TRINTA E SETE - Por Valente
Eu acabava de voltar de uma visita a minha avó. Cujos olhos azuis pareciam cada vez mais apagados.
Apesar do alívio de saber que ela reagiu bem aos remédios e teve seu quadro de pneumonia estabilizado, eu fragmentava os episódios dos últimos anos de minha vida. Se não fosse por mim, meus pais estariam vivos. Se não fosse por mim, minha avó não estaria condenada à falta de memória.
Sentei na cadeira atrás do balcão e decidi abrir o livro maldito.
Como se para reafirmar meu pensamento, acompanhei as mãos invisíveis completarem a mensagem daquele dia e fechei o livro com força antes de guardá-lo na gaveta abaixo do balcão.
"Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro desperta. O Enforcado precisa dividir essa história. Mas antes, deve contar a si mesmo."
Que ótimo! Agora o livro maldito virou autoajuda.
No que ergui a cabeça, Isis apareceu em estado quase eufórico e mencionou que havia algo engraçado que eu precisava assistir na internet. Antes que pudesse me opor, a garota sentou sobre meu joelho e tomou posse do mouse.
Vi de relance um par de olhos de coruja se arregalar para nós dois juntos, atrás do computador. Meu coração deu um salto, mas mantive-me frio. Como um belo idiota, fingi não vê-la. Forcei uma risada apesar de não enxergar nada do que Isis mostrava. A visão da tela sumiu naqueles instantes. Por pouco não me levantei ao ver Isabela dar as costas. Senti uma vontade avassaladora de abraçá-la. Assustei-me ao perceber que era saudade. Como assim? Não nos víamos há menos de um dia. Nunca senti isso antes. A falta sempre foi um sentimento reservado para meus pais. E nos últimos dois anos, para minha avó.
Fitei a tela do computador para afastar a frustração e trouxe a cabeça de volta ao presente. Ao conferir o andamento da catalogação dos livros no sistema, fiquei impressionado. Quase metade da lista estava concluída. Isabela era ágil e aprendia rápido. Muito em breve eu poderia cumprir a promessa feita à sua mãe, com a reinauguração.
Conferi alguns itens pendentes na planilha enquanto o som de um martelo perfurava o meu tímpano. Dizia repetidamente um nome. Isabela. Isabela. Isabela. Já a imagem constante nos pensamentos, tinha a cor de amêndoas e a pele de pêssego.
Devo estar com algum problema.
Imaginei se a viagem que planejava seria uma boa ideia. Desde o acidente, nunca mais tinha voltado à cabana em Trindade. O mausoléu de memórias, felizes e dolorosas, onde passamos diversos verões juntos, quando meu pai se ocupava dos churrascos e minha mãe dos passeios. E agora, eu iria até lá sozinho. Talvez fosse mesmo a hora de encarar os fantasmas do passado. De encontrar regozijo nas memórias em vez de martírio.
Subi os degraus até o segundo andar da biblioteca para avisar a Isabela e recordei-me de algo que li outro dia.
"A melhor maneira de prever o futuro é observar um comportamento passado."
Talvez fosse isso. Se meus atos fossem os mesmos, dia após dia, eu jamais me livraria da maldição. Jamais teria resultados diferentes. Mais do que ninguém, eu sabia que precisava mudar.
Encontrei Isabela nitidamente contrariada. Ela atacava as prateleiras derrubando livros e mais livros no chão, e depois devolvia-os ao lugar.
—Ei, o que você está fazendo? Esses livros eram da minha mãe. — Aquilo me feriu em dose dupla, pelo cuidado que minha mãe tinha com os livros e por saber que eu muito provavelmente era a causa de sua irritação.
Isabela não ouviu, ou ignorou, pois acabava de derrubar mais uma pilha no chão e reiniciava o processo de guardá-los. A expressão dela estava furiosa. O cenho franzido, os dentes cerrados. Quase um caso de possessão.
Por que ela está agindo como uma louca?
Segurei os ombros dela para que se virasse de frente. Ela se contraiu, como se meu toque lhe provocasse repulsa.
— Olha pra mim. —Pedi com calma. — O que que foi?
— Nada. — Isabela deu um passo para trás.
— Calma. Aconteceu alguma coisa? —Me aproximei de novo e ela recuou. — Está tudo bem com você? — De repente, eu precisava abraça-la ou me desfaria em pedaços. — Com seu pai?
— Excelente. Tudo excelente.
Ela fungou, deu as costas e guardou os livros de volta:
— Desculpa. Não sabia que eram da sua mãe.
— Tudo bem. — Tentei pela última vez. — Não quer mesmo conversar?
— Não.
Me afastei com um incômodo na garganta e desci as escadas. Será que aquilo era uma reação por ter me visto com Isis?
Sou mesmo um imbecil.
Antes que seguisse o impulso de dizer a ela as verdades que lutavam para escapar, cruzei a sala dos brasões e afundei no pufe lilás em meu quarto.
Apertei uma almofada contra o rosto para conter a vontade de gritar. Contei até mil. Aquele desejo insano tinha que passar.
Os traços suaves e bem delineados de Isabela insistiam em aparecer por trás de minhas pálpebras. A maneira com que ela me provocava ameaçava minha sólida barreira de ruir. Como não se podia evitar o outono de dar lugar ao inverno.
Não.
Eu precisava apagar aquela chama de desejo. Me envolver ainda mais só me traria problemas. E um descanso poderia desanuviar minha cabeça.
Está decidido, vou mesmo para Trindade.
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Meus amores, fiquei sem wifi ontem por conta da chuva, desculpem o atraso! E agora?? O que será que vai rolar em Trindade? Beijosss e até segunda! Bom carnaval!
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