tão alto e forte que nem mesmo Thiago (oficialmente o garoto mais atlético da escola) poderia bancar uma briga. Ainda bem que nunca rolou uma briga. Isso porque todo mundo evitava chegar perto do cara caladão que só se vestia de preto.
Havia muitas lendas sobre Mayo circulando por aí... Desde algo plausível e simples, como o fato de Antenor Bustamante, capitão da Marinha e pai dele, ter que se mudar constantemente pelo país; passando por ideias exóticas, como a ideia de que Mayo teria batido num garoto na outra escola, até quase matá-lo; ou que ele era seguidor de uma seita satânica e sequestrava mocinhas desavisadas, a fim de sacrificá-las ao Demo. Também costumavam dizer coisas menos fantasiosas, mas não menos assustadoras, como o fato de Mayo ter conexões no submundo do crime.
E desde que o clube de cinema da escola exibiu o filme Três metros sobre el cielo, as garotas não paravam de falar de Mayo, achando-o parecido com o ator Mario Casas. Passaram a suspirar por ele e a se atirar aos seus pés.
Rosa revirou os olhos. Que Mario Casas, que nada! De Casas, já bastava a excêntrica e perigosa bibliotecária/professora de História nas horas vagas.
"Nada a ver", concluiu em pensamento. "Ridículas, todas elas".
Olhou de esguelha para Mayo, que seguia na calçada do outro lado da rua, em seu próprio passo... E sem a menor intenção de diminuir a distância entre eles. O que foi um grande alívio para Rosa.
Ela notou, de relance, que a máscara dele tinha o desenho de uma dentadura de caveira – o sorriso maligno projetado no fundo tão preto quanto o resto de suas roupas. Não era apenas a cara de um bandoleiro, mas de uma figura de outro mundo; uma figura do mal: de repente, o arqui-inimigo de algum super-herói, tipo o Bane...
"Rosa, recomponha-se!" – ela ordenou a si mesma, em silêncio. Costumava divagar, quando nervosa. E sim, estava nervosa! Mais para desconcertada, do que nervosa, diria a si mesma a seguir – aquela era a primeira vez que Mayo tomava a iniciativa de defender um colega de escola.
Ela não gostou de ser o pivô dessa mudança, mesmo que este se tratasse de um comportamento aleatório que jamais tornaria a se repetir num futuro próximo, ou quiçá longínquo... Fato é que Rosa não queria entrar no radar do garoto satânico, tanto quanto não queria se tornar alvo dos comentários das outras garotas.
Sem saber como agir – e sentindo-se na obrigação de lhe agradecer – ela ensaiou mentalmente algumas palavras apropriadas. Sua mãe ficaria decepcionada, se ela não o fizesse. Mas antes que pudesse pronunciá-las, ele já tinha lhe dado às costas e seguido por outro caminho. Uma ruela estreita que abreviava a distância até a escola, desde que a pessoa estivesse disposta a pular o muro.
Hum...
Aliviada, ela continuou o seu próprio caminho, atravessando o "centrinho" da cidade até avistar, ao longe, a majestosa construção do Colégio dos Anjos, mantido pela Ordem da Alva Clarissa de Pádua. A Ordem possuía duas escolas particulares de alto padrão, no Rio Grande do Sul. Uma ficava em Passo Fundo; e outra, nos arredores de Torres.
À esquerda do colégio ficava a famosa biblioteca da Fundação Casas da Vida. Grande, arrojada, a construção refletia um padrão arquitetônico único que, a primeira vista, induziria ao observador considerá-la futurista; por outro lado, num segundo olhar, via-se as características tão exuberantes quanto austeras, inconfundivelmente espanholas. Um quê barroco, com jogos de sombras e luzes, provocando a ilusão de movimento. Talvez por isso, Rosa achasse que a Casa da Vida fosse se inclinar sobre os transeuntes, a qualquer momento.
Passando em frente, agora, não pode evitar um arrepio. Reconheceu que aquele lugar a intimidava mais que qualquer outro. Nas poucas vezes em que entrou lá, sentiu como se partes do prédio vibrassem ou pulsassem de alguma maneira. Principalmente, o subsolo – que a galera carinhosamente chamava de "porão dos mortos".
Rosa nunca contou a ninguém sobre suas impressões a respeito do lugar, nem aos amigos mais chegados. Não queria ter a tarja "louca" acrescida às de "esquisita", "nerd", e "doentinha". Mas seus amigos de verdade não eram bobos. Sabiam, pelo seu comportamento, que ela evitava a Casa da Vida a todo custo.
Uma rajada de vento fustigou as vidraças da frente e Rosa engoliu em seco, acelerando o passo. Cogitou, de repente, se a Professora Casas dormia lá dentro. Ninguém sabia onde ela se hospedava, na verdade. E isso era um grande feito para um forasteiro que chegava a uma cidade com clima de interior, onde todos sabem sobre todo mundo. Henrietta Casas era uma anomalia, por assim dizer.
A misteriosa e peculiar professora tinha apenas um metro e meio de altura, mas, acredite se quiser, conseguia tratar Mayo de igual para igual – a única pessoa capaz de deixá-lo desconfortável com apenas um olhar.
Além de cuidar dos interesses da biblioteca, e consequentemente, da fundação, Henrietta Casas era conhecida dos alunos como a temida professora de História. Na opinião de Rosa, a mais rigorosa que já teve... Sempre dando um jeito de os trabalhos escolares envolverem pesquisa. E não pesquisa na internet, mas na biblioteca. Pesquisa "da braba", como sua avó costumava dizer, em tom de brincadeira.
Rosa fazia a maioria dos seus trabalhos, sozinha, só para não ter que entrar lá. Nos raros trabalhos em grupo, combinava de se encontrar com os colegas na casa de alguém. Conseguiu fazer isso a maior parte da sua vida escolar. Torcia para que a sua boa sorte não mudasse, agora que estavam na reta final do ensino médio.
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Desde que Rosa se conhece por gente, a importância das letras e da história foi o tema principal de todas as aulas da Sra. Houses, como Thiago a apelidou (pelas costas, naturalmente). Por falar nela, Rosa se lembrou de repente que a primeira aula presencial era justamente História.
Desde que a pandemia teve início, eles faziam as atividades escolares em casa... Rosa estava curiosa e temerosa para saber o que a professora havia planejado para o retorno à sala de aula; provavelmente, alguma coisa que envolvesse analogias históricas com as pestes que dizimaram povos inteiros, em tempos remotos.
Peste negra, gripe espanhola, ebola...
Bem, não tão remotos assim, uma vez que o ebola estava por aí; a peste negra andou dando o ar da graça; agora a gripe espanhola... Era um mistério. Um dia, os vírus iriam varrer o ser humano da face da Terra. Só restariam as baratas.
Um calafrio percorreu a espinha da garota.
Ao virar a esquina da Casa da Vida, entrou na "reta" do colégio, e avistou alguns grupos de alunos caminhando em direção aos grandes portões. Para variar, sem nenhuma pressa para chegar lá. Era quase coreografada a forma lerda como se moviam, conseguindo alcançar as salas de aula no exato instante em que soava o sinal. Outro mistério digno do desaparecimento da gripe espanhola, no entender de Rosa.
Ela diminuiu o passo a fim de ficar para trás. Não queria cruzar com nenhum deles. Eram todos uns debochados. E quanto menos chamasse a atenção para si, melhor.
A vida na escola era repleta de bolhas, onde entravam aqueles que se sentiam atraídos por afinidade – mesma classe social, mesmos interesses, recursos, motivações e, talvez, experiências dolorosas compartilhadas.
Havia quem tivesse perdido parentes para a doença terrível que o coronavirus desencadeava, com sua famosa tempestade inflamatória. Havia quem se preocupasse diariamente com os parentes trabalhando na indústria e no comércio, tendo que enfrentar o vírus todos os dias, nos ônibus sem higienização, nos ambientes de trabalho sem os cuidados devidos...
Havia quem não se preocupasse com nada disso, mas estivesse estudando para entrar para os mesmos cursos, na faculdade.
Enfim...
Apesar dos interesses, dores, objetivos e classes sociais compartilhados por seus colegas, impulsionando-os na direção uns aos outros, Rosa não era do tipo que fazia amizade facilmente. Salvo algumas exceções... Ela possuía, sim, poucas e preciosas amizades... Talvez fosse mais correto dizer que ela não fazia força para se tornar amiga de ninguém. E que entrar no seu círculo requer mais do que ser agradável ou ter algum interesse para compartilhar; amizade para ela requer confiança.
Rosa não confiava nas pessoas. Simples assim.
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