NOVE - Por Rosa
Rosa
— Como você conseguiu convencer o seu pai a te deixar cuidar da loja, Rosa? – Tive que desviar da chuva de farelos de biscoito que Isis cuspiu ao falar.
— Quando voltamos do hospital ontem, eu disse a ele que se não seguisse as recomendações do médico, iria contar tudo para a minha vó.
— Mas e daí?
— De quem acha que ele puxou esse nervosismo? Tal mãe, tal filho. Ela ia querer se mudar lá pra casa e não o deixaria em paz.
— Até que você tem neurônios, sabia?
— E cadê os seus pra me ajudar com isso aqui?
Eu quebrava a cabeça com o fogão digital. A cozinha da Grão Puro era lotada de equipamentos high tech e claro que a querida Lei de Murphy resolveu conspirar contra mim. E logo na primeira vez que meu pai me deixou olhar a loja sozinha.
No bendito dia que saio cedo de casa, garanto a ele que não precisaria se preocupar com nada, o padeiro corre destrambelhado e me abandona na cozinha antes de ligar o fogão. Eu até compreendi a correria dele, afinal, sua mulher entrou em trabalho de parto. Mas faltavam trinta minutos para a abertura da loja, a massa permanecia crua na assadeira e os cozinheiros só chegariam uma hora e meia depois para começar a preparar o almoço. A caixa e a balconista só se responsabilizavam pela abertura da loja. Ou seja, o lado da padaria seria aberto sem pão.
Desgraça total!
Isis fitava o fogão, muda, ao meu lado. Parecia alguém prestes a enfrentar uma besta de três cabeças.
— Eu tenho uma ideia.
— Qual? — Apertei mais uma vez os botões que permaneceram estáticos. — Fala logo.
— Por que a gente não compra o pão pronto em outro lugar e revende?
— Vou fingir que nem ouvi. Isso aqui é um restaurante/padaria! E o pessoal do shopping conhece o meu pai. Vão fazer fofoca!
— Ah, Rosa, então não sei. Vou lá dentro pegar outro biscoito.
— Você veio pra me ajudar ou pra comer a loja inteira?
Isis deu de ombros e me deixou sozinha. Abaixei para olhar os cantos do fogão, na esperança de encontrar um ratinho chef de cozinha tipo Ratatouille, quando encontrei a solução. Estava fora da tomada.
Besta!
Finalmente liguei o forno e fui até o salão onde ficavam as mesas, o balcão e as vitrines com as guloseimas sem glúten. A variedade era enorme. Acho que por isso a Grão Puro fazia tanto sucesso.
Com exceção do pão, das refeições e dos diversos salgados feitos diariamente por funcionários que vinham após serem treinados na matriz, todos os produtos tinham sua fabricação em São Paulo, onde ficava a fábrica com a famosa fórmula mágica de farináceos sem glúten. A fama seria comparável a de Willy Wonka. Mas é claro que se eu tivesse de votar, ficaria com a fábrica de chocolate.
Tirei do bolso o checklist enorme de afazeres durante o dia, entregue por meu pai, todos muitíssimo importantes. Seu rosto chegou a ficar vermelho quando me obrigou a ler em voz alta antes de me deixar sair de casa.
Isis devorava um saco de palitos de parmesão tão entretida, que sequer me olhou quando sentei na poltrona vermelha estofada diante da dela. Meneei a cabeça enquanto relia a lista:
· Conferir a máquina de expresso;
· Conferir abertura do caixa;
· Conferir estoque;
· Conferir alimentos etiquetados;
· Conferir limpeza do banheiro;
· Conferir organização dos produtos nas prateleiras;
· Assistir COM ATENÇÃO às filmagens do sistema de segurança...
Não consegui entender porque meu pai fazia o trabalho de todo mundo.
Mas consigo entender porque você está com seis prescrições de remédio controlado, pai.
— Por que você está balançando a cabeça? — Isis despertou do flerte com os palitos de parmesão. Amassou o saco plástico e o guardou no bolso. Deduzi que fosse preguiça de se levantar para jogar na lixeira.
— Meu pai é pirado.
Deslizei a lista para ela e me recostei na poltrona. Peguei o celular e conferi meus emails. Deletei uma dezena deles. Eu recebia muito mais propaganda do que algo de interessante, até me surpreender com um endereço na caixa de entrada.
Para: [email protected]
"APROVADA!
COMPAREÇA AO CASTELO NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA, ÀS 9H.
TIAGO VALENTE"
— Céus, fui aprovada para a vaga na biblioteca!
Eu, Rosa Skywalker, vou trabalhar numa biblioteca! Cheia de livros! Aposto que existe uma sessão especial só sobre cinema.
O olhar de Isis me fez engolir metade da animação, nunca a vi com aquele olhar antes.
— Você se candidatou? — ela pareceu mais surpresa do que eu. Havia ainda alguma outra emoção oculta em sua expressão. Não decifrei de início.
— Você sabia dessa vaga? Meu pai que me mostrou no dia que não consegui a bolsa na faculdade.
— Ah. — Isis encolheu os ombros. — Eu também me inscrevi. — Ela completou quase sussurrando.
Fiquei sem reação. Se fui aprovada, significava obviamente que ela, não.
Por que ela não me contou sobre isso?
— Pelo visto, meu novo chefe é um grosso. Acho que você escapou de uma furada — tentei amenizar. Passei o celular para ela ler a mensagem. Pela careta que fez, teve a mesma impressão que a minha.
— Você vai aceitar?
Tamborilei os dedos na mesa. Havia só dois minutos que eu sabia da oportunidade, mas meu futuro não me ofertava grandes opções. Afinal, não conquistei a bolsa na faculdade e precisava começar de alguma maneira a me estabilizar. Concluí o ensino médio e detestava ficar parada. Não podia viver dependente da mesada do meu pai e esse emprego além de me prover alguma liberdade, poderia aliviar o bolso dele.
— Acho que sim. Mas primeiro preciso falar com meu pai.
— Tem certeza? Quer trabalhar ao lado desse cara?
— Qual o problema? — O tom de Isis, me fez imaginar um monstro escondido nas sombras.
— Do Tiago Valente? Em que mundo você vive além dos filmes e livros?
Me irritei com a acusação. Desde quando havia algo errado em se gostar de ler e assistir filmes? Isis parecia ter pulado da surpresa para a inveja.
— Qual o problema dele? — repeti a pergunta.
— Dizem que ele é feroz, rude e impaciente.
— Eu vi o mesmo e-mail que você. Além do mais, você está citando uma característica igual, com três palavras diferentes.
— Ouvi por aí que nunca o viram sorrir e ninguém sabe sua idade ou seu passado. Ele simplesmente chegou um dia na cidade e nunca sai daquele castelo.
— Isso é pra me deixar com medo? Você sabe que não suporto essas fofocas de cidade pequena.
— Apenas cumprindo o meu dever de amiga. Avisando.
— Pode deixar, Isis, não tenho medo de homens rudes. E se ele é tão ruim assim, porque você se candidatou então?
— Sei lá, achei que seria fácil conseguir, e porque preciso de alguma experiência no meu currículo.
Reforcei a postura de durona e disfarcei a indagação deixada por ela em meus pensamentos. Em vez de comemorar por meu primeiro emprego, ela havia me deixado imersa em milhares de suspeitas.
Reli o email no celular que eu ainda segurava e reconheci vagamente o brasão logo abaixo da assinatura de Tiago Valente. Vasculhei a memória.
Brasão.
Um brasão.
O desenho de um brasão...
Um brasão bordado!
Minha cabeça estalou ao lembrar do galã que parecia o Tom Cruise, mas duvidei. Se ele fosse o Top Gun de Itaipava que vi há dois anos antes de entrar no circo minguante, Isis não se referiria a ele como um monstro.
Cheguei a reviver alguns segundos daquela noite. O beijo intenso, o perfume dele, suas mãos em minha cintura, aquela sensação efervescente... Meus braços arrepiaram. Das poucas experiências que tive com garotos até então, aquela se destacava de longe como a melhor de todas.
Mas duvidei que daria essa sorte. Logo o meu primeiro chefe, ter a aparência de um galã do cinema?
Só em sonhos, Rosa!
Isis foi embora e entrei no modo robô. Concluí tudo da lista e no final do dia estava exausta, Podia entender agora porque meu pai ficava tão sobrecarregado. Talvez fosse melhor ir mesmo para São Paulo. Como ele passava boa parte do seu tempo na franquia de lá, se eu conseguisse a bolsa na faculdade, ele não teria escolha e permaneceria mais tempo em apenas um lugar. A franquia de Itaipava poderia ser administrada com uma frequência menor e, consequentemente, ele faria menos viagens. Mas para tentar a bolsa novamente, eu teria de estudar mais um ano e precisaria recusar o emprego no castelo.
Ai, pai. Eu que sou a filha e você que me dá trabalho!
Uma hora antes de fechar a loja, me dei conta que havia pulado um dos afazeres da lista. Ter conseguido o emprego desviou totalmente minha atenção. Eu havia esquecido de assistir às gravações do sistema de segurança.
Também não sei por que tanta neurose. Estamos em Itaipava, pelo amor de Deus!
Fui até a porta dos fundos onde ficava a sala com o computador. Sentei na cadeira de escritório e liguei a máquina pré-histórica. Quase adormeci enquanto esperava o Windows provavelmente versão 1932 iniciar.
O dinossauro à minha frente ganhou vida. Enquanto o sistema de segurança carregava os vídeos, não resisti e entrei no site do Castelo Barão de Itaipava. Morria de curiosidade sobre o lugar, mas desde que cheguei à cidade, soube que ninguém possuía permissão para entrar no castelo.
Cliquei na primeira imagem e babei com a fotografia. Não chegava aos pés de Hogwarts, mas se tratava de um castelo medieval muito bem estruturado. A descrição no site dizia que os blocos de pedras do castelo haviam sido talhadas por artesãos portugueses; o telhado de ardósia veio da Itália; quarenta e dois cômodos...
Prossegui a leitura com a boca escancarada. Era uma foto mais linda que a outra.
Bammmmm!
Quase caí da cadeira quando ouvi a porta de vidro da entrada bater violentamente. Levantei correndo para conferir o que havia acontecido e alguém entrou como um touro.
Meu pai.
— Parem tudo que vocês estiverem fazendo. Temos um problemão para resolver!
Seu rosto normalmente corado havia assumido um tom cinza. Me preocupei com a velocidade que seu peito inflava e esvaziava. Ele parecia estar à beira de um colapso.
— Calma, pai. Você quer passar mal de novo?
— Meu chefe enviou um consultor novo! O filho dele! E vai chegar a qualquer minuto!
— Tá, mas por que tanto desespero?
— Porque meu chefe me ligou — meu pai apoiou as mãos nos joelhos e tomou fôlego — e disse que o filho dele está ansioso para aprender sobre o negócio da família. Ele alertou que precisaremos ser muito cautelosos de hoje em diante. — Ele suspirou e enxugou o suor do rosto. — Pelo que entendi, o filho dele é jovem e eu devo ficar de olho. Ele pode vir a interferir no andamento das coisas por aqui.
— Pelo visto, ele nem precisou chegar para fazer isso, não é? Já interferiu no seu repouso! — Andei até uma das mesas do salão e falei do jeito mais sério que pude. — Eu já lhe disse que dou conta. Bom ver que está prejudicando seu tratamento... Eu devia era ligar para a vovó agora mesmo.
— Chega, Rosa! Isso aqui é o nosso sustento. Essa responsabilidade é minha e não posso deixar um negócio desses em suas mãos! Esqueceu também da sua mãe? Do seu irmão? Eles dependem de mim!
Meus olhos encheram de lágrimas. Ele nunca gritava comigo e eu só desejava que se cuidasse.
Os funcionários nem fingiam mais trabalhar. Nos encaravam, atentos. Rangi os dentes para engolir o choro e a resposta afiada que arranhou minha garganta.
Não tive muito tempo para me recompor, porque uma voz grave e masculina nos interrompeu. Sua fala salivava sarcasmo. Não sei explicar o motivo, mas todos os meus poros se arrepiaram ao ouvi-lo.
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