VINTE E SEIS - Por Valente
Valente
Garota desobediente. Teimosa!
Analisei o estrago da minha reação à invasão de Isabela: um telefone quebrado, o braço da cadeira fora do encaixe, uma pilha de papéis rasgadas e dezenas de cacos de porta retratos espatifados. Olhei o quadro de cortiço ao fundo.
Será que ela teve tempo de ler toda a matéria?
Praguejei e me amaldiçoei dos piores nomes possíveis por ter esquecido a passagem aberta quando fui ao banheiro. Fiquei preocupado que ela tivesse lido também o livro encantado. Peguei o objeto de capa dura azul marinho na estante e o folheei para me certificar. Não parecia ter sido remexido.
Ia fechar o livro, mas letras invisíveis, as quais eu já estava habituado, entraram em ação e começaram a formar uma nova mensagem. Observei a caligrafia bem desenhada enquanto as letras apareciam:
"Se o Enforcado deixasse de reclamar da corda, veria que possui corpo e cabeça saudáveis. E isso é tudo o que um homem precisa para reparar qualquer dano."
Claro. Eu sempre sou o culpado no final das contas.
Para minha surpresa, o livro continuou:
"Essa noite, dois podem ser salvos. A garota está no beco."
A garota está no beco? Mas que mensagem maldita é essa? O livro nunca se refere a nada além de mim.
Devolvi-o à prateleira e enterrei os dedos nos cabelos compridos. No beco. A garota.
Puxei o Dicionário Hindu na prateleira falsa e observei as paredes se arrastarem para ocultar o Salão do Zodíaco.
"Dois podem ser salvos."
A garota precisava ser salva? De quê?
O ponteiro do relógio atrás do balcão passava das dez horas da noite. Lembrei que não havia mais ônibus naquele horário. Isabela devia estar sozinha, andando a esmo por ruas desertas. Tramando um jeito de ir embora sem precisar pedir minha ajuda. Como ela poderia pensar em voltar ao castelo depois do meu ataque de fúria?
Nunca me senti tão culpado e arrependido na vida. Se algo ruim acontecesse com ela... Se alguém encostasse um dedo naquela pele macia. A possibilidade varreu meu juízo e minha raiva para longe. O caminho pela estrada até o ponto de ônibus era perigoso.
Desci as escadas, angustiado. Soltei Bruce que dormia na casinha ao lado da porta dupla de madeira.
— Vem, garoto. Vamos buscar uma garota enxerida.
Segurei ele pela coleira e cruzamos o gramado onde saímos pelos portões de ferro.
Estava decidido. Assim que eu a encontrasse, a deixaria em casa e a mandaria embora. Não era possível. Ela não obedecia nada do que eu dizia. Inferno! Garota irritante. Que irritantemente colocava todo meu juízo a prova.
Tudo bem. Eu sabia que minha foto deveria constar no Guiness Book como recordista em babaquice. Depois de todas as minhas atitudes autoritárias e arrogantes, Isabela se portava de uma maneira muito responsável e profissional.
Se não fosse a aversão dela as regras, eu não teria nada a dizer.
Eu teria me mandado para o inferno há muito tempo.
Mas bastava observar a situação em que me encontrava.
Qual foi a vez que saí preocupado atrás de alguma mulher? Nenhuma.
Não precisava ser nenhum gênio da física para concluir que Isabela só me trazia problemas.
Desci a rampa que separava a estrada das ruas com piso de paralelepípedo. Ninguém no ponto de ônibus. Andei por mais alguns metros. Parei debaixo de um poste de luz. Como previsto, a rua estava deserta. O comércio que se resumia a dois bares, tinha as portas abaixadas.
Será que ela conseguiu carona?
Torci para estar enganado. Entrar no carro de estranhos em beira de estrada se aproximava do suicídio.
Dei passos calculados para a esquerda. Pensei em perguntar para algum dos moradores das casas ocultas pelos muros enormes, se haviam notado algo estranho. Isabela não podia estar longe. Fazia pouquíssimo tempo que deixou o castelo.
Apurei os ouvidos. Busquei algum ruído, algum som, qualquer coisa. Desgraça! Se uma fatalidade acontecesse à ela, jamais me perdoaria. A imaginei perdida, encurralada. Isabela era um prato cheio para a imaginação de pervertidos. Aquele olhar inocente. Aquela boca convidativa. O contraste do cabelo castanho com a pele perolada. O remorso me corroeu as entranhas.
O que foi que eu fiz?
Enterrei os dedos no cabelo e os puxei por pura frustração.
Segui um metro ou dois e fitei o outro lado da rua.
Um beco.
"A garota, está no beco."
Atravessei a rua, desconfiado. Quem diria. Eu, sendo guiado por instruções de um livro encantado. Puxei a coleira de Bruce e encostei na parede de tijolos gastos antes de mergulhar naquele breu.
Praguejei por lembrar de uma coisa bem mais simples. Ridiculamente óbvia. Busquei o celular no bolso da calça e disquei o número de Isabela. Segundos depois, o toque ecoou no espaço ao lado. Em seguida, ouvi vozes murmuradas. Uma delas me pareceu choramingar e pelo tom, era feminina. A ligação foi recusada.
Uma dor visceral ganhou vida no meu estômago. Franzi o cenho e escorreguei pela parede. De cócoras no chão, vi três círculos luminosos, sob algo que confirmava meu terror. Os olhos arregalados de Isabela se destacavam no breu pelo brilho das lanternas.
Seriam três contra um então. Quer dizer, dois. Meu rotweiller adestrado já havia se provado muito mais eficiente do que um homem forte.
— Shhh. Fique bem quieto Bruce. — Pedi baixo enquanto formulava um plano na cabeça. — Nós vamos pegar aqueles covardes de surpresa.
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Minha nossa senhooooora! Aguenta coração! Beijosss e até sexta
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