Perigo
— Isac, você tem uma visita. — Arecleto anunciou.
Os colegas de cela começaram uma algazarra bem humorada antes mesmo que eu pudesse perguntar quem era. Naquela noite dormi mal. Foi o pior dia depois da morte de Djéfani. Era quase impossível digerir o conteúdo do maldito vídeo que fora reproduzido na frente de tantas pessoas. Aquela mulher tinha se humilhado ao contar sua história.
Schukrut era um monstro. Um grande e asqueroso monstro incestuoso e sociopata que passava por cima de tudo e de todos. A idolatria das pessoas fez com que se tornasse admirado e quase intocável. Seu dinheiro lhe deu poder, e se não fosse por Djéfani, ele ainda estaria solto, completamente impune e eu estaria morto.
Voltei meus pensamentos para o presente. A algazarra tinha cessado consideravelmente, então consegui conversar com Arecleto.
— Quem é? — Perguntei. As únicas pessoas interessadas em mim eram Lianmar, Nico e meu advogado.
— Uma moça. — Falou e foi inevitável impedir a algazarra de recomeçar. Inúmeras piadas sobre alguma moça que ficou de coração partido quando o amor da sua vida sumiu. Ou alguma gravidez inesperada.
— Nome? — Eu estava curioso. Uma moça?
— Ela pediu para não dizer. — Arecleto encerrou a conversa e abriu a grade da cela. Estendi os braços para que ele pudesse colocar as algemas, era um procedimento padrão e eu já me acostumara.
— Ui, uma moça misteriosa. Fala para ela que você não tem compromisso nos próximos dias. — Joarneson brincou. Pude ver Carlos no canto da cela, rindo da fanfarronice. Por um instante até mesmo eu pude rir.
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Minha mãe tinha razão. Isac estava diferente. Ele nem precisou abrir a boca para que eu entendesse que mudara. Seu olhar e sua postura contavam novas coisas sobre ele. Os olhos, antes muito gentis, encaravam cada centímetro do mundo como se ele fosse uma águia. Sua postura, antes omissa, passou a ser confiante e um pouco ameaçadora, Isac até parecia mais alto. O cabelo bagunçado e bem cortado dava a seu rosto um novo charme despojado. Eu era realmente muito fútil em pensar daquela maneira, naquele momento, mas era a grande verdade que até mesmo um cego poderia ver.
Quando me viu, Isac não sorriu. Não falou. Não houve expressão ou reação. Apenas me olhou. Da mesma maneira que as pessoas olham o nada. Não sei se era sua intenção, mas me senti idiota por estar ali. Era uma postura tão estranha de sua parte, distante e vazia, fazia parecer que não me conhecia.
Senti uma pontada no coração seguida de uma enorme vontade de chorar. Pensei que encontraria meu velho e caloroso amigo, mas ali estava um homem que poderia ser trocado por um poste. Durante um minuto inteiro ele ficou na mesma posição, me olhando. E eu não conseguia articular sequer uma palavra
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Eu não conseguia acreditar em meus olhos. Nia estava na minha frente, quase irreconhecível. As íris cor turquesa, estavam emolduradas por pálpebras inchadas e olheiras avermelhadas, quase roxas. Estava mais magra que da última vez em que a vi, e parecia carregar a infelicidade de todo o mundo nas próprias costas. O cabelo estava mal cuidado e os lábios um pouco ressecados.
Nia me olhou com medo. E ficou um longo momento sem dizer nada.
Eu não sabia mais o que sentia por ela. Quando eu pensava em Nia, me lembrava de outra pessoa, alegre e cheia de vida. Não aquela mulher parada na minha frente, sem saber como agir. A musa dos meus sonhos tinha uma delicada e encantadora aura dourada de pura energia positiva. Aquela pessoa parecia ter saído de um abismo.
Eu estava chocado com a situação.
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— Isac. — Falei na tentativa de dissipar a tensão que havia na sala.
Talvez ele se sentasse na cadeira do outro lado da mesa. Ou, talvez pedisse para ir embora dali. De toda forma, qualquer coisa era melhor que aquela situação constrangedora e sufocante.
Quando ele andou e se sentou na cadeira em frente, eu não sabia se sentia alívio ou desespero.
— Ham... — Tentei improvisar algo. — Minha mãe me contou tudo.
— É. — Respondeu olhando no fundo dos meus olhos.
Senti-me desconfortável e me mexi na cadeira. Eu nunca tinha ouvido aquela entonação em sua voz. Era fria e áspera.
— Eu, sinto muito. — As palavras saíram quase como um ganido.
— Não, você não sente. — Lançou as sílabas como dardos. — Você não a conhecia.
Senti o peito doer e controlei a vontade de pousar a mão sobre o tórax. Isac estava diferente até em suas palavras. Tão objetivas e pesadas. Afiadas. Capazes de ferir até mesmo a pior das pessoas. No entanto, eu precisava não ser hipócrita, eu realmente não sentia pela morte da moça.
Tentei outra abordagem.
— Arlete foi assassinada. — Foi difícil segurar o marejar dos olhos. — Em seu próprio apartamento.
— Isso é ruim. — Foi tudo o que disse. O antigo Isac teria tentado me confortar. — Onde está seu marido?
— Lá fora. — Respondi esperançosa por ele demonstrar o mínimo de interesse em conversar comigo.
— Ele não cuidou de você direito. — Eu nunca, jamais esqueceria aquelas palavras que caíram sobre a mesa como blocos de concreto.
Eu queria me revoltar, estapear Isac, virar as costas e sair daquele lugar, mas a verdade é que eu tinha estabelecido que não seria hipócrita, e todas as vezes que coisas ruins me aconteciam, Miguel não estava lá. Talvez fosse diferente se ele estivesse, mas ele nunca estava. Isac esfregou no meu rosto um dos meus sentimentos mais obscuros. Era pior ter a certeza de que foi completamente não intencional.
— Ele faz o que pode. — Me lembrei de todo o esforço que ele fazia para me deixar melhor. — Ele até mesmo se vestiu de unicórnio. — Contei.
Em resposta Isac ergueu uma sobrancelha.
— O que está acontecendo? — Perguntou.
Direto como um tiro.
— Minha mãe me chamou atenção para o fato de que fazia dias que eu não te via. — Escolha errada de palavras. Arrependi-me no instante em que terminei de pronunciar a frase. Fazia parecer que minha mãe tinha me obrigado a estar ali.
Isac semicerrou os olhos e se inclinou sobre a mesa como se fosse pescar algo escondido em mim.
— Não perguntei o que a trouxe aqui. — Endireitou a postura. — Perguntei o que está acontecendo com você. — Um golpe direto, sem misericórdia.
— Por que acha que tem algo acontecendo? — Minha voz embargara enquanto eu tentava controlar as lágrimas.
— Porque você precisa de ajuda. Você só me procura quando isso acontece.
Naquele instante me dei conta de que eu nunca conheci o lado frio de Isac. E eu não estava feliz em conhecê-lo àquela altura.
— Isso não é verdade. — Repliquei. Em minha opinião não era. Tentei ajudá-lo muitas vezes.
— É a verdade. — Isac me olhou como se eu fosse uma barata. — Aposto que tem algo acontecendo.
Se sua aposta fosse a dinheiro ele teria ganho.
— Isac, eu realmente queria ver como você está. — Não consegui mais segurar as lágrimas.
Uma profunda tristeza tomou todo o meu ser. Eu queria contar tudo que estava errado, mas não tinha como fazer isso sem comprometer Miguel. E eu não podia comprometer meu marido, porque acima de tudo eu o amava e não suportaria perdê-lo.
Era quem me restava, fora minha família.
— Sob incentivo da sua mãe. — A frase foi como um dardo certeiro. “Implacável” descrevia Isac naquele momento.
— Não, eu queria vir, é só que... — Eu não podia completar a frase, não podia concluir o pensamento sem contar toda a verdade. Era a única maneira de explicar que eu me sentia tão deprimida a ponto de não querer sair de casa.
— Só que...? — Incentivou.
Era minha chance de contar tudo, mas eu realmente não podia.
— Nada. Foi um erro vir aqui.
Fiz uma saída dramática, mas não era a intenção. Cheguei ao carro chorando em cântaros. O único jeito de quebrar o gelo de Isac era contando a verdade, e aquilo eu não faria.
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“Foi um erro vir aqui.”
Nia saiu sem olhar para trás. E eu fiquei com o coração partido mais uma vez. Vê-la chorar foi algo difícil, em algum momento daquela conversa eu tinha descoberto um sentimento novo. Diferente do que conhecera antes.
Eu não tinha intenção de feri-la, apenas queria que ela me contasse o que acontecia, porque algo estava acontecendo. Ela negara com as palavras, mas os silêncios, os gestos, as lágrimas confirmavam que havia algo errado. Porém, Nia não quis falar.
Talvez ela não quisesse minha ajuda, então seria melhor aproveitar aquela mágoa e sair de sua vida. Eu não conseguiria vê-la definhando sem me intrometer, mas ela não era a mesma Nia de outros tempos. Tinha um marido. Suspeito, mas era seu marido, o homem que ela escolheu e eu precisava respeitar isso.
Cheguei à cela mais triste que quando saí.
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— Ele me tratou com tanta frieza, mãe.
Encostado no corredor eu ouvia enquanto Nia desabafava com a mãe.
Ela não quis me contar o que tinha acontecido e aquela era a única maneira de saber. Quando se tratava de Isac, o assunto era sempre diferente, ela nunca falava como das outras coisas. Precisava respeitar o momento de minha esposa, mesmo que isso significasse ouvir detrás de paredes.
— Não consigo entender o que aconteceu. — A mãe falou. — Talvez o desejo de vingança tenha alterado algo nele.
— Ele me fez me sentir egoísta. — Nia estava aos soluços.
— Por quê? — A mãe perguntou. Eu também queria saber.
— Bem eu... — Nia enrolou.
Matei a charada, ela não precisava terminar a frase. Era a única coisa que ela queria esconder da mãe. Isac tinha percebido que havia algo errado e deve ter tentado arrancar a verdade de alguma forma.
— Eu não quis falar dos meus sofrimentos. — Era uma meia verdade.
Outra vez ela me protegia.
Senti uma enorme vontade ir pessoalmente contar tudo o que estava realmente ocorrendo desde o nosso casamento, mas eu não tinha direito. Aquilo era algo que Nia não queria porque a verdade poderia me levar para a prisão. E porque ela não queria contar para a mãe que foi abusada.
Nia e eu carregaríamos o fardo dela até a morte.
Outra vez pensei em como seria benéfico mudarmos de cidade. Começar uma vida nova, longe de tantos problemas, longe de perguntas que reviveriam dores passadas.
— Nia, por que eu tenho a impressão de que você me esconde algo importante? — Minha sogra colocou Petúnia em xeque, era minha deixa para entrar em cena.
Fui até o quarto e peguei um pacote de lenços umedecidos. Levei para Nia limpar o nariz e secar os olhos. Foi o momento certo, o olhar de gratidão que ela me lançou foi muito significativo.
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04:00 a.m.
Lianmar rolava na cama enquanto pensava nos acontecimentos do dia. Nia escondia um segredo e Miguel sabia qual era. Ele não era apenas um homem com timing perfeito, era alguém que sabia de algo que a estava destruindo.
Ela precisava saber o que era, antes que sua filha minguasse até a morte.
Inquieta e com sede, se levantou para beber um copo de água.
Quando chegou ao corredor viu que a luz da cozinha estava acesa. Andou silenciosamente para ver Miguel parado em frente a pia enquanto mexia no telefone. Pegou a jarra de água na geladeira e um copo. O encheu e tomou, saciando a sede.
Observou o genro por alguns segundos, ele estava de jeans.
— Miguel... — Lianmar começou a falar.
— Sim, sogrinha. — Miguel olhou para ela e sorriu. Lianmar sentiu um arrepio nas costas.
— Eu pensei melhor e acho que não é uma boa idéia vocês se mudarem por agora. — Disse enquanto observava Miguel mexer no celular.
— Por que não? — Ele se virou e sorriu com os olhos mais abertos que de costume. Pareciam maiores.
Na opinião de Lianmar, Miguel estava sorrindo demais.
— Porque eu acredito que ela esteja escondendo algo que está fazendo mal para seu estado emocional. — Arriscou. Talvez ele resolvesse contar a verdade.
— Acho que não há segredos. — Falou e sorriu. Era como se o sorriso tivesse fixo em seu rosto. — Tudo que acontece costuma estar bem à vista, darling.
Ela não gostou do jeito que ele falou. Parecia outro homem, menos sensato, nada maduro.
— Já eu, acho que existem muitos segredos. — Era uma indireta.
— Você é uma mulher esperta. — Miguel se aproximou e colocou a mão no braço dela.
— Por que está de jeans a essas horas? — Lianmar disparou as palavras enquanto erguia uma sobrancelha.
— Fui comprar um remédio. — O homem soltou seu braço e deu uma risada estranha, meio cínica...?
Afinal, quem era Miguel Tunísio?
— Essas horas? — Se afastou dois passos, quase ficando colada à geladeira.
— As melhores drogarias funcionam na madrugada. — Retrucou.
Lianmar sentiu outro arrepio. De repente seu sensor de perigo apitou alto, mas ela estava com sono demais, talvez fosse tudo culpa da sua imaginação aliada ao cansaço. Não conseguiu segurar um bocejo involuntário.
— Está com sono? — Ele perguntou, como se não fosse óbvio.
— Vou dormir. — Ela se dirigiu ao quarto sem dizer um cumprimento.
Quando chegou ao cômodo, Lianmar trancou a porta e mandou uma mensagem para Adamastor. “Miguel está estranho”, escreveu. Não houve resposta, já estava tarde. Repentinamente, foi tomada por um sono incontrolável, deitou na cama e quase imediatamente dormiu.
Enquanto isso, na cozinha, Juan admirava um frasco de calmante que havia comprado mais cedo. Riu em silêncio da situação, eles eram todos tão imbecis que não percebiam a água misturada com a droga. Um copo da solução e dormiam profundamente. Ele tinha absoluta certeza de que ela acreditava que ele era Miguel. Pobre mulher. Uma pena que tivesse cruzado seu caminho.
Juan abriu uma gaveta e tirou um molho de chaves de dentro dela. Havia cópias das chaves de toda a casa. Sorriu de uma maneira traiçoeira. Não tinha ido apenas comprar calmante, precisava cuidar das rosas. Agora que seu grande cúmplice foi preso, era necessário fazer tudo sozinho.
Maldito Schukrut que fora pego por um molecote e uma puta. Era bom providenciar para que ele não falasse demais, mas isso era assunto para outro dia.
Juan se preparou para visitar o quarto da adorada sogra de Miguel.
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