QUARENTA E QUATRO - Por Valente
Valente
Quando Isabela apareceu para trabalhar parecendo um espectro de si mesma, eu soube que algo muito ruim deveria ter acontecido.
— Oi – ela me cumprimentou com a voz fraca, os ombros caídos, totalmente murcha.
— Você está bem? — Pousei as mãos no ombro dela. Isabela fez uma careta de dor.
— Uhum. Só estou com a pele ardendo.
Ela me deu as costas e arrastou um pé atrás do outro. Jogou a bolsa no balcão de jacarandá da biblioteca e soltou um murmúrio fraco.
Segui-a no intuito de confortá-la, mas estaquei.
"Não deixe nenhuma outra mulher amar você, Tiago. Há algo em você que as destrói."
A voz de meu pai irrompeu meus pensamentos.
Achei mais seguro focar no trabalho. E assim o fiz. Passamos horas sem trocar qualquer palavra que não estivesse relacionada a livros, lonas para o gramado, a divulgação da feira em escolas... Eu se sentia sufocado de tanto conter o desejo de saber o que a deixava tão triste e não me controlei mais. Pensei em algo para quebrar o gelo. Passei as últimas instruções aos pedreiros, busquei o gel refrescante de verbena no banheiro de meu quarto e retornei à biblioteca.
— Aqui. — Ofereci o gel a ela. — Passa isso nas suas costas.
—Ok. — Isabela se ajeitou na cadeira da recepção, como se antes estivesse imersa em pensamentos. Segurou a embalagem e relaxou os ombros quando espalhou, desajeitada, o gel na pele.
— Me dá, deixa que eu passo. — Peguei a embalagem e me posicionei atrás dela.
— Não precisa. — Ela fez menção em girar a cadeira, mas segurei a rodinha com o pé.
— Sossega. Agora fala comigo. — Despejei um pouco de gel nas mãos. —Está me deixando aflito.
— Por quê?
— Não gosto de ver você assim. —Comecei a espalhar o gel em movimentos circulares em seu pescoço. — Cadê a garota que me desafia 99% do tempo?
— Pensei que eu te irritasse. — Ela estremeceu.
— Pensou errado. — Desci as mãos e espalhei mais gel em seus ombros rosados. — O que me irrita é ver que não usou o protetor solar que comprei.
— Devo ter esquecido porque fui embebedada e arrastada pelo meu chefe.
Acabei rindo. Essa, sim, era Isabela. Continuei a espalhar o gel com movimentos circulares e suaves pelas costas dela, fiz toda a força do mundo para fingir que aquela intimidade não me afetava.. Imaginei que a blusa decotada tivesse sido escolhida por conta da ardência. A observei relaxar com meu toque. Isabela deixou escapulir um leve ruído de contentamento, e fui atingido novamente pela faísca de desejo. Tão forte que quase varreu minha lucidez.
Afastei-me daquela pele suave e do perfume floral com o toque extra de verbena. As duas coisas somadas me faziam pensar em milhões de coisas ao mesmo tempo.
— Pronto. — Suspirei, em parte aliviado, em parte frustrado por não poder continuar e fazer o que eu gostaria de fazer. Havia um milhão de ideias fervendo na minha cabeça. — Pode levar o gel, passe duas vezes por dia que vai melhorar.
— Obrigada. — Ela me encarou e nos fitamos em silêncio por alguns momentos. — Bom, vou indo então. Até amanhã.
Isabela passou a bolsa nos ombros, empurrou a cadeira debaixo da mesa e secou o canto dos olhos que mantinha fixos no chão.
— Ah, corujinha, fala pra mim. — Bloqueei a passagem dela e passei o dedo em seu queixo.
Ela me fitou com os lábios trêmulos. E pareceu não conseguir mais segurar. Lágrimas silenciosas escorreram pelo rosto dela. Apressei-me em secá-las com ambas as mãos, mas elas desciam como chuva. Senti alguma esvaziar dentro de mim.
— Meu pai enfartou ontem à noite.
Aquilo doeu com força dentro de mim.
Por não saber o que dizer, abracei-a apertado. Sabia por experiência própria que não existiam palavras certas para esses momentos. Detestei todos os tapinhas que recebi nas costas no passado. Em seguida, vinha a famosa afirmação: "Vai ficar tudo bem." As pessoas gostavam de assegurar essas coisas. Até parece que podiam prever o futuro.
Isabela encerrou o abraço, retomou a compostura e me fitou com uma expressão agradecida. Eu soube que não haveria momento mais propício para liberar todos os segredos que escondia. Mas não mencionei nada.
— Pode contar comigo. — Falei firme.
— Obrigada. —Ela já voltava a sustentar a pose de durona.
— Quer uma carona?
— Não precisa. Quero ficar um pouco sozinha.
Assenti. Se existia algo que eu podia entender, era aquilo. Passei as horas seguintes tentando me manter ocupado na biblioteca, mas foi inútil.
Subi as escadas com Bruce na minha cola e voltei inquieto para meu quarto. Encarei as paredes como se essas me sufocassem com a verdade que eu lutava para ignorar.
***
Rolei na cama por horas. Os olhos de coruja me tiravam a paz. Vê-la desolada doía em algum lugar perto do estômago, e meu íntimo gritava que essas sensações estavam erradas.
Era errado enlouquecer pelo beijo que não aconteceu em Trindade. Era errado precisar prender a respiração para não me abalar com seu perfume incomparável. Era errado o desejo insano que me consumia a razão quando estávamos próximos.
Pensei que havia chegado a hora de admitir para mim mesmo que Isabela me afetava de uma maneira que jamais senti. Por alguma razão, eu parecia louco por ela. Só precisava assimilar aquilo. Entretanto, não conseguia seguir meus instintos. Nada de bom poderia vir daquilo. Estava cansado de saber. Mas o que eu faria com a preocupação que me afligia ao pensar nela? E quanto a obsessão de imaginar o que ela fazia quando estava longe de mim?
Levantei da cama e andei de um lado para o outro no quarto.
Estou com falta de sono. Falta de apetite. Não tiro esse sorriso de idiota do rosto desde que voltei de Trindade. Além da cara de bobo, só por lembrar da risada dela.
Mas eu não podia fazer nada. Meu pai tinha razão. Havia algo em mim que destruía as pessoas ao redor. Bastava ver o estado de minha avó e comprovar a verdade. Bastava pensar no destino de minha mãe, o passado que eu tanto lutava para esquecer. Ou ainda, lembrar do mal que fiz com ou sem intenção, a todas as poucas mulheres com as quais me relacionei, como Laura. Eu não podia fazer casar esse mal à Isabela. Não queria. E se os sentimentos fossem apenas desejo? E se ela se envolvesse e eu fosse incapaz de retribuir da forma que ela merecia, já que sou um incapacitado?
Deitei outra vez na cama de dossel e soquei o travesseiro. Existia uma grande chance de me arrepender, mesmo assim peguei o livro encantado no armário e abri.
"A luz só pode entrar onde houver rachadura. O Enforcado deve contar essa história. Mas, primeiro, deve contar a si mesmo."
Sentei na cama e puxei frustrado os longos cabelos para trás. As mãos invisíveis prosseguiram a escrita no livro:
"A culpa jamais foi sua. Me perdoe, filho. Sem sua mãe aqui..."
Arremessei o livro de capa dura azul na parede. Aquela frase pertencia ao bilhete de meu pai. Refleti se estava preparado para visitar o passado. Concluí que nunca estaria. No entanto, não podia perder o resto da minha vida esperando. Andei até a escrivaninha, peguei papel, caneta e fiz a primeira rachadura. Infelizmente, não foi nenhuma luz que me invadiu.
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Ainnn meu coração! Estamos nos aproximando da minha parte favorita do livro! <3
Desculpem a demora, meu pc continua na assistência. Orem por ele! =/
Mas tenho uma surpresa pra vocês a seguir! Uhul! \o/
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