Pela eternidade
Juan fungava perto de minha orelha como um animal, prestes a devorar a caça que não tinha mais saída.
O barulho da cachoeira ficou cada vez mais alto, estávamos quase no barranco. A noite de lua cheia ajudava na visibilidade do caminho.
Por instinto de sobrevivência estaquei o passo, mas Juan não me deu chances de não continuar, me empurrou até que eu chegasse a cerca de um metro de onde terminava o solo. Uma névoa fina e fria cobria os arredores. As silhuetas das árvores se projetavam como fantasmas assustadores. As lágrimas ainda corriam pelo meu rosto.
Juan cortou a corda que prendia minhas mãos.
Coloquei a mão sobre o ventre e me desculpei em pensamentos.
“Perdoe-me, filho. Mamãe não pôde proteger você. Eu tentei. Juro que tentei. Se algum deus existir no firmamento, ele terá visto que tentei com todas as minhas forças. Tudo foi absurdo demais, mas eu tentei fugir. E meu amor... se o céu existir, e sua alma for para lá, não tenha ódio de seu pai, ele amou você, assim como eu o amo.”
— Por que está assim como uma idiota? — Juan ronronou em meu ouvido. A lâmina de sua faca encostada em meu pescoço. Estava chegando a hora de nossa morte. Senti em cada célula de meu existir.
Não respondi a pergunta.
De maneira inesperada, Juan começou a passar o nariz pelo meu pescoço.
Não!
Que ele me matasse logo. Que não me estuprasse outra vez!
Como se ouvisse meus pensamentos, Juan gargalhou. Depois mordiscou minha orelha em um gesto que fez meu estômago se revirar.
— Não... — Pedi. As lágrimas correndo pelo rosto, ininterruptas.
— Se entregue a mim, é sua última chance. — Juan sussurrou.
— Não. — Pedi sem convicção, eu não tinha mais esperanças.
— Me escolha, Petúnia! — Rosnou. Um arrepio de mau agouro me percorreu dos pés à cabeça.
— Não. — Coloquei as duas mãos sobre o ventre de uma maneira protetora.
Juan cortou o tecido que cobria meu ombro esquerdo, deixando a pele nua. Depois passou a língua por toda a extensão.
Para mim, era como se uma cobra rastejasse sobre meu ombro. Úmida e asquerosa. Não consegui segurar mais. Dobrei-me e vomitei a parca refeição que tinha ingerido a algumas horas.
Juan me empurrou contra o chão. Caí desajeitada, com uma mão torcida. Em seguida o homem apoiou um joelho sobre minhas nádegas. Não houve tempo para reação, ele segurou o tecido perto de meu pescoço e o cortou até a barra. Senti o gelo da noite na nova abertura dos tecidos.
Antes que eu pudesse entender o que passava, o homem me puxou pelos cabelos até que eu me pusesse em pé. A dor era insuportável. Quando conseguiu me colocar na posição vertical, Juan arrancou os tecidos que cobriam meu tronco. Meus seios ficaram nus na noite.
— Ande! — Me empurrou para mais perto do barranco.
♠♠♠♠
Nico e eu seguimos a trilha até a caverna. O caminho era cheio de pedras e se não fosse uma fogueira quase apagada, não teríamos encontrado o lugar. Foi uma sorte grande ver a fraca iluminação.
Porém, quando chegamos à caverna, encontramos apenas objetos.
Agachado, Nico investigou os pertences ao lado de uma parede onde a iluminação caía parca, a luz da lanterna se fazia necessária para identificar cada objeto.
— Roupas. — Jogou as roupas no chão enquanto pegava outro objeto. — Uma faca... Sacola... Uma carteira. Ilumine aqui! — Solicitou.
Aproximei-me mais e banhei o objeto com a luz da lanterna.
— São os documentos de Nia! — Exclamou em um misto de excitação e medo.
Senti um calafrio.
— Os documentos estão aqui, mas ela não está... — Falei de uma maneira sugestiva.
— Merda. Onde ela está? — Nico se levantou e lançou a luz de sua lanterna nos arredores.
Acompanhei enquanto o feixe passeava pela caverna. Meus olhos identificaram algo, do outro lado. Lancei a luz de minha própria lanterna e vi um objeto escorado. Aproximei-me às pressas e identifiquei uma mochila.
— Ah não! Não! Não! O desgraçado a encontrou. — Olhei para Nico que se colocava ao meu lado.
Ele não falou, apenas saiu da caverna e, iluminado pela lua, olhou para os lados. Segui seus passos e vislumbrei a mata. De um lado havia uma fina névoa que se aproximava devagar. E do outro, o caminho pelo qual havíamos chegado ali. Era possível ouvir o barulho alto de água caindo, provavelmente uma cachoeira.
Nico adiantou o passo na direção da névoa e iluminou o chão de pedra com sua lanterna. Claro, não havia rastros. O detetive ergueu a luz e se aproximou das árvores, existia um vão na mata que abria caminho na direção do barulho de cachoeira.
Entramos no vão e encontramos uma trilha que, se não fosse pela névoa, seria completamente iluminada pela lua.
— Só há dois caminhos. — Sussurrou. — Vamos! Tente não fazer muito barulho, não sabemos o que ele está aprontando.
♠♠♠♠
— Me aceite, Petúnia. — A voz grave e ameaçadora soou em meu ouvido.
Juan encostou seu corpo ao meu e passou um braço abaixo de meus seios. A outra mão segurava a lâmina cortante encostada em meu pescoço.
— Não posso... — Respondi entre os soluços do choro.
Ele me obrigou a dar um passo na direção do barranco.
— Me ame. — Seu pedido absurdo veio seguido de uma risada cruel.
— Não posso... — Repeti.
Meu corpo foi empurrado de maneira que dei mais um passo.
— Seja minha. — Sua ordem veio seguida de um carinho em um dos seios. Meu interior tremeu em repulsa.
— Jamais. — Minha voz soou mais dura.
Mais um passo largo.
Um. Apenas mais um e eu seria jogada daquele barranco.
Apertei os olhos e rezei. Rezei para qualquer deus que me ouvisse. Pedi perdão, pedi que salvassem a alma de meu filho, se ele já tivesse uma. Era melhor morrer que aceitar um estuprador, ninguém deve aceitar viver com um estuprador.
Inspirei fundo e prendi o ar.
“Solta ela!” uma voz conhecida cortou a noite acima do barulho da água que caía.
“Solta ela!” ouvi outra vez. Eu estava projetando uma ajuda que não viria. A voz de Nico, depois a de Isac...
Só percebi que algo estava errado quando Juan me virou de maneira brusca.
— Malditos! — Xingou.
Foi nesse momento que abri os olhos e os vi. Lá estavam, alinhados, em uma postura austera, cada um com uma arma mirada em nossa direção. A iluminação era parca, mas eu reconheceria aquela voz e aqueles cachos em qualquer lugar.
Meu coração bateu tão rápido e tão alto que pensei que iria morrer pela volta da esperança. Minhas pernas fraquejaram e Juan me segurou mais firme contra seu corpo.
Eu era seu escudo.
— Isac! — Gritei, tentando confirmar se era real. Era difícil acreditar.
— Nia! — Gritou em resposta.
— Malditos! Como chegaram aqui? — Juan berrou e me apertou ainda mais. Seus dedos sulcavam minha carne.
— Você deixa rastros. — Nico respondeu, deu um passo em nossa direção e a reação de Juan foi afastar um passo.
Ficamos perto demais do barranco.
— Eu não deixo rastros. — Juan falou baixo demais, apenas eu ouviria. — Seu amado deixou rastros.
— Juan não...
— CALE A BOCA, VADIA! — Esgoelou e apertou mais os dedos. Fiz menção de me dobrar em uma reação à dor, mas Juan fez questão de lembrar que a lâmina ainda estava em meu pescoço.
— A solte e vamos apenas prender você. — Nico avisou.
— Não vou soltar essa mulher. Eu revirei a cidade toda por ela, dei tudo o que ela quis. Não soltarei! — Juan soava como um animal encurralado. E ele era.
— Você é doente, Miguel. — A voz de Isac se projetou na escuridão. — Nós sabemos tudo. Sabemos que seu pai era o Schukrut.
— Ele não é o Miguel! — Avisei.
— Bobagem, é claro que ele é o Miguel. — Isac insistiu.
— Não, eu não sou. Sou o Juan! — O homem se enfureceu ainda mais, a lâmina começou a fazer pressão.
— O Juan não tem corpo, é apenas uma personalidade. Você é Miguel dos pés à cabeça. — Isac estava calmo. Eu não entendia o que ele tentava fazer. E fosse o que fosse, piorou tudo, porque Juan se afastou para trás um pouco mais.
Senti as gotículas de água que caíram sobre nós.
— Você não sabe o que está falando! — Juan rosnou.
— Nia, quem você ama? — Isac perguntou.
Pisquei confusa com a pergunta repentina e descontextualizada.
— NIA, QUEM VOCÊ AMA? — Repetiu.
— Eu amo o Miguel. — Respondi vacilante.
— Diga isso a ele! — Ordenou.
— Isac, você enlouqueceu? — Nico perguntou, mas Isac não respondeu.
— DIGA PETÚNIA! DIGA A ELE! — Ordenou uma vez mais.
Mas eu não estava segura. Se aquilo enfurecesse mais meu captor, ele nos jogaria no rio.
— DIGA A ELE QUE O AMA! — Insistiu.
Eu ainda estava insegura, mas resolvi obedecer.
— Eu te amo, Miguel. — Minha voz era quase um sussurro.
— Mais alto!
— Eu te amo, Miguel! — Gritei. As lágrimas descendo grossas e frias pelo meu rosto e caindo em meu colo nu.
— Diga a ele como se fosse a última vez!
Juan me apertou mais, não tive certeza se o ar de meus pulmões seria o suficiente para fazer o que ele me pedia, mesmo assim tentei.
— EU TE AMO, MIGUEL! EU SEMPRE TE AMEI! — Berrei em desespero. — EU AMAREI VOCÊ MESMO QUE EU MORRA! NINGUÉM, NEM MESMO JUAN VAI FAZER EU TE AMAR MENOS! EU TE AMO, MIGUEL! EU TE AMO!
O mundo passou a girar em câmera lenta. A faca se estreitou em meu pescoço, pude sentir o sangue escorrer sobre minha pele fria.
Fechei os olhos com força.
“Adeus.” Me despedi do mundo.
Então a lâmina e o braço que me segurava se afrouxaram.
— Eu também amo você. Sempre amarei. Pela eternidade. — A voz suave e grave se Miguel soou em meu ouvido.
Fui lançada contra o chão à minha frente, e quando me virei, ainda pude ver Miguel se jogar do barranco.
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