8 - Você é a própria luz
— Você está com uma cara acabada — Dr. Castiel, meu médico e um grande amigo, comentou enquanto me examinava.
Castiel era humano, entre a faixa etária dos quarenta, cabelos castanhos parcialmente grisalhos, olhos de tom claro de amêndoas, pele marrom e ele era uma pessoa extremamente simpática e amistosa. Uma de suas responsabilidades era tutelar o meu bem estar, foi assim desde o momento que fui recrutada pelo instituto. Isso era algo que ele fazia com exatidão e maestria.
— Não tive uma boa noite de sono — confessei e dei de ombros.
— Fiquei sabendo da sua aventura ontem — insinuou, com um sorriso hilário marcando sua face. — Teve pesadelos? — perguntou, preenchendo um cilindro transparente com meu sangue.
— Sim — murmurei, pouco incomodada com a agulha cravada em minha pele.
— Esse é um dos poderes do Zyan — explicou, concentrado no tubo cheio em suas mãos. — O medo é como a arma dele. Afaste os pensamentos negativos e aos poucos ele vai perder o poder sobre você — disse, retirando a agulha e permitindo minha rápida regeneração tratar o local afetado, não sendo necessário nem mesmo de compressa.
— Anotado. — Ajustei a manga do moletom e inseri as mãos dentro do bolso. No momento que ergui o olhar, encontrei o par castanho-claro concentrado em mim.
— Seu aniversário de vinte está chegando, sente alguma mudança? — Balancei a cabeça em resposta. — Não vai demorar para completar vinte e um e logo seus poderes estarão definitivamente estabilizados.
— Eu sei — murmurei, curvando os ombros e me encolhendo no assento. — Não estou sentindo nenhuma grande mudança ainda, talvez no último ano?! — A certeza em minha fala se perdeu na última frase quando saiu quase como uma pergunta.
— Talvez — concordou Castiel — Fique atenta nos meses subsequentes, quero que me informe qualquer coisa que sinta, entendeu? Mesmo que seja até um breve mal estar, não hesite em me procurar.
— Tudo bem — assenti. — Estou liberada?
— Sim, pode ir — disse enquanto armazenava o material recolhido.
Despedi-me e apressei o passo para o exterior da sala, da mesma maneira como cortei os corredores até encontrar o elevador. Não suportava mais a pigmentação alva do pavimento e das paredes, tampouco o odor de materiais hospitalares. Dei o comando para ir ao sexto andar e no momento que as portas metálicas se abriram, a visão do curto corredor que acessava o refeitório foi exposto a mim. Caminhei até às mesas e Ísis acenou ao me ver, Boris e Noah sentados junto a ela. Cumprimentei todos com um beijo no rosto assim que me uni a eles.
— Acredito que esteja sentindo falta disso — falou a ruiva, devolvendo meu celular em seguida.
— Obrigada. — Segurei o aparelho e sentei diante a ela e ao lado de Noah.
— Você está bem? — Noah perguntou com aqueles intensos olhos esmeraldas cravados em mim. Um tom zeloso marcou suas palavras e, apesar de eu ter assentido, sua feição denunciou que não estava nem um pouco convencido.
— Estou mais preocupada em como você está — centralizei minhas aflições a Ísis, que pestanejou algumas vezes, relutante diante do assunto.
— Eu estou bem, eu só... — A garota deu uma pausa para engolir seco — Eu só nunca havia sentido algo tão intenso como o que senti ontem — Sua voz ecoou abatida e consequentemente baixa, o olhar decaiu para a barra de proteína em sua mão. — Aqueles homens... eles tinham sentimentos muito negativos em relação a.. nós.
Eu sabia que "nós" ela quis dizer eu. Os portadores tinham deixado bem claro que o problema deles era a minha presença e não de Ísis e nem Boris, não teria acontecido absolutamente nada se eu não estivesse lá. Não consegui me livrar da culpa que instalou em mim quando refleti sobre esse fato, era como um peso nos meus ombros desde o ocorrido. Uma parte de mim sentia como eu era a culpada por ter acabado com a diversão dos meus amigos.
— Meu poder não se estende até leitura corporal, mas consegui sentir também a vibração ruim vindo deles — Boris acrescentou e eu concordei.
— O que mais me deixou intrigada foi Zyan — Ísis continuou, erguendo seu olhar em minha direção. Eu pisquei duas vezes tentando espantar qualquer que fosse a reação que estivesse estampada em meu rosto ao ouvir o nome dele. — O que senti quando ele falou com você foi... diferente e profundo. Não sei explicar, sua energia também estava esquisita, Lanys.
— Não faço ideia do porquê. — Foi minha única resposta sob os pares de olhos que me fitavam em busca de qualquer reação da minha parte. Noah era o que mais me observava atentamente, estava quase inclinada a dizer para ele desembuchar o que quer que estivesse embolando em sua garganta.
Eu não tinha certeza se eles estavam cientes da profundeza da confusão que eu havia me metido e decidi que aquele não era o melhor momento para expor minha conversa com Dylan no dia anterior. Ficamos alguns segundos em silêncio, apenas recordando a experiência avassaladora e tenebrosa, cada um ao seu modo. Um suspiro pesado escapou dos meus lábios e eu me esforcei para esquecer o acontecido.
Ainda teria um julgamento por combate para acontecer e, apesar de aturdida, não queria que isso escurecesse meus sentidos e me congelasse no tempo.
— Bom, gastem suas energias no treinamento de hoje — Noah disse, rompendo o silêncio — Na segunda o grupo de vocês irá iniciar as atividades em campo, pode ser bom distrair a mente.
— Você pode nos dizer o que vão nos mandar fazer? — minha amiga indagou, seguido de uma mordiscada em sua barrinha.
— Posso adiantar que irão para a vigia, é sempre assim que começam — revelou e todos ouvimos os gritinhos abafados e animados vindo do Boris.
— Graças aos Deuses! — clamou ele, fechando os olhos e gesticulando com as mãos em sinal de reza.
— Por que você está animado? A vigia é um tédio — resmungou a ruiva, desinteressada.
— Exatamente, não vou fazer nada, isso é tudo que eu preciso — respondeu, com um sorriso exibido no rosto. Eu e Noah demos algumas risadas baixas e Ísis oscilou a cabeça em negativa como se não entendesse tal motivação.
O treinamento naquele dia aconteceria no exterior do prédio. Aos fundos do instituto havia um vasto espaço conectando o IEPL e a floresta, era como nosso quintal. No vão a céu aberto, coberto pelo capim baixo e solo arenoso, era onde aconteceria alguns duelos. Nosso instrutor separou algumas duplas, reparei que as escolhas foram baseadas nas habilidades similares, tornando o treino mais fatigante.
— Alanys! — Marcellus citou meu nome, alto e nítido, procurando alguém ao redor. Seus olhos estagnaram em uma garota de cabelos curtos e ruivos, contrastando com a pele pálida e as íris de cores castanho-avermelhadas — E Arya.
Assim que meu olhar se cruzou com o dela, sorrimos uma para a outra. Eu não a conhecia muito bem, porque ela era nova em nossa turma. Eu sabia que ela tinha a mesma idade que eu e seus poderes eram fortes o suficiente para colocá-la em uma turma intermediária. A garota era uma flamer, uma manipuladora do fogo, e o pouco que a vi treinar eu notei que tinha um grande potencial. Fora dos treinos eu sempre a via pelos corredores andando sozinha e fazendo suas refeições no canto do refeitório, alguns garotos até se aproximavam dela, porém nunca mostrou interesse por nenhum deles e logo eles se afastavam.
Caminhamos em direção ao núcleo de um domo isolante que ajudei nosso instrutor a gerar, no intuito de reprimir qualquer pequeno dano de alvejar tanto o bosque como os prédios. Reparei o quanto o uniforme de treinamento acentuava as curvas da jovem que se posicionou de frente a mim a uma distância razoável. Nossos trajes eram similares, um macacão preto esportivo de alças simples, botas escuras e algumas pessoas optaram por usar, ou não, um par de luvas meio-dedo. Minha oponente não usava nenhuma, mas eu sim.
— Luz e fogo são uma combinação extremamente perigosa — nosso instrutor começou. — Uma faísca sua pode ser o suficiente para que Arya entre em combustão, o que é ótimo para ela. — Olhei a soslaio e percebi que Marcellus falava diretamente comigo, então virei meu rosto para fitá-lo. — Será que você consegue ganhar sem invocar a sua primária? — sua pergunta soou como um desafio aos meus ouvidos, aliciando a adrenalina em meu interior.
Assim que Marcellus saiu do domo e se juntou aos demais, fez um gesto com a mão indicando que poderíamos começar. Sem materialização de armas, essa era a única regra daquele dia. Certo, eu poderia lidar com isso muito bem, sempre gostei mais das lutas em que eu não precisasse invocar minha arma de luz.
Respirei fundo e resvalei as mãos no cabelo, certificando que nenhum fio sequer fixasse em meu rosto. Posicionei-me em modo de defesa quando percebi a garota esquadrinhando cada movimento meu, se preparando para um ataque. Ela não era tão boa em disfarçar seus olhares e eu poderia usar isso ao meu favor. Confirmando meu raciocínio, não demorou para acontecer quando ela correu em minha direção.
Cerrei os punhos quando Arya se aproximou satisfatoriamente, usei uma das minhas mãos para conter sua tentativa de golpear meu rosto. Segurei seu pulso com destreza e esquivei meu corpo para o lado, ao mesmo tempo que inclinava velozmente o outro braço para lhe acertar um soco forte no estômago. Minha adversária deu pequenos passos para trás com meu ataque e quando me prepararei para lhe dar um segundo, a garota ergueu sua outra mão e segurou a minha que espremia seu pulso. Em um rápido movimento, arrancou-me do meu equilíbrio ao puxar todo meu peso para cima de seu corpo, o que me fez escorregar por suas costas e estatelar com as minhas no solo rijo.
Ágil. Minha segunda anotação mental, Arya era muito ágil.
Ela se afastou em poucos passos, enquanto eu me levantava novamente. Captei o momento que o ambiente à nossa volta escaldou ardentemente, anunciando o perigo iminente. Era sua invocação secundária. Uma mera irradiação de luz da minha parte, poderia ser o suficiente para um incêndio instalar, similar a um curto circuito. Naquele caso, concentrei-me no combate corpo a corpo, por ora.
Avancei em sua direção e tentei acertar um murro, porém a ruiva esquivou para a minha lateral. Usei sua nova posição para chutá-la e a garota cruzou os antebraços à frente de sua face para se preservar. Antes que ela tivesse a chance de premeditar meu próximo movimento, golpeei outro pontapé imoderadamente feroz, dessa vez na lateral de sua perna, obrigando-a a se agachar pela dor do contato brusco no local. Assim que seu corpo curvou, aproximei-me rapidamente e, com meu joelho, atingi seu queixo. A ruiva se desequilibrou e desabou sentada.
— Não esqueça, Alanys. Você é a própria luz — Marcellus salientou em tom alto, contornando a barreira em passos tardios e com as mãos atrás do corpo.
Centralizei minha atenção na figura à minha frente, que estava com as bochechas notoriamente avermelhadas como os fios de seu cabelo. Ela avançou acertando o punho cerrado em meu rosto. Meu músculo me puniu pelo contato no momento que senti o fervor no local, entretanto, antes que me acertasse de novo, rodopiei e prendi seu braço. Assim que toquei sua pele notei o quão quente estava, não o bastante para me queimar, mas isso significava que Arya estava prestes a invocar sua primária.
Torci seu braço para trás de seu corpo e um grito rasgou sua garganta com a solidez que eu o segurei, por um triz de quebrá-lo. Pontapeei sua fossa poplítea, forçando-a a cair ajoelhada, em seguida a soltei e fechei um dos meus braços ao redor de sua garganta. Comprimi seu pescoço na intenção de privá-la do ar, suas mãos pelejaram em busca de puxar meu pulso e liberar as vias respiratórias que padeciam pela carência de oxigênio. Mantive-me resistente por alguns segundos, meu objetivo era fazê-la perder a paciência. E não demorou.
A garota renunciou de tentar se soltar e ergueu suas mãos. Faíscas flamejantes despontaram e dançaram entre seus dedos, se dilatando em pequenas labaredas. Seu toque incinerador entrou em contato com meu antebraço, obrigando-me a soltá-la.
Um grunhido de dor escapou do fundo da minha garganta com a sensação de queimadura em minha pele. Afastei-me e encarei os traços horrorosos e tostados que expeliram uma fumaça, no entanto os ferimentos estimularam minha regeneração que cuidadosamente começou a sarar o local. Ergui meu olhar para a figura feminina a minha frente, seus olhos estavam pincelados em um vermelho vivo e o fogo já tinha domado sua aura e estava chamuscando em seu entorno.
Sorri de canto ao perceber que consegui o que queria. Arya não era muito boa ainda em controlar sua impulsividade e agressividade, pelo visto todo flamer tinha esse certo... probleminha. Quando ela estendeu seus braços em minha direção, uma onda de brasas foi projetada em meu rumo, decidi correr pela lateral e desviar de sua ira fervorosa. Formas em chamas foram arremessadas, eu consegui evitar todas.
Aproximei-me da ruiva, que se concentrou em invocar mais uma esfera de fogo e projetou para mim, e impulsionei o chão com toda minha força, saltando por cima do sólido em brasas e até mesmo da portadora. Pousei ajoelhada atrás da garota e meu corpo começou a titilar, permiti a sensação se estender até a extremidade dos meus dedos, pois eu precisaria muito dela em seguida.
Em meu interior, a luz cintilou, suplicando para ser libertada. Domei a corrente elétrica que instaurou sob minha pele. Levantei lentamente e no momento que Arya virou e ficou frente a frente comigo, com os olhos fumegantes e as íris pinceladas em vermelho vivo, ergui a palma da minha mão na altura do seu rosto e concedi que toda minha luminescência secundária fosse invocada.
Minha luz sugou toda a essência viva que estava presa nas íris da ruiva, os olhos da garota esmaeceram, assim como sua visão. Já os meus, eu não precisava vê-los para ter certeza que eles estavam no tom do mais puro branco possível. Eu poderia fazer muito mais que isso, eu poderia invadir seu cérebro com minha luz e isso iria arder como o inferno, mas Arya era apenas uma novata com muita coisa para aprender, não havia nenhuma necessidade de machucá-la dessa forma para vencer.
A cegueira só perduraria por alguns minutos, mas era o suficiente para que eu socasse a ruiva em seu rosto, fazendo ela se descentralizar e tombar ao chão. E quando o fez, a ataquei novamente com um chute na costela. E mais outro. Seu fôlego esvaiu acompanhado com as tosses expelidas a cada golpe que eu aplicava. O fogo perdeu sua força e nitescência, bem parecido com o que tinha acontecido com sua capacidade de enxergar.
As mãos da flamer tatearam o solo tentando captar alguma onda de calor minha, mas fui mais rápida e agachei ao seu lado. Eu agarrei firmemente os fios vermelhos de seu cabelo e os puxei, obrigando-a a erguer o rosto. Desferi o meu último golpe com o punho fechado, a cabeça de Arya estatelou com força no chão e ela apagou.
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