TRINTE E TRÊS - Por Rosa
Passei a corrente na fechadura e espiei pelo olho mágico. Valente. Uma tonelada saiu de minhas costas. Puxei a corrente e sequei os olhos. Foi inútil. As lágrimas ainda estavam vivas e queriam porque queriam passear pela minha bochecha.
Girei a maçaneta..
— Eu trouxe refrigerante comum e diet. Sei que mulheres têm mania de dieta. Se bem que... Acho que não vai fazer sentido, mas comprei sobremesa também. — Ele remexeu algo dentro das sacolas e falou sem olhar para mim. — Você come mousse de chocolate?
A sua tentativa fofa de me agradar só intensificou a vontade de chorar. Acabei soluçando alto. Valente ergueu o rosto das sacolas e endureceu na mesma hora.
— O que aconteceu? Aquele desgraçado apareceu aqui?— Rosnou.
Ele pousou as compras no chão e se precipitou para dentro como um detetive em busca de pistas.
— Discuti com a Isis.
— Ah — ele coçou a cabeça parecendo envergonhado. — Acho que a coisa não anda nada fácil pra gente nesses dias, não é?
Ri sem vontade no meio de uma fungada de nariz. Acabei soando como o relincho de um porco. O que nos fez gargalhar alguns instantes.
— Vou precisar de uma arma se você continuar se metendo em apuros assim, Isabela.
— Pra matar o Rambo? — Perguntei surpresa com minha capacidade de ainda fazer piadas. — Acho que vai precisar de mais que isso. Aquele deve ter tomado mamadeira de testosterona.
Gargalhei feito uma louca, talvez de desespero. Valente me acompanhou. Respirei fundo e regulei a respiração:
— Desculpa por ter atrapalhado o encontro romântico de vocês.
Mordi a língua. Valente não havia feito nada além de me ajudar, e eu acabava de soltar uma alfinetada. As órbitas dele giraram enlouquecidas por todos os lados. Ele parecia lutar com algo que queria me dizer. Por fim, ele se aproximou de mim. Sua sombra de um metro e oitenta me cobriu. Senti o seu perfume alucinógeno. Masculino, envolvente. Valente colocou a mão em minha nuca e secou meu rosto com o polegar.
Fraquejei como uma maria-mole.
Ele me fitou com seus cílios espessos. O olhar intenso dizia mais coisas do que qualquer palavra que trocamos. Valente repetiu o gesto com a outra mão e deu um passo a frente.
Suspirei. Ele respirou alto.
Me senti presa, hipnotizada por suas safiras. Mas em um tipo de sufoco que valia a pena. Um aperto cujo alívio não seria a libertação, aquilo era uma espécie de nó que fazia uma mísera distância entre nós parecer uma tortura. Um bálsamo dilacerante.
Valente inclinou o rosto em direção ao meu. Por pouco não surtei. Apesar do olhar hesitante dele, deixei que se aproximasse, meu coração batia forte na garganta.
De súbito ele se distanciou, como se tivesse levado um choque. Saí do transe. Pisquei os olhos e a sala voltou a entrar em foco.
— Por que você saiu com ele? — Ele andou de um lado para o outro entre o sofá e a televisão.
— O quê? — Não entendi que raio de pergunta foi aquela.
— Responde, Isabela. — Ele começou a andar de um lado para o outro, parecia um maluco.
— Primeiro lugar: Eu não te devo satisfação. — Levantei indignada e o encarei. — Segundo: Fala direito comigo!
— Desculpa. Só, me responde. — Valente falou mais baixo e fechou os olhos.
— Por que você quer saber?
— Porque sim.
Valente interrompeu os movimentos de fera enjaulada e me encarou irritado.
Bufei e voltei a me sentar no sofá.
— Porque eu quis. — Eu sou obrigada a responder, mas ele não?
— Isso é mentira.
— Me diz você, Valente. Por que quer saber o motivo? — Se eu dissesse a verdade, ele provavelmente mataria o Gastão.
Valente sentou tão rápido no sofá que me aprumei com o susto. Seu toque suave em meu queixo contrastava com sua fala entredentes.
— Pra minha alma ficar em paz. — Ele insistiu entredentes. — Diz.
— Já falei. Eu quis. — Ele fez uma careta com a resposta.
— Eu tenho especialidade em reconhecer mentiras, Isabela.
— E eu tenho em enxergar além de carcaças.
Ele me ignorou.
— Ele beijou você?
Sacudi o rosto. Eu ia enlouquecer com esses rompantes. Desejei que ele tivesse alguma especialidade também em psicologia. Muito em breve eu poderia precisar de tratamento.
Valente deixou os braços caírem ao lado do corpo.
Qual o sentido em convidar uma pessoa para sair, e depois agir como se estivesse com ciúmes da amiga dela? Eu precisava descobrir. Acho que depois da experiência de vida e morte, e de escapar ilesa de um encontro com o anticristo, tornei-me uma pessoa mais corajosa. Porque escorreguei no sofá até encostar nossos joelhos.
— E se eu tivesse beijado?
Havia um pedido mudo de socorro em sua expressão quando me fitou. Os segundos se arrastaram. Os ombros dele subiram e desceram. Valente abriu a boca, pareceu formar uma resposta, mas sua fala travou.
Seu estado emocional me fez imaginar que ele se encontrava à beira de uma crise. Mas a pergunta me pareceu tão simples. Seria a resposta complexa assim? O que Valente poderia revelar de tamanha importância para deixá-lo naquele estado? Meu Deus! Ele sentia algo por mim? A possibilidade fez meu coração descer uma montanha-russa sem o cinto de segurança. Não. Talvez tenha sido o trauma de seu passado. Com certeza deixou uma marca. Deveria ter lhe causado uma espécie de fobia em intimidade.
Valente apoiou os cotovelos nos joelhos e escondeu o rosto. Coitado. Fiquei com tanta dó de assistir sua aflição. Lá estava novamente, o garotinho perdido por baixo da casca grossa. Um sentimento começou a descer por meus braços. Cheguei a esticá-los para abraçar Valente. Freei no meio do trajeto. Fiquei receosa. Ele podia me repelir, sei lá.
— Isabela, eu...
— Deixa pra lá, Valente — esfreguei os ombros dele com a força de uma formiga, ele retesou os músculos, mas não me afastou — Vem.
Incorporei a Miss Ousadia e o puxei pela mão até a cozinha. Ele recolheu as compras abandonadas na porta e me seguiu calado.
Fiz uma dancinha comemorativa, com direito a pompom roxo e confetes voando. Claro, só na minha cabeça. Abri as sacolas em cima da mesa de madeira, passei as almôndegas congeladas para uma travessa de vidro e acendi o forno.
— Será que seu pai está chegando? — Ele coçou a cabeça e olhou em volta desconfiado. — Não acho que ele vá gostar de ver um cara aqui sozinho com você à noite.
— Talvez. Mas nós só estamos comendo, não tem nada demais. — Engoli em seco para disfarçar a vontade de rir ao vê-lo tão tenso. — Se você quiser ir embora, tudo bem.
— Não. Como eu vou conseguir dormir se te deixar aqui desprotegida, depois do que aquele desgraçado fez?
Valente pousou a mão sobre a minha. Sorri como uma besta. Ele não fazia ideia do quanto sua casca grossa já esfarelava.
Um som de pigarro atraiu nossos olhares. Valente guardou as mãos no bolso. Meu pai nos observava da soleira da porta. E pelo seu semblante, o lado Dark Lord encontrava-se ativado.
— Boa noite, Isabela Rosa.
Jesus! Quando meu pai engrossa a voz e pigarreia, lá vem bomba.
— Oi, pai! — Tentei não olhar para a cara de pânico de Valente. — Você chegou rápido.
— Estou atrapalhando alguma coisa?
— Não. Estamos fazendo o jantar.— Indiquei o fogão aceso atrás de mim.
Meu pai fuzilou Valente por trás de seus óculos e entrou na cozinha. Finalmente lembrou que não me via há dias e me deu dois beijos, um em cada bochecha. Ele pigarreou ao apoiar as mãos na mesa, e parou de frente para Valente.
— Prazer, Tiago Valente. — Com a voz soando mais baixa do que seu tom grave habitual, Valente estendeu a mão para ele.
— Vitor. — Meu pai pareceu relaxar um pouco. Ah, então ele esperava que eu os apresentasse.
— Eu já estava de saída. Tinha acabado de deixar Isis em casa e Isabela teve um problema pra acender o fogão. Vim ajudar.
Pelo visto, Valente era tão bom em inventar desculpas quanto eu. Que péssima resposta!
— Entendi.
Meu pai alisou uma barba inexistente. Normalmente ele não mantinha o hábito de julgar as pessoas pela aparência. No entanto, fui obrigada a concordar que Valente chamava atenção. Um metro e oitenta, forte, cabeludo, barbudo e vestido como maltrapilho.
Claro que meu pai não notaria as safiras entorpecentes. Muito menos o perfume alucinógeno. A melhor parte de Valente ficaria para meus sentidos, que tornaram-se ultrassensíveis após conhecê-lo.
Valente fez um meneio de cabeça para mim.
— Vou indo, Isabela. Prazer em conhecê-lo, Vitor.
Ele saiu apressado da cozinha, sua expressão parecendo nervosa. Teria ficado assim só por conhecer meu pai? Por quê?
Uma descarga elétrica me atingiu. Se ele desejava causar boa impressão, obviamente havia mesmo algum interesse em mim. Mas por que ele levou a Isis no drive-in?
— Rosa. Terra chamando!
Pisquei e minha vista fitou o rosto cansado do meu pai.
— Oi, pai. Desculpa, não ouvi.
— Você pode dar uma olhada nos vídeos de segurança para mim amanhã cedo? Preciso dar um pulo na clínica e pegar outra receita do meu remédio.
— Posso. — Abri o forno e ele sentou apoiando os braços na mesa. — Agora chega de pensar em trabalho. Você está com olheiras pretas.
Arrumei a cozinha e fritei na cama feito bife à milanesa. Meus pensamentos se transformavam em uma sopa de letrinhas e só formavam palavras macabras, dignas de um romance de Stephen King.
Acordei meio sem saber se dormi e fui bem cedo no modo zumbi até a Grão Puro. Liguei o computador da era paleozoica e quase entrei em coma enquanto as gravações passavam.
Fiquei um bom tempo fitando a tela sem movimento, como se assistisse gravações sobrenaturais na espera de que um fantasma aparecesse. Um porre.
Pulei da cadeira quando o sistema apitou e um ser enorme apareceu no monitor. Pelo menos dessa vez foi só na filmagem.
Gastão.
Conferi o horário na tela. Três horas da manhã.
O que diabos Gastão veio fazer aqui de madrugada?
Gastão cruzou o salão do restaurante até chegar ao espelho do corredor e tirou algo do bolso. Por aquela eu não esperava. Um pente?
Escolhi outro ângulo na câmera e o observei passar o objeto pelos seus cabelos sempre arrumados com gel e depois sorrir para si mesmo.
Surtado! Praga do inferno!
Sua camisa regata exibia os músculos gigantes dos seus braços. Não satisfeito em conferir o penteado, Gastão virou-se de lado para o espelho e iniciou uma dança ritmada aos movimentos de forçar os bíceps. Ele cerrou os dentes e forçou um braço. Virou-se para o outro lado e repetiu o gesto. Sorriu de novo. Como se estivesse se apresentando em algum daqueles concursos para homem mais forte do mundo. Definitivamente ele precisava de ajuda profissional.
Por que diabos alguém vai até uma franquia onde é consultor, as três da manhã, para se admirar no espelho?
Será que ele não sabe das câmeras?
De repente ele interrompeu a dança de mister musculoso. Observei-o vagar pela loja, como se buscasse o que fazer. Gastão deixou o salão e empurrou a porta de ferro no final da cozinha.
Cliquei na câmera do almoxarifado e o vi entrar enquanto dançava mais uma vez a sua música inexistente. Ele estalou o pescoço e parou de frente para a prateleira de alimentos etiquetados. Desejei que ele pudesse acabar cometendo um suicídio involuntário em um desses momentos, claro que eu não daria essa sorte.
Então imaginei se ele teria ido se vingar do episódio de ontem à noite. Eu não sabia se me borrava mais de medo, pela reação do meu pai se descobrisse que Gastão por pouco não me agarrou, ou se por cogitar qual vingança o resgate de Valente poderia ter suscitado nele. Depois da ameaça a meu pai e de quase ter usado sua força bruta comigo, eu não duvidaria de mais nada.
Quer dizer, eu pensei ter esgotado a cota de dúvidas, até compreender o que Gastão fazia diante das câmeras. Pela prateleira, soube que ele trocava as etiquetas dos alimentos de fabricação local! Alterava as datas de validade!
Então essa foi a vingança escolhida por ele. Se as pessoas comessem salgados estragados, a culpa recairia sobre meu pai. Pois aqueles produtos eram produzidos na própria loja e descartados dois dias depois caso não fossem consumidos.
Meus pensamentos giraram na velocidade de uma turbina de avião. Tremi quando constatei que Gastão deveria ter tramado algo ainda pior para mim e Valente. Pelo visto, o pesadelo estava só no início.
Eu não podia deixar essa tragédia acontecer.
Conferi o relógio. Faltavam cinquenta minutos para meu pai chegar, e com certeza, menos ainda para Gastão aparecer. Roí as unhas, nervosa. Balancei as pernas debaixo da mesa e mordi a língua.
Anda Rosa, raciocina!
Olhei o pen drive de Yoda debaixo do monitor e tive uma ideia. Ao menos de mãos vazias, eu não ficaria.
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Olá meus amores, não sei o que houve ontem quando postei o capítulo, deve ter sido algum bug, então, excluí e postei novamente. Me avisem se der algum problema. E deixem comentários que a escritora aqui fica bem feliz! =)
bjosss e até amanhã
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