10 - Boas garotas vão para o inferno
A temperatura gélida do escritório do Dylan não estava fria o suficiente para me incomodar, a ira que inflamava dentro de mim abrasava meu corpo somente com a sua intensidade. Minha perna direita balançava ansiosa, chocando ininterruptamente o calcanhar contra o porcelanato, meu corpo inclinado estava apoiado pelos cotovelos, cada um em uma das minhas coxas. Respirei fundo diversas vezes, controlando a vontade irrefletida de esmagar meus próprios dedos.
Abaixei a cabeça e fechei os olhos, uma tentativa falha de acalmar o cérebro prestes a explodir, foi a pior ideia que tive. As imagens estavam armazenadas nitidamente no fundo da minha mente, como se ainda estivessem diante dos meus olhos. Apenas uma parte do que restou daquele homem.
Soltei um suspiro forte ao recordar das marcas de cortes e os contornos roxos que reparei em sua face, ele com certeza não teve uma morte rápida. Encontrei meu ser em pedaços no tártaro do meu próprio inferno, suplicando para que não passasse de uma mera ilusão, um jogo mental criado por Zyan que logo se iria se esvair e eu não precisaria me sentir tão inútil por não ter conseguido ajudar aquele rapaz.
— Eu sinto muito, Lanys. — A voz de Dylan me fez abrir os olhos e erguer o olhar. — Eu devia ter previsto que Zyan faria algo assim. Ele quer mexer com sua cabeça, te assustar — disse, esticando o braço com um copo de água na mão que eu rapidamente aceitei.
— Então ele conseguiu — respondi ríspida, antes de dar um longo gole, sorvendo todo o líquido e entregando o copo novamente.
Bastava um bater de cílios e a cena da cabeça decapitada ressurgia em flashes. Expeli o ar de meus pulmões, aborrecida com meus próprios pensamentos que já não controlava. Levei minhas mãos ao rosto e pressionei sutilmente minhas têmporas, tentando expulsar aquela sensação palpitante. O nó que se formava na garganta e a vontade extrema de chorar, faziam o oxigênio parecer mais denso e mais difícil de ser inalado.
Que merda que eu fiz? Isso não pode estar acontecendo!
— Eu sei o que você está fazendo — O tom baixo do loiro ecoou toda compaixão e lamento que eu tinha certeza que estavam explícitas em seu olhar também, porém eu recusava-me a encará-lo. — Por favor, pare. Sei que está se sentindo culpada.
Apertei meus olhos, suplicando para que as cenas de terror parassem de me torturar. Tentei novamente respirar fundo, sentindo meu rosto aquecer e lágrimas se acumularem, premeditando o choro que viria em seguida. Abri os olhos de novo e fixei minha atenção no homem sentado na poltrona à minha frente.
— Não fui discreta o suficiente, deveria ter sido mais cuidadosa e talvez ele estivesse vivo agora — desabafei, com a voz trêmula e falha emanando toda a amargura contida em meu coração. Isso é tudo e unicamente culpa minha, por ser tão burra! — Ele se arriscou quando me avisou e eu não tive tempo nem de retribuí-lo por isso — dizer isso em voz alta doeu como corte de mil lâminas.
Minha perna oscilava-se ainda mais rápido. Toda aflição, angústia e culpa expelidas através dos meus gestos e eu não tinha autodomínio algum, também não me importei em ter. Só queria me punir por ser tão tonta, desatenta e negligente. Ele sofreu e Zyan fez questão que eu soubesse disso. Aquele pobre humano foi torturado, espancado e morto por me avisar de um perigo, que no final das contas, não resultou como ele esperava.
E se apostar com minha maré de azar, logo mais seria eu quem estaria do outro lado da fronteira. Nada poderia me proteger da fúria do Pai das Sombras e toda sua turma de atormentados, nem mesmo Dylan, por mais que eu soubesse que ele tentaria de tudo para evitar isso.
E então, seria a minha vez de ser torturada e morta por Zyan.
O sacrifício do barman seria em vão. Barman. Como você é escrota, Alanys. Nem sequer sabe o nome daquele que tentou salvar sua vida e pagou caro por isso. Eu poderia evaporar naquele momento, poderia me afundar na minha própria merda bem ali, meu rosto queimou com tanta vergonha e repulsa de mim mesma.
— Você o conhecia? — perguntei e recebi um gesto negativo com a cabeça.
— Só sei que era humano e como trabalhava para Zyan, fico de mãos atadas — falou com uma pontada de decepção.
— Que merda, Dylan — praguejei, abaixando a cabeça com os olhos ardentes e úmidos. — Eu passei a porra do dia inteiro tentando fingir que estava tudo normal, que nada havia mudado, eu pensava que... — minha voz vacilou — Eu achei que ignorando o que aconteceu, as merdas que fiz e as consequências que terei que arcar, seria mais fácil de aceitar.
Um instante de silêncio se passou até o farfalhar suave de suas calças soar bem próximo a mim.
— Eu te prometo que vou fazer de tudo para garantir que sua vida volte ao que era antes. — Meus pelos arrepiaram quando senti suas mãos tocarem gentilmente as minhas, antes de puxar uma delas em direção ao seu rosto e depositar um beijo casto em meu pulso. — Eu realmente sinto muito pelo o humano, posso encontrar formas de fazer Zyan pagar por isso.
Ergui meu rosto rapidamente ao ouvi-lo para ver que ele estava agachado a minha frente, segurando minha mão com tanto carinho e delicadeza entre as suas. Suas íris naturalmente pigmentadas de cobalto estavam explodindo em faíscas brancas, o seu poder de lighter querendo mostrar presença, enterrado na sua alma.
— Não — respondi rapidamente e coloquei minha outra mão sobre a dele. — É melhor não irritamos ele, eu ainda nem sequer conversei com Safira sobre o julgamento, não sei o que dizer a ela e estou aproveitando o tempo que ainda tenho. Você acha que vai demorar muito para ser marcado?
Os pontinhos brancos em seus olhos dissiparam-se e olhos agora completamente azuis piscaram para mim antes que ele respondesse.
— Na verdade, estou surpreso que Zyan não tenha marcado um dia ainda. — Ele suspirou — Não acho que seja uma boa ideia você falar com ela agora, vamos esperar primeiro, pode ser?
Confirmei silenciosamente com um gesto de cabeça.
— Quero que tire o resto do dia de folga, fique com sua irmã. Na segunda espero te ver melhor.
O loiro deu um sorriso acolhedor, forcei para retribuí-lo e assenti. Não expressei mais uma palavra sequer, então me despedi dele e saí do escritório. Desci até a garagem e, em passos lentos, fui até minha moto.
A dor cruciante me dizimava de dentro para fora enquanto eu seguia meu rumo para casa, entupindo-me com reproduções ferozes de tudo o que queria esquecer. Não sei se conseguiria me perdoar. Se não tivesse pisado naquela boate, nada daquilo teria acontecido. Eu não teria que viver sabendo que alguém que foi gentil comigo, em uma única noite, foi assassinado por isso.
Nem mesmo um dos melhores escapamentos silenciosos foi capaz de abafar o ronco estrondoso do motor quando percorri as ruas com toda velocidade. Meus dedos espremeram as manoplas da moto toda vez que parei em um sinal vermelho, mas não demorou muito para chegar no meu destino. Entrei às pressas direto para o meu quarto e me joguei na cama. E então, finalmente sozinha, permiti sentir meu coração retrair em meu peito e as lágrimas deslizarem incessamente pelo meu rosto.
Eu não sabia seu nome, sua idade, se tinha família, não sabia absolutamente nada, o que fez a inutilidade disseminar seu véu inconsolável sobre o meu céu interior. Envolvi meu travesseiro em meus braços, agarrando-o com firmeza, como se o ato fosse o suficiente para repelir toda tristeza que dominava meu corpo, fazendo-me soluçar e tremer.
Como uma pessoa consegue ser tão fria e insensível assim? Zyan é um homem completamente desprezível!
Meu choro me puniu cruelmente, ao mesmo momento que eu nutri a minha própria escuridão, deixei-me nublar pela raiva e desferi meus piores pensamentos a quem os merecia. Foram longos minutos derretendo-me em lágrimas, até o ponto que meus olhos pesaram, o esgotamento mental me vulnerabilizou e eu cochilei.
Cenas do embrulho e do conteúdo dentro da caixa assombraram meus pesadelos.
O poder (inconsciente).
Estava no alto da madrugada quando deixei Safira dormindo tranquilamente e me esgueirei até a garagem para pegar a moto. O tempo estava fechado e gotas finas de chuva caíam do céu nublado. Um tom escuro de cinza ocultou todas as estrelas e a lua, nos deixando sob uma escuridão imensurável, porém isso não me incomodou, nem um pouco. Estava frio, mas eu me protegi bem com uma blusa manga longa, um casaco pesado e grosso por cima, calças confortáveis e macias e botas de cano médio.
Meu corpo estava enfraquecido, porque meu lado consciente não tinha descansado muito até a hora que Safira chegou da escola. Depois de ficar um tempo com a irmã, a garota entrou em uma busca incansável sobre todos os dados que pudesse coletar a respeito de Zyan na internet. O homem era o verdadeiro deus dos negócios, ela teve que ler muitas matérias e fazer anotações para ter um pouquinho de noção da amplitude de seu legado. Foram apenas uns adicionais, pois eu já o conhecia o suficiente.
A garota descobriu que Zyan deu um jeitinho de conseguir colocar alguma de suas empresas do nosso lado da barreira, mesmo estando em nome de outras pessoas, ele estava sempre lá como "apoiador", "investidor" ou qualquer outra merda parecida. As matérias também sempre falavam bem de sua pessoa, era engraçado a adoração que os humanos tinham por sua imagem. Ela decidiu que era tudo mentira, ou ele era muito bom em subornar a imprensa para divulgar sua "boa" reputação, ou poucos conheciam a sua verdadeira face.
Eu não era a faísca de uma flamer, no entanto quando um fogo líquido correu nas veias dela, eu despertei. E estava com muita energia para jogar fora, ou melhor, muita luz. Quando a chuva intensificou, o céu escureceu ainda mais e os sons aterrorizantes de trovões começaram a ressoar por toda a cidade, entendi isso como um sinal divino. Um sinal que usei como combustível para me mover rapidamente pelas ruas e abusando da potência máxima que a moto permitia.
Atravessei a ponte em direção a Ilha Cinza e demorou apenas alguns minutos para chegar em meu destino. Um estrondoso trovão fez a terra tremer quando desci da moto e retirei o capacete. Puxei o capuz do casaco sobre a cabeça enquanto as gotas geladas de água ensopavam a calça. Em seguida, andei pela trilha marcada entre uma pequena mata.
Foram poucos minutos de caminhada cruzando por árvores medianas, não eram muitas como a Floresta Kochgiwe, porém tinha a quantidade ideal de vegetação para disfarçar o armazém que ali ficava. Um raio partiu o céu, iluminando tudo ao meu redor com sua breve aparição, só que eu não precisava dele para enxergar por onde andava, minha própria luz interior e intuição me mostravam o caminho.
Parei em frente a um portão metálico de cor azul. Exceto pelo barulho da chuva e dos raios dançantes sobre minha cabeça, não havia nenhum ruído a mais. Não havia luzes acesas, o que indicava que ninguém estava no lugar. Bom, eu preferi não me apegar a essa ideia, sei que, quando descobrisse, a garota se odiaria se eu causasse qualquer dano aos humanos ou inocentes. Dei meu jeito de arrombar a porta da entrada lateral que encontrei quando contornei o local. Do lado de dentro, nenhum sinal de vida. Não me preocupei em não fazer barulhos, eu queria que alguém saísse, talvez até mesmo um segurança. Porém ninguém apareceu.
O ar gelado estava disputando contra o casaco pesado para se infiltrar sob minhas roupas e me congelar até os ossos, entretanto nem o frio me faria recuar. Eu não tive interesse em confirmar o que tinha no armazém, mesmo com pouca iluminação eu sabia que alguns materiais importantes estavam guardados ali. Materiais que seriam usados na inauguração da nova concessionária do Zyan. Pelas pesquisas que a minha consciente fez, o homem tinha uma certa paixão por carros. Já eu sabia exatamente o porquê.
— Tem alguém aqui? — perguntei em tom alto, mas a única resposta que tive foi o eco da minha própria voz levemente áspera.
Respirei fundo antes de sair e retornei para a frente do local, não me dando o trabalho de fechar a porta. Tomei meu tempo e minha distância apenas para observar o galpão. Ele era bem alto, os metais nos telhados cantarolavam com a intensidade que a água caía do céu, pelo visto a chuva também tinha pegado seu tempo para se estimular, enquanto tentáculos luminosos agitavam-se nas nuvens escuras.
A garota poderia até ser uma lighter, mas ela logo descobriria que tal poder também tinha uma face bem mais... obscura. Uma que eu estava ansiando explorar desde que ela se entregou ao ódio e manchou sua alma com desejos sombrios. Se eu fosse condenada ao inferno por causa dela, assim seria. Encarei o céu mais uma vez, reconhecendo o potencial eletromagnético que eu estava curiosa para saber o quanto poderia manipulá-lo.
Então, me afastei alguns passos, ficando próxima a trilha por onde entrei e estendi uma das minhas mãos. Fechei os olhos e me concentrei, ignorei a sensação gelada na pouca pele exposta, ignorei a água fria escorrendo pelos meus dedos erguidos em direção ao céu, ignorei o barulho da chuva e o cheiro de terra molhada ao meu entorno, ignorei tudo. Apertei um pouco os olhos e chamei o dom, chamei a luz, eu a seduzi com o canto dos trovões.
No momento que encontrei a conexão com o que estava no céu e as correntes eletromagnéticas que estavam dentro do meu âmago, eu abri os olhos novamente. As bordas da minha visão estavam nubladas e esbranquiçadas, eu sabia que o dom estava sendo invocado e que se alguém me visse ali, veriam uma mulher de olhos completamente brancos manipulando a face negativa de um poder tão nobre. Meus olhos desceram para o galpão, ecos tenebrosos revoltaram o céu e, no momento que apontei para o armazém, os relâmpagos responderam a minha convocação e convenceram as descargas elétricas sobre as nuvens a ceder ao meu desejo.
Era uma visão linda e incrível. Clarões reluziram no céu cinza-escuro e iluminaram as copas das árvores e o campo, porém todos os raios tinham apenas um alvo: aquele que eu indiquei. E eles o acertaram. Suas luminescências violentas serpentearam no ar e festejaram sobre a estrutura, queimando o telhado frágil e iniciando um verdadeiro caos.
Nem mesmo a água da chuva foi pária contra o incêndio que se alastrou pelas brechas no telhado. Seja lá o que as descargas elétricas tivessem acertado dentro do gigante armazém, foi satisfatoriamente suficiente para impulsionar os danos quando toda a edificação implodiu. Lascas de diversos materiais foram arremessadas no ar e demorou apenas alguns minutos para o fogo crepitar e consumir tudo em seu caminho.
— Estamos apenas começando — sibilei para mim mesma. No momento em que me senti orgulhosa, assobiei e virei as costas para a destruição que causei, em seguida fiz o caminho a mais outros três lugares
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