18 - O passado que ainda assombra
No dia seguinte, ao retomar a consciência, percebi o quão estúpida fui com minha impulsividade. Eu estava angustiada com o que havia acontecido e não conseguia tirar as feições do Zyan, ajoelhado e sangrando até a morte, da minha cabeça. Eu não consegui dormir naquela noite e quando amanheceu procurei qualquer notícia na internet sobre o falecimento do Pai das Sombras, mas não havia absolutamente nada.
Encontrei-me totalmente às cegas, sem saber o que tinha ocorrido com ele desde que sumiu no dia antecedente. Será que ele fugira para a floresta? Será que havia morrido tentando chegar a um lugar seguro? Havia qualquer probabilidade de ainda estar vivo?
Tive medo de fechar os olhos e, de repente, ter minha casa invadida por pessoas exigindo minha cabeça depois do que fiz, tais pensamentos fizeram de mim um recipiente ambulante de escrúpulos.
A sensação inebriante de quando meus dedos tocaram a superfície áspera do tridente ainda distribuía correntes elétricas por meu corpo, tornando tudo ainda mais confuso e nebuloso dentro de mim. Brian me dera uma bela bronca quando fora ao meu encontro. Não tive outra escolha a não ser contar a verdade para ele. Tentamos procurar qualquer vestígio do Pai das Sombras, mas a barreira nos impedia de ir procurá-lo do outro lado.
Concordamos em não nos precipitar e mantermos aquilo somente entre nosso grupo até que tudo se esclarecesse. A morte do líder dos portadores de sombras não passaria despercebida, mas se havia chances dele não ter morrido, talvez pudéssemos controlar as reações seguintes, seria mais seguro assim. Brian conseguiu me convencer de seguir a sua ideia quando fez questão de me lembrar que Safira também poderia sofrer as consequências.
Preferi não adivinhar o que aconteceria se Dylan e Noah soubessem do meu encontro fatal com Zyan. Um de nós estava destinado a morrer naquela noite, mas não senti alívio por saber que não era eu. A aflição cobrou seu preço e com isso perdi a fome, o sono e a disposição, encontrando-me extremamente cansada.
Às vezes, me peguei encarando minhas mãos como se elas ainda estivessem manchadas com o sangue dele.
Encontrei minha dupla no instituto e ambos já estavam cientes de tudo. Ísis se ofereceu para atenuar minha ansiedade e, depois de muita insistência, permiti que ela removesse um pouco do peso invisível sobre meus ombros, com seu poder de mentalist ela estava mais que satisfeita em ajudar.
Remover total ou parcialmente as emoções era algo perigoso de se fazer, ela sabia disso, e se limitou a apenas suavizar a pressão que eu estava colocando em mim mesma.
— O que foi? — perguntei a Boris quando percebi que ele estava quieto demais, seus olhos âmbares cautelosamente me estudando.
— Nada — respondeu, balançando a cabeça. — Eu acho que se Zyan estivesse morto, a essa altura já saberíamos.
Respirei fundo.
— Vai contar para o Dylan? — Ísis perguntou.
— Não posso falar com ele sobre isso, ele me mataria se descobrisse sobre ontem. — Balancei a cabeça em reprovação, mas Ísis pareceu ter outra opinião, pois ela soltou uma curta gargalhada.
— Te matar? — indagou, acentuando a curva da sobrancelha — Dylan iniciaria uma guerra para te defender, isso sim.
Seu comentário me causou certo desconforto ao pensar na alternativa, decidi que era hora de cessar o assunto. A última coisa que precisava era ser motivo para iniciar uma guerra entre portadores, e também estava farta de ter que lidar com o Zyan. Eu torcia sim para que ele estivesse vivo e, se isso fosse verdade, me manteria o mais distante possível dele.
Os demais especialistas atravessaram aos poucos os batentes da entrada do salão e o local se preencheu com ruídos de conversas e risadas. Eu estava com a roupa preparada para o treino, apenas removi o moletom que usava por cima e o coloquei no banco.
— Lanys... — Boris chamou.
— Hum? — Ergui a cabeça para fitá-lo e notei que sua atenção estava retida em outro ponto.
Virei o rosto para a mesma direção e, no mesmo instante, um terremoto de sentimentos e lembranças chacoalhou minhas emoções e meus muros internos, que encontravam-se irrisórios depois de tantos acontecimentos contínuos. Meus músculos tencionaram ao reconhecer a figura que acabara de cruzar a porta dupla.
— Parece que alguém saiu da reabilitação... — murmurou o jovem ao meu lado.
Todos os olhares se voltaram para o homem de pele bronzeada e cabelos com um leve ondulado, seus fios eram escuros, mas as pontas desbotavam em vermelho-fogo. Seus olhos cintilavam uma cor única de amarelo-alaranjado, tão intensa que parecia prestes a queimar qualquer um que se atrevesse a olhá-lo de forma depreciativa.
Era inegável o quanto a aparência dele era extremamente atrativa, me atreveria até a dizer que ele era o mais bonito de todo o instituto. Algumas pessoas sussurraram ao vê-lo e seus olhares eram sempre hesitantes, a reputação dele era um tanto quebrada, ainda mais depois de um surto que teve quando quase incinerou um colega por um motivo fútil. Algo que ainda assombrava meus pesadelos.
Nicolay era uma bomba relógio. Ele perdeu seus pais na mesma missão em que perdi o meu pai e, assim como eu, também tinha um irmão mais novo, porém a responsabilidade afetou seu psicológico de maneira inversa ao que aconteceu comigo. Aos poucos, ele se afundou com o uso de todo o tipo pesado de narcótico e talvez até outras substâncias psicoativas. Eu assisti tudo bem de perto, mais perto do que queria.
Era assim que eu conhecia a reputação do Carpe Noctem e o que acontecia de fato lá dentro.
Como se soubesse o que eu estava pensando, uma mão sedosa encontrou as minhas e, só então, reparei que estava prestes a arrancar a pele do canto da minha unha. Olhei para a Ísis, que me ofereceu seu sorriso pacífico, tentando transmitir calmaria para suportar o furacão em minha mente.
Somente eu e ela sabíamos o quanto a presença do Nicolay me contaminava com vivências nocivas e Ísis era a única pessoa com quem desabafei os porquês.
— Nico, é um prazer tê-lo de volta ao instituto. — A voz intensa de Marcellus reverberou pelas paredes enquanto ele marchava energicamente em direção ao garoto.
Ambos se cumprimentaram com um aperto de mãos e notei que Nicolay carregava um semblante bem mais plácido do que a última vez que o tinha visto. Talvez a reabilitação realmente tivesse o ajudado. Sobretudo, isso não era o suficiente para apagar o que tinha feito durante seus altos e baixos.
— Quem é o gostoso que acabou de chegar? — Arya apareceu de repente e se juntou a nós no chão.
— Nicolay — Boris respondeu de maneira fria. — Ex-namorado da Alanys. — A garota fitou-me surpresa e eu fuzilei meu amigo com o olhar.
Balancei a cabeça e ele apenas deu de ombros.
— Ela ia descobrir mais cedo ou mais tarde, não se preocupe, Lanys — defendeu-se com um sorriso debochado.
— Desculpa. Se eu soubesse não teria feito esse comentário idiota — Arya pareceu ser sincera.
— Não precisa se desculpar, isso está no passado. — Limitei-me a sorrir.
— Ele tem o mesmo poder que o meu, não é? Ele é um flamer, consigo sentir. — Seus olhos estreitaram para Nicolay que agora conversava com os demais colegas da turma.
— Sim — dessa vez Ísis respondeu. — Tome cuidado, ele pode ser impulsivo e babaca — Um tom desprezível emanou de suas palavras e eu dei um beliscão discreto em sua mão. Ela entendeu o recado e abaixou a cabeça, deixando o assunto morrer.
— Como você está, Arya? — perguntei, lembrando do ocorrido no final do turno.
— Foi só um susto — respondeu timidamente. — Meus avós são humanos e têm alguns problemas de saúde. Isso mexeu comigo, mas eles estão bem, obrigada por perguntar. — Seus lábios formaram uma curva simples.
Em alguns minutos, nosso instrutor ordenou que todos se espalhassem para iniciar o treino. Eu ainda estava vetada de usar meus poderes, então aproveitei para tentar treinar com alguma arma. Escolhi duas espadas com ondulações em suas lâminas e tentei aprender alguns movimentos. Marcellus me corrigia a cada segundo, o que estava começando a esgotar minha paciência, senti que mais um pouco e eu desistiria.
Para competir, era difícil estar no mesmo ambiente que meu ex, ainda mais quando eu o pegava com o olhar atento em mim algumas vezes. Desviei sempre que possível.
Recordei nitidamente que ele estava na turma avançada antes de ser internado, acredito que, como punição para reparar seus atos, Dylan o teria rebaixado. Isso que ele só sabia uma parte da verdadeira história...
Concentrei-me nos movimentos que meu instrutor orientava e, assim, mantive minha mente ocupada por tempo o suficiente para ignorar os arredores. Pelo menos até a hora do treino encerrar. Aos poucos o local foi esvaziando e eu me prontifiquei a ajudar Marcellus com a bagunça. Depois de recolher alguns materiais que foram jogados no chão, não percebi quando o instrutor saiu do recinto, até o momento em que virei e vi, no canto do salão, a única pessoa que havia ficado para trás.
Nicolay estava com suas íris quentes e brilhantes direcionadas a mim, enquanto desenrolava uma bandagem elástica entornada em seu punho. Sua camisa de mangas curtas estava colada em seu corpo graças ao suor, o que destacou os bíceps definidos que eu ainda recordava muito bem.
Ele estava com a respiração estável, apesar do rosto úmido pelas gotas deslizando por suas têmporas. Se fosse há um tempo atrás, eu teria pulado em seu colo diante de tanta intensidade no modo como me observava, o fogo em seus olhos era sedutor, mas naquele momento eu o conhecia bem o suficiente.
Engoli em seco e cortei o contato visual, recolhi as espadas que tinha passado horas brincando e as devolvi aos seus devidos lugares. Percebi uma movimentação logo atrás de mim e encontrei Nicolay a poucos passos de distância.
— Precisamos conversar.
— Na verdade, não precisamos não — afirmei com determinação.
Ele se aproximou mais um passo e eu recuei dois, estar perto dele fazia minha pele arder.
— Não se aproxime de mim — ordenei, sentindo meu coração acelerando em meu peito.
Ele inclinou a cabeça e me analisou por inteiro.
— Você não pode simplesmente fugir de mim, onde está a maturidade nisso?
Eu ri, na verdade, ressoou como uma gargalhada doentia, carregada de receios mal resolvidos. Ele queria mesmo falar de maturidade justo comigo? Depois de tudo que ele tinha feito? Depois de...
— É você quem não pode chegar e achar que tem direito de exigir alguma coisa, apagaram suas memórias na reabilitação por acaso? — Soei mais ríspida do que pretendia.
— Não — respondeu com a voz rouca, algo que fez meus pelos arrepiarem, mas não em um sentido bom. — Eu sei exatamente o que fiz e por isso precisamos conversar, quer mesmo fingir que nada aconteceu e me ignorar? Você nem sequer...
— Chega! — Eu sabia o que ele ia dizer e optei por interrompê-lo. — Não quero conversar sobre isso, não importa mais.
Não esperei uma resposta, encontrei meu caminho até a saída e desapareci por ela.
Um fim de semana havia passado e eu ainda não tinha visto nenhuma notícia sequer sobre Zyan, aquilo era como uma coceira sob minha pele. Era difícil encarar Noah e Dylan, então passei o fim de semana os evitando, na esperança que o problema "Pai das Sombras" fosse finalmente resolvido.
Também tive que engolir acúleos e suportar a presença do Nicolay durante os treinos, nossa conversa anterior martelando na minha cabeça, porém eu não voltaria atrás, não tínhamos absolutamente nada para dizer um ao outro.
Bem, talvez até tivesse, mas eu não me sentia preparada para ouvir quaisquer que fossem suas desculpas. Imaginei que pelo fato de eu não ter mencionado o que aconteceu entre nós com ninguém, exceto Ísis, fosse o suficiente para ele entender que deveria me deixar em paz.
— Você ficou sabendo do que aconteceu essa manhã?
Ísis me analisou cautelosamente e eu neguei em silêncio, deixando que prosseguisse.
— Teve uma explosão em uma das indústrias Wildeed no setor 5, Boris foi chamado para prestar assistência.
— Wildeed? Não é a empresa de automóveis? — Crispei o cenho, buscando a informação no emaranhado de pensamentos da minha cabeça.
— Sim, eles fabricam carros comuns — explicou. — Você realmente não olha as notícias no seu celular, né?
Na verdade, eu estava em uma busca incansável sobre alguma coisa a respeito do Zyan que acabei me desconectando do restante do mundo. Peguei o aparelho eletrônico em meu bolso e procurei pelas reportagens. As fontes confirmaram o que Ísis dissera e, ao que tudo indicava, ocorrera nas primeiras horas do período matutino.
Havia vídeos gravados por pessoas próximas à área, que transmitiram a situação da indústria no momento pós-explosão. Uma fumaça espessa e pardacenta ergueu-se pelo ar através dos vidros superiores estourados, esvaindo-se também pelas aberturas no concreto da construção. A reportagem relatava que em torno de quinze pessoas ficaram feridas. No mínimo vinte já tinham óbito confirmado.
E todos eram humanos.
Um sabor azedo incitou meu estômago, me fazendo crispar os lábios inconscientemente. Meu dedo angustiado deslizou pela tela e meus olhos percorreram por todos os comentários publicados nas matérias. Tentei descobrir qual teria sido o motivo da explosão, mas até aquele momento a informação era uma incógnita.
Acreditei que essa fosse a razão de alguns especialistas terem sido convocados, para conter o incêndio e identificar as causas. Era mais fácil para nós, do que pôr a vida de mais humanos em risco.
A Wildeed era uma marca renomada, com uma ótima reputação entre a sociedade por ser a melhor em vender veículos acessíveis a pessoas com pouco rendimento. Distribuída por várias sedes tanto ao norte quanto ao sul, estava também sempre bem posicionada nos rankings de melhores empresas a gerar empregos.
Fui incapaz de imaginar o quão pavoroso estaria sendo para os familiares dos sobreviventes e, pior ainda, para os que perderam seus entes queridos em uma tragédia tão dolorosa.
O aperto no peito me deixou absorta durante meu turno.
Jamais esqueceria a sensação vazia de perder alguém importante, vivenciei a impetuosidade do luto duas vezes e era algo que não desejava nem ao pior dos meus inimigos.
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