Teodoro
— Que tal essa? — Apontei para a tela do computador uma casa com varanda, que ficava à beira mar.
Nia não respondeu, e obviamente eu sabia que não haveria resposta, mas queria compartilhar a experiência da escolha. Mais que isso, eu tinha, bem no íntimo, uma esperança de que ela pudesse achar alguma das casas tão encantadora que daria algum sinal de consciência.
— Acho que você não gostou muito. — Sorri.
Ela estava sentada na cama, onde eu a tinha colocado. O cabelo um pouco bagunçado, a maquiagem leve que passei em seu rosto deu um pouco de vivacidade à minha triste esposa. Como saber se ela preferia ser maquiada? Não era possível. Porém Nia sempre fora tão vaidosa em seus tempos de plena saúde, que imaginei ser a coisa certa a fazer.
— Olha Nia, essa tem preço bom e é em uma ilha. — Mostrei uma casa bonita, de cor branca com uma larga varanda. — Tem três quartos, sala, cozinha, banheiro, suíte e outros cômodos. Parece boa e nós podemos comprá-la.
Fitei seu rosto. O olhar estático pareceu brilhar. Claro que os seres humanos são extremamente sugestivos, eu acreditaria em qualquer coisa que me fizesse sentir menos solitário e culpado.
— Existe uma pequena vila nos arredores e lá chove a maior parte do ano. — Falei enquanto e sentia um pouco tolo. Conversar sozinho não era meu forte. — Acho que vai ser essa mesmo.
Fechei o notebook e coloquei sobre a cama. Analisei meu reflexo em um espelho próximo, meu cabelo estava bem mais comprido que o usual. Eu precisava cortá-lo. Nia também estava com o cabelo maior do que quando a conheci, eu gostava do cabelo dela comprido, mas talvez ela preferisse menor já que sempre fora muito prática.
— Precisamos cortar os cabelos. — Peguei uma mecha de seus fios para avaliar as pontas. Alguns pêlos finos do rosto dela se arrepiaram ao toque. Senti vontade de chorar quando vi a resposta ao movimento. — E hidratar. Acha que poderemos nos mudar amanhã? Eu acho que sim. — Dobrei as mangas da camiseta que eu tinha vestido nela. Estava perfeitamente limpa e alinhada. Talvez eu pudesse cuidar dela até que estivéssemos em nosso novo lar e eu pudesse contratar uma enfermeira fixa. — Ficaremos em um hotel até comprarmos a casa.
Passei a mão pelo meu rosto. Havia um pouco de barba com a qual eu não tinha me importado antes.
— Você acha que devo deixar a barba crescer?
♠♠♠♠
Estávamos na casa de Nia depois de casada. Era estranho estar lá de livre e espontânea vontade, principalmente tendo sido convidado para tal e acompanhando um detetive.
Algumas coisas mudaram desde a última vez que espiei a casa. Havia um muro recém construído, que por si mesmo já era suspeito, e muitos pertences do apartamento de Nia. Era uma casa aconchegante, perfeita para um jovem casal. Os cômodos estavam quase todos cercados por fita zebrada nas cores amarelo e preto.
— Quais os resultados da perícia? — Perguntei para Nico que me guiava até o quarto no qual o corpo de Lianmar foi encontrado.
— Ainda não saíram. Dessa vez o trabalho é grande, pode demorar alguns dias. — Respondeu enquanto virava em um corredor. — Ela foi encontrada no quarto, fica no final do corredor.
— Entendo. Eles disseram algo sobre aquela fantasia? — Nico congelou o passo. — Sim, segundo Miguel ele tinha comprado para entreter Nia. Ele até mesmo mostrou o cupom fiscal da compra, ainda estava na carteira, e explicou o endereço da loja.
Nico continuou até a porta do quarto que estava fechada.
Só consegui imaginar Miguel vestido de unicórnio e Nia feliz com aquilo. Não parecia minha amiga, ela acharia algo assim completamente ridículo.
Nico abriu a porta do quarto e entrou. Imitei seus movimentos e entrei também. O odor do quarto era de podridão e algo mais. Os móveis eram novos e as roupas de cama estavam cobertas de sangue.
— Nem um pingo de sangue no chão. Ele é bom no que faz. — Senti uma enorme repulsa enquanto Nico analisava o quarto. — Mais que bom, ele conseguiu fazer isso sem que ela pudesse resistir apesar de estar acordada quando morreu, a expressão de pânico nas fotografias deixa isso bem claro.
— Isso significa que ela viu o assassino antes de morrer. — Concluí. — Por que não gritou?
— Talvez já estivesse com o corpo aberto quando teve um último lapso de consciência. — Nico refletiu enquanto se agachava para analisar cacos no chão. — Segundo Miguel, foi Nia que encontrou a mãe, ele acordou depois.
— O que é isso no chão? — Agachei para ver melhor.
— Café. — Ele pegou um caco e observou. — Ela entrou no quarto e deixou uma xícara cair.
— Caneca. — Corrigi. Nico me olhou e fez um aceno de “tanto faz” com uma das mãos. — Onde a fantasia estava?
— No banheiro. — Levantou-se e andou até a cama para analisar com mais exatidão. — Estranho, um assassino que entra no banheiro e que sabe o quarto no qual a vítima está.
— Sorte? — Perguntei enquanto pensava naquilo. Realmente era algo incomum.
— Não, não foi sorte. — Nico olhou para a janela. Um pouco mais larga que o comum. — Ele sabia exatamente o que Fazia. De alguma maneira tinha acesso à casa.
— Como você sabe? — O mau cheiro me deixou com náuseas, então fui obrigado a me retirar do quarto. Quando Nico respondeu, eu esperava no corredor.
— A porta não foi arrombada. — Concluiu enquanto me seguia. — Nem o portão.
— Sabe, quando eu estava... Protegendo Nia, essa casa não tinha muro. — Usar o verbo “perseguir” não era uma idéia interessante. Fazia-me pensar no quanto fui idiota. — Ele parece ser novo.
— Tem razão. — Nico me olhou como se tivesse sido atingido por uma epifania. — Este setor não é tão violento a ponto de uma pessoa precisar construir um muro às pressas.
— Não, não é. Na verdade aqui é relativamente próximo da minha casa. Digo, de nossas casas. — Pensei nisso quando observava Nia e Miguel antes do casamento. — É uma região muito tranquila, sem muitos crimes. Talvez por esse motivo tenham escolhido uma casa por aqui.
— Mais algum detalhe sobre os imóveis da região, senhor investigador? — Nico perguntou enquanto segurava o queixo com uma mão.
— Algumas casas têm porão. — Respondi. Poderia ser crucial saber disso.
— Isso é meio incomum. — Disse enquanto escaneava o piso com o olhar.
— De fato. — Olhei para o chão enquanto tentava entender o súbito interesse de Nico pela cerâmica.
O detetive entrou no quarto outra vez e engatinhou pelo chão procurando algo no piso. Quando não encontrou, se levantou e foi para o outro quarto. Vazio, sem móveis. Observei o estuque, a casa tinha isolamento acústico. Novamente Nico não encontrou o que procurava, então saiu pelo corredor observando o piso até chegar ao quarto principal.
Entrar no quarto do casal me fez sentir algo inexplicável. Era bonito, sóbrio, confortável e tinha uma penteadeira antiga encostada em uma das paredes. Era um móvel que refletia um ponto da personalidade de Nia Imaginei-a sentada, escovando os cabelos ou passando maquiagem enquanto Miguel observava, sentado na cama. Que homem de sorte ele era.
Acordei do devaneio com Nico pedindo passagem pelo corredor. Saí do caminho e ele correu para a sala. Havia um tapete grande no chão que foi arrastado sem cerimônia. Nico soltou palavrão de satisfação enquanto se ajoelhava e passava o dedo no piso.
Tinha encontrado a entrada do porão. Entendi seus atos anteriores quando percebi que a cerâmica estava cortada de uma maneira diferente. Nico apalpou o chão até encontrar um mecanismo que abrisse a portinhola.
Quando conseguiu, a pequena porta deu um salto, revelando a entrada seguida por um curto lance de escadas. Estava escuro lá embaixo, mas havia um interruptor bem localizado, ao lado da entrada. Nico ligou a luz e entrou no porão. Curioso, desci pela escada enquanto seguia seus passos de perto.
Nico parou bem no centro do cômodo e deu um giro. A expressão variando entre decepção e admiração. Eu também estava admirado. O porão era amplo, mais iluminado que todo o restante da casa, todas as paredes foram pintadas de branco, e com exceção da lâmpada, não havia mais nada.
— Não se faz mais porões assombrados como antigamente. — Brinquei.
— Nem assassinos bobos o suficiente para se esconder neles. — Retribuiu a brincadeira. Sua voz ecoou pelo porão vazio.
— Nico, por que você acha que eles construíram o muro tão rápido? — Questionei.
— Ameaça? — Nico me fitou em busca de confirmação.
— Talvez. E se algo aconteceu, mas não quiseram contar? — Nico esfregou a testa com uma mão.
— Por que não contariam? — O detetive se dirigiu às escadas do porão e subiu.
— Não faço idéia. Alguém falou com os vizinhos? — Saí do porão logo depois de Nico.
— Ainda não. — Quando respondeu já estava na porta à minha espera.
— Nós vamos falar com eles? — Indaguei.
— Sim. — Nico respondeu se dirigindo ao portão.
♠♠♠♠
— Liguei para um depósito, eles vão guardar nossos móveis enquanto não são vendidos. — Contei para Nia quando descemos do carro em frente ao salão. Algumas vezes Nia andava, outras não. Essa foi uma das vezes na qual ela cooperou, então fiquei contente. — Contei para seu pai que vamos nos mudar. Ele concordou.
Segurei a mão dela enquanto a guiava porta adentro. Era mais que satisfatório o fato de o salão estar vazio, não haveria uma multidão de fofoqueiras olhando torto para minha esposa.
Fomos recebidos por uma mulher trans de short curto e camiseta de uniforme. A moça tinha um sorriso largo e seu nome era Adelaide. Simpatizei com o excelente atendimento que nos prestou. Havia um rapaz que cuidava da manicure dos clientes.
Sentei Nia em uma das cadeiras e arrumei seu corpo de forma que ficasse confortável.
— Então, qual vai ser o corte? — Adelaide perguntou.
— Pode fazer manicure e pedicura nela? — Talvez o rapaz estivesse com o tempo reservado para outro cliente, mas percebi que não quando ele começou a se preparar para executar o serviço.
— Claro! Matheus é maravilhoso, vocês vão amar. — Adelaide teve a delicadeza de não perguntar sobre Nia, o que me fez gostar ainda mais dos serviços dela.
— Quais cores? — Matheus perguntou.
Pensei no que Nia escolheria. Era uma mulher discreta e prática, não costumava usar cores muito vibrantes.
— Branco nos pés e turquesa nas mãos. — Básico.
— E você? — Adelaide perguntou enquanto indicava a outra cadeira vazia.
— Quero apenas que apare e hidrate. Gosto do cabelo em comprimento médio. — Respondi enquanto me sentava. — E ela usava o cabelo na altura dos ombros, talvez um pouco mais baixo — peguei meu celular e mostrei fotos dela —, mas pode fazer chanel. Adelaide, acha que ela ficaria bem com uma franja lateral?
Adelaide já se preparava para cortar meu cabelo quando olhou para Nia e avaliou.
— Vai ficar muito bom. — Abriu um sorriso largo enquanto imaginava Nia e sua nova franja. — Que par de olhos fantástico!
— Maravilhosos mesmo. — Falei com orgulho. — Ela toda é maravilhosa. — Meus olhos ficaram marejados enquanto lembranças de Nia feliz invadiam minha mente.
— Você quer ser barbeado? — Adelaide merecia um prêmio por sua discrição e profissionalismo.
Olhei para Nia, enquanto Matheus colocava seus pés em uma bacia com água. Ele tinha delicadamente tirado a sandália rasteira de seus pés. Agradeci aos céus pelo momento no qual escolhi aquele lugar.
— Sim, quero me barbear. — Seria melhor manter a pele macia para o caso de precisar me encostar-me a ela, ou caso ela acordasse daquele estado estático no qual sua mente estava.
Adelaide sorriu como se pudesse ler meus pensamentos.
— Vão ficar ainda mais bonitos do que já são, confie em nós. — Foi tudo o que disse antes de iniciar seu trabalho.
♠♠♠♠
Era a quarta campainha que Nico tocava naquela tarde. As outras entrevistas não tinham sido satisfatórias, então o detetive se irritara. Vizinhos que não viam, nem ouviam, não era algo que contribuía para seu bom humor.
Um homem magro com basto bigode atendeu a porta e nos lançou um olhar curioso.
— Posso ajudá-los? — Perguntou enquanto nos avaliava dos pés à cabeça sem a menor cerimônia.
— Sim, pode. — Nico respondeu em um tom seco.
— Entrem. — O homem convidou e o seguimos até uma sala. — Sentem-se. — Indicou sofás enquanto se sentava.
— Sou o detetive Nico e este — Nico apontou na minha direção — é meu colega Isac. Estamos aqui para fazer algumas perguntas.
— Claro. Meu nome é Teodoro. — O homem se apresentou.
— Então, Teodoro. Você sabe algo sobre a casa murada que fica do outro lado da rua? — Nico foi direto. Incisivo. Havia algo em sua postura que denunciava os anos de experiência.
— A casa do casal estranho. — Ele deu uma risadinha. — As coisas que vejo quando faço meu cooper mat...
— Casal estranho? — Nico interrompeu.
— Sim, muito estranho. Um pouco engraçado. — Ainda havia humor em sua voz.
— Por que diz isto, Teodoro? — Nico metia medo quando queria.
— Bom, outro dia, enquanto fazia meu cooper matinal, vi a moça pisotear um buquê. — Contou.
— Onde estavam? — Nico questionou.
— Quase na calçada. — O homem respondeu.
— Já tinha muro?
— Não.
— Você sabe que flores eram? — Nico arrancou o celular do bolso e colocou para gravar as respostas de Teodoro.
— Não sei ao certo. Estavam um pouco longe quando vi inteiras. — O homem deu de ombros.
— Arriscaria um palpite?
— Talvez fossem rosas.
— De qual cor?
— Amarelas.
Meu coração deu um salto ao receber tal informação. Talvez nossa teoria estivesse correta e eles realmente foram ameaçados, mas a grande questão era: por que não denunciaram?
— Você ouviu alguma conversa? — Nico estava agitado com as novas informações. E seria hipocrisia dizer que eu não.
— Claro, mas apenas trechos. — Informou.
Nas duas horas seguintes o homem nos contou tudo o que sabia. Deixando-nos, no mínimo, intrigados.
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