4 - Carpe Noctem
Ao alvorecer no dia seguinte, eu já estava despertada antes mesmo de qualquer alarme azucrinante me acordar. Mantive-me deitada em minha cama, ponderando o raiar do sol que refletia nos vidros da janela, sentindo a maciez dos meus cobertores finos e o aconchegante travesseiro sob minha cabeça. Meu corpo suplicou pelo prazer de se rechear de preguiça e eu quase cedi.
Tive que lutar contra minha vontade de ficar admirando os galhos balouçando contra o vidro temperado e as folhas da árvore farfalhando alegremente à frente da minha janela. O ruído não chegava a me incomodar, seu movimento era tão suave como uma pena.
Arrastei-me pela cama e deslizei meus pés para fora, sentindo uma enorme vontade de bocejar e meu corpo todo se arrepiou com o ato. Gastei alguns segundos sentada, olhando para o chão enquanto lembrava de todo o ocorrido no dia antecedente.
Ísis me obrigou a ficar a manhã e tarde inteira à sua volta, assim como Brian estava sempre conosco, mas ele nunca se importou de estar perto da namorada. Se não fosse pelo prazer de ver Safira e Lya brincando, conversando, tomando sorvete juntas e até pregando peças em Brian de vez em quando, eu não sei se teria aguentado. Quase tudo que eu faço é para ver o sorriso genuíno no rosto da minha irmã, ela sempre foi minha maior motivação.
Tive a iniciativa de ir para o banheiro, tomei banho, lavei os cabelos, fiz toda minha higiene e coloquei um short curto caseiro e uma regata simples. Desci as escadas e fui direto para a cozinha. Preparei alguns ovos e separei umas torradas, repousei-os em cima do balcão da cozinha e fiz um pouco de café para mim. Não demorou até que eu ouvisse passinhos preguiçosos descendo as escadas.
— Bom dia, Nani — Safira apareceu coçando os olhos.
Em algum momento se tornou banal ouvi-la me chamar por este apelido. Eu lembrava como se fosse no dia anterior, ela era incapaz de pronunciar meu nome quando pequena. Tentávamos, eu e meu pai, ensiná-la a me chamar de "Lany", porém o resultado era sempre "Nani". Em determinado momento, nos conformamos e com isso o codinome se estendeu, e eu o acolhi como uma forma íntima e única de me conectar a ela.
— Bom dia, meu amor. Está com fome? — perguntei, colocando seu iogurte preferido sobre o balcão ao lado dos pães.
Ela assentiu com a cabeça e, com minha ajuda, sentou na banqueta que era um pouco mais alta. Enquanto a caçula deliciava o café da manhã, conversamos um pouco sobre como estava se sentindo, já que alguns exames da coleta poderiam causar reações, no entanto sua aparência estava ótima.
Quando terminamos de comer, fui até seu quarto e a ajudei a pôr o uniforme da escola. Composto por uma calça moletom preta com listra branca na lateral, com um bordado das siglas da escola, e uma camiseta branca, com as mesmas siglas na altura do peito esquerdo. A mais nova pediu que eu fizesse um penteado maria chiquinha bem alto e eu atendi o pedido.
Deixei-a escolher um calçado e fui direto para o meu quarto, coloquei meu uniforme que era idêntico ao de ontem e encarei meu reflexo no enorme espelho. A consequência de ter ficado muito tempo no sol estava visível em minha pele mais dourada que o normal, porém eu adorava, parecia que destacava mais minhas íris acinzentada.
Quando chegou o horário do transporte escolar de Safira passar, a chamei e a acompanhei até a calçada, ela correu para dentro do automóvel e acenou para mim pelo vidro ao se juntar a suas amigas. Entrei novamente em casa, peguei minha mochila e todo material que precisava, prendi meu cabelo em um rabo de cavalo, desci as escadas às pressas e fui para a garagem.
Admirei por alguns segundos a minha maior conquista, ela era completamente preta com as duas rodas grossas e escuras, um tanto espaçosa e diria que, para um humano comum, poderia ser considerada um pouco pesada, mas não para mim. Subi na moto e a tirei com cuidado da garagem, peguei meu celular e dei a ordem para o assistente digital trancar a casa, enquanto colocava o capacete.
Guardei o aparelho no bolso da mochila, coloquei nas costas com as alças fixas em meus ombros e dei partida, indo na direção do instituto. Alcancei meu destino em poucos minutos, já que além de não ser distante de casa, eu nunca perdia uma oportunidade de me exibir pelas ruas abusando da alta velocidade.
Entrei no estacionamento e deixei a moto em um canto mais reservado, meu capacete ficou preso ao guidão, já que aqui não precisava me preocupar com nada. Ninguém ousaria roubar um portador, ainda mais dentro do IEPL.
Diferente de ontem, hoje eu estava no prédio dos especialistas, onde se encontram as salas de treinamento, refeitório e a central de comunicação. Entrei no elevador e solicitei para ir até o quinto andar, onde meu grupo costuma treinar. Quando as portas abriram foi-me exposto um corredor grande, virei à esquerda por onde sabia que ao final do mesmo estava a salão. Conferi no meu relógio as atividades do dia e entrei na sala empurrando a porta dupla vermelha.
— Caiu da cama, Ísis? — perguntei em tom divertido ao me aproximar da ruiva deitada em um dos bancos de madeira.
— Bem que eu senti uma energia negativa se aproximando — retrucou, com uma de suas mãos apoiada na testa e as pálpebras fechadas.
— Amores da minha vida! — sobressaltei com a inesperada voz de Boris ecoando estrondosamente pelas paredes, sorri quando percebi que vinha em minha direção e me deu um abraço — Estava com tanta saudades de vocês duas — cumprimentou Ísis em seguida.
Boris era um homem extremamente bonito, sua pele negra brilhava sob a luz, seus olhos de cor âmbar cintilavam bem fortes e, se olhasse por muito tempo, sentiria sua alma se prender com tanta sedução. Seu cabelo estava levemente raspado e sua altura era bem alta. Uma pena que não se envolvia com mulheres, se não eu mesma já teria o agarrado.
— Já voltou das férias? Justo numa sexta? Pensei que só voltaria na segunda — questionei um pouco surpresa, colocando minha mochila ao lado do banco.
— Ah, você sabe como funciona né, gata — revirou os olhos — Por mim eu só teria voltado mês que vem, mas pelo menos consegui aproveitar um pouco — comentou, empurrando sutilmente as pernas da ruiva — Faz o favor de não ocupar o banco inteiro.
— Bem que você podia ter viajado, não sei... para o deserto e ter ficado preso lá. — A ruiva disse em tom irritado, nos arrancando algumas risadas da sua atitude.
Além do continente de Íllis, existia um outro, não tão grande quanto o nosso e, até onde eu sabia, totalmente inabitável. O conhecido Cold Scorch, um território completamente deserto, era tudo o que restava depois das inúmeras guerras antes do nosso mundo ser comandado pelas gêmeas. O solo infértil, a bipolaridade extrema do clima, que tornava as manhãs muito quentes e as noites muito frias, impossibilitaram a população de continuar vivendo lá.
Já faziam mais de quatro mil anos desde o nascimento das irmãs portadoras e, apesar de alguns anciões poderem viver por séculos, isso não tornava nenhum ser de luz, ou sombras, imortal. Apenas as gêmeas carregavam essa habilidade e, pelo meu entendimento, somente elas mesmas poderiam causar suas fatalidades. Infelizmente, foi o que aconteceu quando Stella decidiu matar sua própria irmã.
— Está de mau humor, gata? Acordou cedo hoje, né? — Boris provocou Ísis. — Eu sei como tirar esse estresse rapidinho — disse brincando com uma das mechas da garota — Se o Brian não tiver dando conta do recado, existem alguns produtinhos que podem ajudar... — caçoou em tom baixo para somente nós ouvirmos.
— Vai se foder, Boris! — A garota estapeou levemente sua mão enquanto caímos na gargalhada — Meu namorado é muito bom no que faz — disse, erguendo seu corpo e sentando no banco — Diferente desses machos com quem você sai — esbravejou, pegando uma garrafa com água abaixo do banco.
— Falando nisso, conheceu alguém interessante durante as férias? — perguntei ao meu amigo, observando-o deitar a cabeça nas pernas de Ísis, que não protestou em nenhum momento, por incrível que pareça.
— Vários, mas nenhum fixo — deu de ombros — Aliás, acho que precisamos fazer alguma coisa hoje à noite, faz tempo que não passo um tempo com vocês.
— O que tem em mente? — indaguei, enfiando as mãos dentro dos bolsos do moletom.
— Poderíamos ir ao luau da Hailey — Ísis sugeriu, após bebericar sua água.
— Que luau o que, já enjoei de ver as mesmas pessoas no mesmo lugar. — O garoto reprovou — Acho que tínhamos que explorar ambientes diferentes, sabe? Fazer uma aventura. — Um sorriso misterioso despontou em seus lábios.
— E que lugar ainda não fomos? — arqueei uma das minhas sobrancelhas, dividindo olhares entre os dois.
— Carpe Noctem* — disse Boris, por fim, arrancando olhares esbugalhados de mim e da ruiva.
— Você diz a boate Carpe Noctem? Aquela que os portadores de sombra frequentam? — indaguei atônita e inclinei minha cabeça procurando qualquer vestígio de zombaria em sua expressão.
— Sim. A boate, Lanys — confirmou. — Não é para tanto, lá faz parte do tratado de paz, é o único lugar onde portadores da luz e das sombras se misturam — informou — Vamos, impossível que não estejam curiosas para saber como é. — Levantou, aprumando-se no banco ao lado de Ísis.
— Eu topo. — A ruiva aceitou animadamente com um sorriso no rosto.
— Vocês são malucos — enfatizei e soltei um longo suspiro em seguida. Ouvir sobre aquele lugar me causava calafrios.
— Qual o problema? É só respeitarmos o local e nada de ruim vai acontecer. Já ouvi vários relatos de pessoas que foram e adoraram — argumentou com genuinidade — E você, Lanys, é a própria luz em pessoa. Não precisa ter medo, qualquer coisa você joga um brilhinho na cara deles — disse em tom brincalhão e dessa vez foi Ísis quem riu junto com ele.
Apenas balancei a cabeça enquanto os dois trocavam piadinhas sobre meus poderes. Não me incomodava, às vezes até eu queria rir também, mas outras vezes queria mandar irem para...
— Alanys! — Virei-me rapidamente ao ouvir a voz grave e poderosa do instrutor Marcellus — Cadê sua roupa de treinamento? Vá se trocar imediatamente — ordenou em tom divertido e eu saí correndo para o vestiário.
Os treinamentos sugaram toda minha energia, meu corpo não estava tão exaurido devido a minha alta resistência, porém um buraco fundo rompeu em meu estômago, a fome era o que eu mais sentia principalmente na hora do almoço. Caminhei pelo refeitório junto com Ísis e Boris, conversando sobre coisas fúteis e servindo nosso almoço.
Optei por arroz, frango grelhado bem temperado, salada e purê, peguei alguns cookies para a sobremesa e, acompanhando, um suco de frutas vermelhas com chá verde. Procuramos por uma mesa disponível e encontramos uma com seis lugares, fomos até ela e nos sentamos. Fiquei de frente para Ísis e Boris sentou ao seu lado, ambos de costas para o refeitório, ao mesmo tempo eu tinha ampla visão de tudo.
O lugar era enorme com várias mesas e cadeiras, decorado com paredes vermelho-rubi e piso branco, o teto alto possuía alguns ladrilhos e haviam diversas janelas rodeando o ambiente. A luz natural penetrava com excelência, não necessitando de lâmpadas acesas e mantendo o recinto claro o suficiente.
— Olá, Ísis. — Uma voz irritante se aproximou da garota.
— Oi, Ethan — respondeu de maneira seca, levando o copo de suco aos lábios antes de sorver o líquido.
Ethan era um dos queridinhos da IEPL, dono de um ar arrogante e metido, assim como sua postura de predador. Conhecido por ficar com todas as garotas, as que julgava mais bonitas obviamente. O garoto herdava uma pele bronzeada e com poucas tatuagens pelo bíceps, seus olhos eram de um tom de castanho-avermelhado e os cabelos tingidos de castanho-claro.
— O que vai fazer hoje? — perguntou, pegando um morango da salada de frutas escolhida por minha amiga e levou até a boca, mastigando em seguida.
— Ethan, por favor, me deixe em paz. — Ísis suplicou em tom baixo e abaixou a cabeça, não precisei de muito para perceber que estava desconfortável.
— Sabe, se quiser pode ir lá em casa para a gente aproveitar a piscina — falou aproximando o rosto da garota. — É climatizada — sussurrou a última parte, mas não o suficiente para que eu não ouvisse.
Um sorriso malicioso esboçou em seu rosto, enquanto os olhos estavam fixos no corpo da ruiva, o que me fez revirar os olhos. Ele não tinha um único senso de autopreservação, mesmo sabendo que Ísis era comprometida, sempre dava um jeito de pegar no seu pé, com suas desnecessárias lembranças que estaria esperando por ela caso decidisse largar de Brian.
Com certeza as habilidades de mentalist de Ísis a alertavam sobre todo o tipo de intenção que o corpo musculoso ao lado demonstrava. Estar perto da ruiva era como ser um livro a ser aberto por ela, necessitava muito treinamento para conseguir esconder algo de um portador com tal poder e duvidava muito que Ethan daria o trabalho de esconder o desejo rídiculo que sentia pela garota.
— Dá o fora daqui, Ethan — vociferei apontando meu garfo em sua direção — Ela tem namorado caso não saiba e, mesmo se não tivesse, claramente não está interessada em você.
— Tá com ciúmes, amor? — provocou, fazendo-me soltar uma gargalhada sem humor em resposta.
— Se você não sair de perto dela em cinco segundos, eu te garanto que vou enfiar esse garfo no meio do seu olho — ameacei em tom firme, fazendo-o me encarar duramente — Já estou no três, Ethan.
Ele lançou um último olhar para Ísis e se afastou aos poucos. Os olhos caramelos da minha amiga se ergueram para mim e um murmuro dizendo "obrigada" foi-me direcionado. Assenti em resposta.
— Não sei como você já ficou com esse garoto, Lanys — Boris comentou, remexendo sua comida com o garfo.
— Com quem a Alanys ainda não ficou? — Ísis olhou para o garoto com um sorriso divertido e foi retribuída por ele.
— Vai comer sua saladinha, vai — respondi sua provocação, mas não pude conter um sorriso em seguida quando ela me olhou novamente
* Carpe Noctem, traduzido do latim = Aproveite a noite.
Esses capítulos realmente andaram lentamente, meu objetivo era tentar mostrar um pouco dos personagens que irão aparecer quase sempre por aqui e também apresentar o mundo Phellis. Garanto que a partir do próximo as coisas melhorarão!
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