CINQUENTA E SEIS - Por Rosa
Virei a noite remoendo o surto de Valente na cabeça, igualzinho ao avanço de uma cena, quadro a quadro. Ele repelindo o meu toque. Me chamando de Isabela. Praticamente me banindo por uma semana do castelo. Meu peito doía, e lá no fundo, a voz da minha consciência soltava o grito vitorioso do: eu te avisei, sua burra.
Ganhei uma enxaqueca. Eu sentia tanta raiva, e ao mesmo tempo, me sentia tão mal. Mas claro que não dei o braço a torcer. Se fosse para torcer alguma coisa, seria o pescoço dele! Ou o meu, já que eu devia estar exaurida de saber que o terreno Valente seria um campo minado. Um risco a cada passo. E se eu me arrisquei, foi porque eu quis.
Como eu estava de saco cheio de reler os mesmos livros para a prova de bolsista e havia ganhado uma semana de folga, decidi ir até a Grão Puro para tentar me distrair. Talvez o bom humor do meu pai me contagiasse, porque nem filmes eu queria assistir. Bastava lembrar daquelas safiras me fitando na sala de cinema, daquele perfume embriagante ou da boca suculenta, que os ursinhos carinhosos davam as caras. Infelizmente, precisei fuzilar todos eles em meus devaneios.
Parei na porta da loja para atender o celular.
— Oi — falei seca como uma ameixa ao ver que era a Bunda de Babuíno.
— Liguei para propor uma trégua, topa?
— Vai depender dos seus termos. — Eu já não sabia mais o que pensar.
— Não tem nada demais neles. É bem normal entre amigas.
— Ok, então pode falar, Isis.
— Cara, é bem simples. Você me promete que não vai se envolver com o Valente e pronto. Quer dizer, se realmente não sentir nada por ele.
— Só isso? Não está mais chateada comigo?
— Nós somos amigas, não somos? Já te expliquei, o que me deixou mais chateada foi o fato de você me esconder. — Ela fez uma pausa, definitivamente estava jogando verde para colher maduro. — E aí? Topa? Ou tem alguma coisa que ainda não me contou? Última chance, Rosa. Você sente ou não, alguma coisa por Valente?
É óbvio que eu sentia alguma coisa gigante por Valente, mas com a raiva e a frustração que eu alimentava por ele nos últimos dias, acabei aceitando os termos de Isis. Eu também não estava com paciência para ficar explicando tudo que havia acontecido entre nós dois, e depois do surto dele, cheguei a conclusão de que minha melhor opção seria esquecê-lo. Ela não pareceu muito convencida quando eu disse que não sentia nada por ele, mas aceitou. Claro que nós ainda estávamos meio de birra uma com a outra.
Assim, eu fingi que não pretendia envenená-la com um caldinho da maçã da Branca de Neve, e ela provavelmente disfarçou o desejo de dar uma panelada na minha testa enquanto eu estivesse dormindo. Seria uma questão de tempo até nossa birra passar e voltarmos ao normal.
Guardei o celular e entrei na Grão Puro. Combinamos de nos encontrar dali a alguns dias para alugar nosso vestido de formatura em Petrópolis, na Rua Teresa. Contive um engasgo ao saber que nossa festa seria em um dos salões do castelo, porque houve um vazamento no ginásio da escola. Isis era do comitê de formatura e estava feliz da vida, afinal, teria mais uma desculpa para ficar próxima de Valente durante a organização do baile.
Imaginei os dois juntinhos no castelo e perambulei pela padaria com a sensação de que havia um verme parasita se alimentando dos meus órgãos.
A balconista me informou que meu pai havia saído para conferir uma remessa de produtos de fabricação própria no depósito e fiquei parada no meio do restaurante. Abri e fechei umas vinte vezes a vitrine de vidro com os doces. Nem o croissant de chocolate me apetecia.
— Rosa?
Todos os meus poros se arrepiaram. Meu peito bateu com força na garganta e precisei morder a língua, não acreditei que ele estava ali.
— O que veio fazer aqui? — Falei baixo, totalmente entorpecida. — Vai surtar de novo?
— Preciso conversar com você. E como não tinha ninguém na sua casa, resolvi arriscar. Olha pra mim, Rosa.
Fechei os olhos. Valente usou o tom aveludado que fazia minhas pernas tremerem. Como só a voz dele podia me trazer tanta paz? Mesmo com toda a raiva que eu devia estar sentindo?
Isso só pode ser macumba!
Varri todos os cantos do meu corpo em busca da indignação e tentei transparecer toda a minha raiva no rosto. Além do que, eu tinha acabado de fazer um trato com Isis.
Não importa o que ele disser ou o que ele fizer, preciso ser forte.
— Rosa, olha pra mim, por favor.
Valente me segurou pelo braço delicadamente. Meu corpo reagiu contra a minha vontade e fez o que ele pediu. Fitei seu rosto e os joelhos enfraqueceram. Valente tinha a expressão torturada e seus olhos pareciam gritar um milhão de verdades. Fatos que eu sentia e conhecia, mas me recusava a admitir. Meu batimento acelerou bruscamente. Ele me encarou sério e afastou meu cabelo para trás. Sua mão quente me segurou pela nuca.
— Não — tentei soar firme, mas falhei.
Ele passou a outra mão em minhas costas e colou nosso corpo. Tentei empurrá-lo pelo peito de aço, mas não adiantou. Valente me apertou ainda mais. Comecei a ser dominada por uma agonia familiar. Um tipo de dor prazerosa, cujo alívio só ele trazia. Mas Valente não possuía esse direito. Eu não seria tratada como brinquedinho de ninguém. Usada e descartada quando bem entendesse. Não estaria à disposição sempre que ele se recuperasse de seus surtos. Eu já havia decido esquecê-lo, mas estava falhando miseravelmente.
Bastava sentir sua pele e tudo se dissipava. Bastava respirar seu perfume. Bastava que olhasse para mim como ele fazia naquele momento e o mundo se encaixava no lugar certo. Um lugar onde nós dois estaríamos bem se estivéssemos juntos, sozinhos. Todo o resto da minha lista de prioridades, parecia encolher. E eu não conseguiria resistir por muito mais tempo se ele continuasse perto daquele jeito. Céus! O que eu faria em relação a Isis? E o que seria de mim quando fosse para São Paulo?
Se controla, Rosa! Ele ainda não explicou nada e você já está desesperada!
Decidi que primeiro escutaria o que ele tinha a dizer. Os sentimentos que me dominavam me enlouqueceriam de um jeito ou de outro mesmo, daquela forma, talvez eu ao menos entendesse o motivo do surto.
Valente inclinou o rosto para me beijar e virei o pescoço para o lado, já que ele me mantinha presa em seus braços. Seus lábios macios deixaram uma trilha ardente do pescoço até o meu ouvido.
— Me perdoa, Rosa? — Ele insistiu, com a voz torturada.
— Pra começar, me solta, Valente. — Pedi sem força nenhuma, eu queria ficar ali, acolhida nos braços dele.
— Não consigo ficar longe. — Ele segurou meu rosto com as duas mãos. – O que você está fazendo comigo, corujinha? — Seu olhar carinhoso me deixou estado febril. — Como posso sentir tanta falta assim de alguém?
— Esses seus surtos vão me deixar maluca. Você sabe que se comporta como uma pessoa bipolar, não sabe? — Soei firme dessa vez, mas o suspiro no final me denunciou.
Ele riu.
— Eu queria ficar longe, te proteger, mas não sou capaz.
— Você é uma besta – resmunguei e ele subiu o canto do lábio.
— Pode me xingar do que quiser. — Valente me abraçou com força. — Só não fique longe de mim.
— Como posso ficar com alguém que vira e mexe foge? — Suspirei. — Sai correndo assustado? Não dá, Valente. Não é justo comigo.
— Eu sei. — Ele me soltou do abraço e me encarou, sério. — Por isso resolvi te contar o que aconteceu.
Arregalei os olhos. Ele ia finalmente me dizer o que o deixava traumatizado daquela forma? Mas Valente apenas tirou um envelope do bolso e me entregou.
— Por favor, Rosa. Leia quando estiver sozinha. Grande parte do meu passado está aí — ele acariciou meu rosto com os polegares. — E agora? Me dá esse último voto de confiança?
Assenti embasbacada ao vê-lo entregue daquela maneira e guardei o envelope no bolso de trás da calça jeans. Antes que eu pudesse reagir, Valente colou os lábios carnudos nos meus com fúria. E se ainda existia alguma barreira em mim, se dissolveu. Porque ser beijada por Valente, era uma viagem só de ida ao paraíso. O tipo de morte que eu adoraria provar pelo resto da vida.
Enlacei o pescoço dele e como sempre fiquei entorpecida, embriagada. Me entreguei completamente. Deixei o sentimento se apoderar de mim e aliviei minha angústia nos braços fortes e quentes que me apertavam. Ele parecia tão aflito quanto eu.
O ruído seco de alguém batendo palmas fez nossas bocas descolarem. Olhei para a porta e fui direto do céu ao purgatório.
Gastão sustentava seu sorriso de lâmina. Havia um homem de terno ao lado dele, que se possível, parecia ainda mais assustador.
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Declaro hoje como o dia oficial de: comente e faça uma leitora feliz! <3
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