CINQUENTA E OITO - Por Valente
Caminhei como um condenado até o banheiro do shopping. Era arrebatado por dores em lugares do corpo que eu sequer sabia que existiam. Meus pés e minhas mãos transpiravam, cheguei a estremecer de frio. Quase um ataque de pânico. Os olhos e a garganta queimavam, o estômago parecia corroído por ácido, e precisei parar umas três vezes durante o percurso para respirar fundo. Eu puxava o ar e ele se recusava a chegar aos pulmões.
Como alguém consegue fazer tanta cagada em tão pouco tempo? Como eu consegui ser tão imbecil? Para variar, arruinei tudo. Quando finalmente consegui colocar a cabeça no lugar, criar coragem de contar sobre o meu passado para Rosa, e assumir meu sentimento por ela, explode a maldita bomba. Cujo pavio, obviamente, foi aceso por mim. O idiota.
Entrei no banheiro e abri a pia. Lavei os pequenos cortes nos braços e o rosto. Só de pensar que eu nunca mais veria minha corujinha, um grito de desespero parecia me rasgar por dentro.
Sacudi a cabeça na ilusão de que isso me faria voltar a raciocinar e me livrei da camisa de flanela suja de sangue antes de seguir até o Centro de Idosos. As palavras de Rosa antes de deixar a Grão Puro, criavam um eco doloroso por todos os cantos do meu corpo:
"Não vou ouvir mais nenhuma explicação sua. E eu me demito da biblioteca, Valente. Não quero nunca mais olhar para você!"
Aqueles olhos decepcionados de coruja iriam me atormentar para o resto da vida.
Meu Deus, e o pai dela ainda perdeu o emprego.
Por culpa minha e dessa vingança de moleque. Lourenço sequer ouviu minha proposta. Deu-me às costas e nenhuma chance de tentar coagi-lo. Ao menos Vitor aceitou que eu pagasse pelo prejuízo da vitrine de vidro quebrada. Um peso a menos na consciência.
Para que fui publicar essa praga de vídeo na internet?
Sentei na recepção para aguardar minha avó. Estava fora do horário de visita, mas ela sempre parecia me acalmar de alguma forma, mesmo sem lembrar de mim. Sacudi as pernas na cadeira. A cuidadora nunca demorava tanto para dar notícias. Senti um desconforto na boca do estômago. Um pressentimento ruim.
Ouvi passos arrastados no piso frio e me virei na cadeira.
— Senhor Valente, desculpe a demora. — A voz dela e suas olheiras denunciavam seu cansaço. — Sua avó anda muito debilitada nesses últimos dias. Ela está dormindo e como passou as duas últimas noites acordada, achei melhor deixá-la descansar.
— O que há de errado com ela? — Prendi a respiração. — E por que não me falou? Estive aqui outro dia.
— Desculpe, mas preciso conversar com o senhor. — Seu olhar me deixou preocupado. — Podemos ir até a cafeteria?
Aquiesci e segui a cuidadora para o salão lateral. O incômodo havia deixado a boca do meu estômago e se espalhado pelos braços e pernas.
— Sente-se. Aceita um café?
— Não, obrigado. — Sacudi as pernas. — Se puder ir direto ao assunto...
— Sim, é só que... Pode soar um pouco estranho. – Ela puxou a cadeira e sentou-se de frente para mim.
— Diga.
— Sua avó, bem... Nessa última semana, está obcecada com o tempo. — Ela franziu o cenho. — E a cada dia que passa, piora. Parece que ela faz uma contagem regressiva.
— Como assim? — A dor havia se transformado em uma fisgada no pescoço de tanto que eu tensionava os músculos.
— Ela pergunta a toda hora e a todos que se aproximam dela, quantos dias faltam. Ela murmura enquanto dorme: "Faltam seis dias... faltam cinco dias..." — Ela tomou fôlego e continuou. — Ela anda tendo pesadelos, acorda sempre nervosa e a primeira coisa que pergunta é a data. Ontem ela gritou com uma das faxineiras que derrubou o calendário dela da cabeceira sem querer. — A enfermeira parou alguns segundos e avaliou minha reação, continuei quieto, e ela prosseguiu. — Sua avó costuma ser tão doce... Mas ultimamente, ninguém pode contrariá-la ou tentar distraí-la que ela berra, fica agitada e pede para ser deixada sozinha. E hoje ela começou a rabiscar os números nas paredes. Precisamos sedá-la para impedi-la de acabar com a pintura do quarto.
Massageei a têmpora. Pelo visto, minha avó não iria apenas esquecer completamente de mim. Iria enlouquecer.
— Desculpe, senhor, mas eu precisava contar à família.
— Não tem problema. — Fiz uma careta com a fisgada que me maltratava.
— Faz alguma ideia do que acontecerá em cinco dias?
— Meu aniversário.
E o melhor presente que eu poderia ganhar, claro. A maldição selada.
Agradeci e voltei ao castelo enfurecido em busca do livro maldito. Subi as escadas, cruzei a sala dos brasões e peguei o objeto de capa dura azul marinho sobre o pufe lilás.
"Tic-tac, faltam cinco dias. Será que o Enforcado ainda saber contar o tempo?
Exatamente 120 horas para selar a maldição.
Aproximadamente 7.200 minutos para completar 21 anos. E o que ele faz?
Estraga tudo. Tic-tac... tic-tac..."
— Isso não é justo! — Soquei o travesseiro e atirei o livro no chão. — Vá pro inferno! Eu fiz o que você pediu!
Estava agoniado.
Eu precisava de ajuda, ou acabaria desistindo de tudo. Aceitaria uma vida amaldiçoada, longa e solitária pelo resto de meus dias. E teria que conviver com mais um peso: O dos erros que recairiam eternamente sobre minha querida avó Constança. E ela era inocente. Como todos os outros que eu acabava por ferir: Rosa, Vitor, Bruce.
Quem mais falta?
Estraguei mesmo tudo. Arruinei minhas chances com Rosa. E depois de tudo que passei nos últimos anos, duvidava que algum dia voltaria a me sentir dessa maneira com outra pessoa. Com ela, era como se eu tivesse encontrado meu lar. Rosa não apenas me via, ela me enxergava e apesar de todos os meus defeitos, retribuía o sentimento. Talvez fosse melhor eu aceitar essa dor, e me preparar para conviver o restante da minha vida condenado pelos próprios erros, fadado a morrer sozinho. Eu queria apenas que minha avó ficasse de fora disso, mas esse seria mais um remorso para carregar.
Mas também, quem esperaria que o vídeo fizesse tamanho sucesso? Aquilo foi totalmente inesperado. Eu tinha a impressão de que o azar me seguia.
Minha esperança era a de que Rosa lesse as cartas no envelope e me conhecendo mais a fundo, talvez o perdoasse.
Não adianta. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Andei até a escrivaninha e reli o rascunho do que escrevi para Rosa, na carta entregue a ela horas atrás.
Se arrependimento matasse...
A única coisa que eu conseguiria com aquilo, seria pena.
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Minha parte favorita se aproxima! <3 Preparem seus corações!!! O que estão achando? Comentem!
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