QUARENTA E CINCO - Por Rosa
Os braços de Valente pareciam ter poderes de cura. E as mãos macias espalhando gel nas minhas costas? Ainda sinto arrepios. Sonhei três noites seguidas com aquele momento. O abraço que ele me deu na biblioteca foi o suficiente para reabastecer metade das minhas energias. A outra metade eu deixei no hospital com meu pai, durante os dias seguintes em que ele ficou internado em observação. Ele precisou repetir uma dúzia de exames até receber alta.
Quando ouvimos do médico que ele não precisaria realizar a cirurgia de angioplastia coronária com implante de stent, meu ânimo foi no teto, igual a chafariz de shopping. Eu precisava de boas notícias, pois pretendia cumprir a minha promessa.
Havia descoberto outras duas faculdades de cinema em São Paulo que ofereciam vagas para bolsistas e comecei a estudar feito uma alucinada. Quatro horas antes de ir trabalhar, duas horas antes de dormir e às vezes até durante o almoço.
Encarei meu reflexo no espelho e suspirei, tudo bem que começava a parecer um monstro apocalíptico, mas eu sabia, o esforço compensaria. Com o meu pai de volta em casa eu me sentia muito mais tranquila para ir trabalhar, e o nosso vizinho estava nos ajudando bastante.
Agradeci um milhão de vezes ao Sr. Augusto antes de pegar o ônibus e ir para a biblioteca. Ele ficou de dar uma olhada em meu pai durante a tarde. Guardei alguns livros na mochila para estudar durante o almoço e, apesar do peso nas costas, fui trabalhar quase flutuante.
Parei diante dos portões de ferro e apertei o interfone. Valente abriu a trava automática. Não sei dizer o motivo, Valente simplesmente liberou a mim e a Isis da escolta do Sr. Alcindo. Nos últimos dias, só encontrávamos o mordomo no salão de jantar.
Esbarrei com a Isis no gramado do castelo. Ainda não agíamos cem por cento como nós mesmas, mas havia um acordo tácito no ar devido ao acontecido com meu pai.
— Oi — falei muito sem graça.
— Oi, Rosa. — Ela olhou para as unhas. — E o seu pai? Como está?
— Recebeu alta hoje, sem necessidade de cirurgia.
— Que bom. — Isis fitou um ponto fixo atrás de mim.
— É. — Ficamos as duas em silêncio. Minha melhor amiga, de repente parecia uma estranha. Comecei a pensar em várias coisas a dizer, mas não sabia por onde começar.
— Manda um beijo pra ele. — Isis encerrou a longa conversa e me deu as costas.
Papo tão gostoso quanto um mergulho numa piscina de águas-vivas!
Desviei de Bruce que correu em minha direção como se fugisse da besta. Cruzei a sala da lareira e enquanto subia as escadas para o segundo andar, estranhei quando o peso dos livros desapareceu das minhas costas. Me virei e descobri Valente segurando a alça de trás da minha mochila. Ele a pegou e subiu os degraus ao meu lado.
— Deixa eu ver se adivinho, trouxe outro corpo? — Ele sorriu. Daquele jeito colgate/cafajeste irresistível que aquecia meu coração. Mostrei todos os dentes em resposta.
— Acertou. Preciso enterrar um cadáver de dois metros no gramado. Então estou trazendo os membros em viagens separadas. O tronco está aí dentro.
O rosto dele se iluminou com um sorriso quando paramos no corredor.
— Ei, você está de volta ao normal! — Valente cravou as safiras em meu rosto. —Boas notícias?
— É! — Me contive para não dançar no meio da escada. — Meu pai recebeu alta e não vai precisar operar.
Valente me ergueu do chão num abraço de ferro, e minha alma pareceu decolar. Deixei de ser metade e me tornei um inteiro. Eu hein! Eu vinha sofrendo de alguma doença muito séria. Ele me devolveu ao solo e ficou ali, com aquele ar de menino me encarando. Havia algo diferente nele. Desde Trindade ele agia sem toda a pose de durão. Mais leve, bem humorado, mais acessível. Cada vez mais irresistível.
Se ele não tirar essas safiras de mim no próximo segundo, eu não respondo por meus atos. Mentira. Sou uma frouxa.
— O que foi, Isabela? — Ele deu um passo a frente, eu podia sentir o calor de seu corpo. — Estou deixando você tímida?
— Lógico que não. — Calúnia deslavada, enrubesci na hora.
— Não resisto a uma garota assim, sabia? — Ele deu mais um passo, recuei até bater as costas na parede. — Branquinha, com as maçãs do rosto cor de rosa. — Ele cruzou a distância e colou o corpo no meu.
Fiquei estática com cara de bocó e o corpo inteiro formigando.
— Você está com olhos de corujinha. —Ele segurou meu queixo. — Sabe que eu não me controlo.
— O que aconteceu? —Engoli em seco. — Achou outra garrafa de tequila?
Ele riu e continuou a me encarar.
— Por que está me olhando assim, Valente? — Insisti.
— Assim como? — Seus dedos soltaram meu queixo e deslizaram por meu rosto. Cínico. O safado nitidamente se divertia as custas do meu pavor.
— Como se eu fosse um frango de padaria. E você estivesse faminto.
—Talvez, você me deixe com fome.
Quase comprei uma cesta para fingir que levava para a vovozinha enquanto era caçada por àquele Lobo Mau, e me perder com ele na floresta. Ele acariciou meu pescoço e depois brincou com uma mecha do meu cabelo. Grudado em mim, sem um mísero centímetro de distância, parecendo muito confortável com a situação. Será que Valente perdeu o pudor na trilha de Trindade? Peguei a minha cara que havia escorregado para o calcanhar, bem surrealista, estilo Salvador Dalí, e a encaixei de volta no rosto.
— É, vamos para a biblioteca? — Meu peito batia tão forte, que pensei que ele escutaria. — Feira de livros, divulgação, restauração, lembra?
— Só um instante. — Ele umedeceu os lábios. — Sabe no que eu estou pensando?
Ai, senhor! No quê?
Como meu coração ensaiava nado sincronizado com meu estômago, não falei nada. A pergunta devia ser retórica. O encarei em expectativa, pronta para me despedir dessa vida. O estado febril me pegou iniciando pelo rosto e se espalhou até a ponta dos pés. Além do calor que Valente emanava, eu sentia seu perfume masculino e absurdamente convidativo.
— Eu não terminei de te responder àquela pergunta em Trindade. — Ele inclinou o rosto, pude sentir sua respiração. — Sobre o algo que desejo fazer há muito tempo.
Meu cérebro deu um nó e resfoleguei. Esquentei como um aquecedor turbinado, atingi 200 graus em dois segundos. O olhar dele, o corpo dele, o contato de sua pele com a minha e sua beleza agressiva calaram minha voz novamente. Entrei no modo retardada on. Eu sabia a resposta. Ela faiscava no ar eletrizante entre nós, mas ameaçava muitas coisas. Meu relacionamento com Isis, minha paz interior, meus estudos para conquistar a bolsa... O problema foi pensar em rejeitá-lo. Cada poro meu desejava aquilo. Será que valeria a pena correr o risco? E se ele voltasse a agir como antigamente?
Ai, Valente, você derruba todas as minhas certezas.
Não adiantou tentar lutar. Quanto mais eu adiava encarar a realidade, mais ela me invadia.
Não me movi. Eu não ousaria. Valente compreendeu a deixa. Seus dedos me puxaram levemente pela nuca. Seus lábios tocaram primeiro o meu queixo e subiram devagar, em uma tortura prazerosa.
E então fechei os olhos.
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Ainnnn meu coração!!! Será que agora vai???
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