TRINTA - Por Rosa
Foi a pior noite da minha vida. A cama mais confortável da história ali, à disposição, e não devia ter dormido mais do que vinte minutos. Do jeito que meu corpo estava cansado, se eu fosse colocar o sono em dia provavelmente entraria em coma.
Um carro amassado. Vidro espalhado. O som de pneu freando bruscamente no asfalto. Sirenes de ambulância. Imagens de acidentes me perturbavam cada vez que eu ameaçava pegar no sono. Um carro capotando na estrada de Itaipava. Meu pai desacordado. A lataria de um automóvel destruída... Não. Era horrível demais ficar supondo desastres.
Levantei da cama de dossel e fui lavar o rosto no banheiro. Me arrepiei dos pés à cabeça, mas não soube dizer se pelo piso frio do mármore, ou pelas palavras de Gastão. Elas percorriam impiedosamente em meus pensamentos.
"Passo na sua casa amanhã às 18h para te buscar."
Fiquei tão perturbada que pude ouvir sua voz sibilando a ameaça no meu ouvido. Me vi de repente com mais medo do que senti na noite anterior. Os homens do beco ao menos mascaravam seus rostos, não suas intenções.
Gastão se ocultava atrás da pose de magnata. Quem o visse agindo normalmente pela Grão Puro, não suspeitaria de sua perversidade. Pelo visto ele reservava esse lado especial para suas conquistas. Eu, entre elas.
Fechei a torneira e não ousei me olhar no espelho. Com certeza estaria mais acabada do que ontem. Arrastei os pés para fora do quarto desejando que o tempo fizesse o mesmo. Encontrei Valente saindo da biblioteca quando cruzei o corredor.
— Oi, Isabela. — Ele me pareceu tímido.
Tímido?
— Oi.— Respondi meio sem graça.
— Escuta, Isabela, sobre o que eu falei ontem...
— Esquece. — Bocejei e esfreguei os olhos. — O dia e a noite foram cheios demais.
Os ombros dele subiram e desceram.
— Você está bem?
Valente só podia ser Jedi. Suas safiras davam a impressão de sentir o turbilhão de emoções dentro de mim. Observei seus cílios espessos e as sobrancelhas grossas. Eu não podia contar à ele. Precisaria enfrentar o problema Gastão, sozinha.
— Uhum. — Desviei o olhar antes que me dedurasse. — Já vou indo.
— Sem comer nada?
— É, tô sem fome.
Ele me olhou como se soubesse que eu escondia algo. Com a fragilidade em que eu me encontrava, se fitasse mais dois segundos daquela imensidão azul, acabaria me entregando. Me virei e saí sem falar nada. O Sr. Alcindo não estava por ali. Provavelmente folgava aos sábados.
A mão quente de Valente tocou meu ombro.
— Espera. Eu preciso te explicar uma coisa. Na confusão de ontem acabei esquecendo.
— O quê? — Meu alerta acendeu instantaneamente.
— Eu li seu email sobre trabalhar meio período e contratei outra pessoa.
Não pude acreditar.
O safado vai me demitir depois disso tudo? Não pode me dar um dia para me recompor?
— Então estou demitida?
Valente riu. Depois passou o indicador na ponta do meu nariz de um jeito zombeteiro. Pensei que só podia estar a fim de me enlouquecer com essas oscilações carinhosas. Ele devia ser mesmo um sádico.
— Não, Isabela. Contratei mais uma pessoa, apenas. Ela vai trabalhar de manhã e você, à tarde. — Ele levou as mãos nos bolsos e acrescentou muito sério: — Eu gosto do seu trabalho aqui.
Um elogio! E pelo seu olhar, muito sincero. Daquele jeito, eu entraria em combustão a qualquer momento. Pensei que tivesse perdido a habilidade de sorrir devido aos últimos acontecimentos, mas me vi esticando os lábios para ele. Como uma perfeita besta octogonal.
— Ok.
Nossa, que resposta horrível, Rosa.
— Vem, corujinha. — Ele sorriu. — Vou te apresentar sua nova colega de trabalho.
Minha língua embolou quando ouvi o apelido. Segui Valente até a biblioteca porque não consegui me opor. Então ele se lembrava. Foi assim que me chamou quando encontrei-o bêbado. Corujinha linda.
Um sentimento sorrateiro se instalou em mim. Ouvi-lo se referir a mim carinhosamente, me deixava vulnerável.
Ele abriu a porta de madeira. A silhueta que vi em pé de costas no balcão, me lembrou alguém. Cintura fina, cabelos pretos e curtos. Corpo curvilíneo. Ela se virou ao nos ouvir se aproximar e abriu um sorriso contagiante.
— Oi, Rosa. Surpresaaa!
Isis? Não entendi nada.
— Vocês se conhecem? — Valente não pareceu ter gostado desse fato.
— Há muito tempo. — Expliquei a ele, de pé ao meu lado e perguntei para ela: — Por que você não me contou?
— Foi muito rápido, aí aproveitei pra te fazer uma surpresa. — Ela penteou os cabelos com os dedos, parecia empolgada demais por estar ali. Sequer me perguntou o que eu fazia no castelo em pleno sábado.
— Isis, já volto pra explicar o que você fará a partir da semana que vem.
Valente foi duro ao falar. Os ombros estavam rígidos. Mesmo assim, Isis abriu outro sorriso enorme para ele. Eu conhecia aquela expressão. Ela estava com o modo sedutor ligado. Ainda usava uma maquiagem suave que a fazia parecer uma boneca de porcelana. O vestido preto acentuava suas formas. Não sei como ela conseguia não engordar, já que seguia à risca uma dieta de filhote de elefante.
Meu estômago protestou de novo. De um jeito muito desconfortável.
Assim que Valente fechou a porta e nos deixou a sós, Isis fez sinal para que eu me aproximasse e se inclinou no balcão.
— Rosa, posso usar aquele seu vestido azul que ainda está comigo, hoje à noite? — Ela sussurrou.
— Ah, então o desaparecido foi localizado. Você vai finalmente me devolver depois?
— Agora que eu achei, claro, né? Que pergunta... — Ela resmungou.
— É porque seu armário tem passagem pra Nárnia, mas estranhamente só leva as minhas roupas. — Disfarcei o incômodo com a piada. Vê-la ali toda arrumada e feliz com Valente me deixou cismada. E por que ela começaria a trabalhar logo num sábado?
— Juro, por favor. Preciso muito dele.
— Tá, calma. Mas pra quê?
— Te conto hoje à noite, quando eu voltar.
— De onde, Isis?
Não sei o motivo, mas o mistério me deixou nervosa. Valente voltou e nos observou sério. Parecia irritado. Me despedi antes que despertasse o lado negro dele e fiz o caminho até o ponto de ônibus. Não conseguia parar de imaginar o que os dois fariam sozinhos a manhã toda na biblioteca, muito menos na razão de Isis ter se produzido tanto para trabalhar. Mordi a língua. Uma visão de Isis e Valente se beijando tirou meu fôlego.
O que há de errado comigo?
Cheguei em casa e me joguei no sofá. Juro que se tivesse cachaça na minha casa, eu teria bebido.
Foco, Rosa. Tem algo muito mais sério que você vai precisar encarar hoje.
Onde Gastão planejava me levar? Será que ele me daria pelo menos o direito de contestar, caso achasse o lugar muito íntimo? Senti calafrios ao supor. Claro que ele não guardava boas intenções, mas eu não tinha escolha. Hoje à noite, eu sairia com Gastão. Eu e Gastão. Eu e o Rambo. Eu e o Ken macabro. Unir nossos nomes na mesma frase fez meus nervos se contorcerem. Eu já havia considerado a hipótese de sair com ele, porque assim, talvez Gastão perdesse o interesse. Seu prazer podia estar na caça, sei lá. Era isso o que eu havia planejado fazer: Aceitar o próximo convite que ele me fizesse e me comportar da pior maneira possível. Nunca imaginei que ele chegaria a esse ponto. Meu deus, ele ameaçou a vida do meu pai!
Até onde será capaz de ir para conseguir o que quer? Ou isso é um blefe?
Fosse o que fosse, eu não podia arriscar. Sairia com ele completamente indefesa, por livre e espancada vontade.
Cobri o rosto com uma almofada e aguardei as horas passarem como se esperasse pela ceifadora. A dama de preto, coletora da minha alma. Eu preferia enfrentar a foice. Lá para umas cinco horas, meu corpo começou a protestar de tanto tempo deitado.
Assim, me obriguei a escolher uma roupa. Nem tomei banho. Dane-se. Se eu pudesse, passaria perfume de lixão e vestiria a armadura do Robocop. Optei por um vestido vermelho de amarrar no pescoço com estampa floral e uma jaqueta jeans, bem simples para não alimentar nenhum desejo sórdido. Joguei os cabelos para a frente. Não queria dar nenhuma chance daquele maníaco me morder de novo.
Soprei o ar com força.
Vai dar tudo certo, Rosa. Vocês saem, seu pai chega inteiro e esse pesadelo acaba.
Retesei os músculos ao ouvir a campainha. Eu desejava mesmo que fosse a morte vindo me buscar.
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Meus amores me perdoem,fiquei sem computador, por isso o atraso. Mas temos mais um capítulo a seguir!!!
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