O porão
Uma chuva fina começava a cair quando Nia e Miguel chegaram à sua nova casa. Era um lugar aconchegante, com piso de madeira e algumas paredes em pedra. Largas janelas de vidro davam uma visão ampla do mar, que naquele momento estava carregado de nuvens negras. Como Miguel havia pedido para a imobiliária arrumar tudo, estava em perfeita ordem. Precisavam apenas guardar as compras feitas no continente.
Miguel pegou Nia no colo e passearam pela casa nova, explorando cada detalhe interessante, como a banheira e a enorme cama.
— E não tem vizinhos muito perto. Talvez um dia, quando você estiver bem, nademos no mar... Pelados. — Depois de uma piscadela charmosa, ele sorriu e beijou a testa dela. — Nem acredito que vamos ter um bebê. Vai ser fantástico! Precisamos escolher um nome. Eu sei, é cedo demais para escolher um nome, mesmo assim... Ah! Não consigo segurar minha alegria, amor. Vamos descer? Vou fazer o jantar. Há um banheiro lá embaixo e outro aqui. Você quer fazer xixi? Acho que quer.
Ele a levou ao banheiro, quase saltitando tamanha era sua alegria. Havia esperanças de uma vida melhor. Talvez o bebê fizesse Nia desviar o foco da mãe e se recuperar mais rápido. E eles tinham a casa nova, o que era ótimo. Nada de perseguição, nem de assassinatos, muito menos de notícias ruins. Seriam ele, Nia e o bebê.
— Vamos ligar para o seu irmão e contar! Ele vai amar. — Miguel falou enquanto sentava Nia no sofá.
Depois arrastou uma poltrona na cozinha para que ela ficasse confortável enquanto ele fazia o jantar. Quando terminou o processo de acomodá-la, pegou o próprio telefone na intenção de ligar para o cunhado, mas viu que estava sem sinal. Pegou o de Nia, que estava na bolsa dela, mas também estava sem sinal. Por fim, tentou usar o fixo, mas estava como os celulares. Miguel ficou chateado por não poder alardear a novidade.
— O que grávidas comem? Não tem conexão de internet para eu pesquisar. — Olhou para o celular com expressão de desapontamento. — Será que você pode usar os cosméticos que tem? Não podemos colocar o bebê em risco. Prometo levar você ao médico assim que possível.
Olhou Nia, os pêlos dos braços estavam eriçados, sinal de frio. Sem avisar, Miguel foi ao quarto e pegou um cobertor para mantê-la aquecida.
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Eu estava mais consciente. A notícia da gravidez me manteve ancorada na realidade. Primeiro foi um choque, depois percebi que Miguel faria tudo por nós e senti uma tristeza sem fim. Eu queria estar com ele. Precisava ajudá-lo.
Tentei me mover, mas não obtive sucesso, cansada das atividades do dia. Miguel me cobriu com um cobertor e começou a preparar o jantar. Animado, tagarelava sobre paternidade, bebês, fraldas e tudo que envolvia a chegada do nosso filho. Senti o coração aquecido. Miguel seria um pai tão bom quanto meu próprio pai fora para mim.
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Depois do jantar, Nico e Isac se dirigiram à antiga casa de Miguel.
Isac quase não comeu no decorrer da refeição, nervoso e preocupado. Nia, em algum lugar do país, convivia com um psicopata duas caras, e Isac não podia fazer algo que a ajudasse. Quando tentou ligar para ela, a chamada caiu direto na caixa de mensagens.
Nico refletia acerca de tudo que tinham descoberto. Muito se encaixava diante da nova luz sobre os casos. Não foi Miguel que cancelou o serviço de segurança, foi Juan. Tudo fazia sentido. Foi Juan quem matou Naila e quem se registrou na agência de empregos. O último grande mistério precisava ser resolvido. Miguel/Juan eram o assassino da rosa? Como ele lidaria com o fato de um lado de Miguel ser inocente? Como tratar alguém assim? Ele seria preso, mas era como prender um gêmeo mau no corpo de um gêmeo bom. Tudo aquilo era um grande problema, mas precisava ser resolvido antes que mais alguém morresse.
A última vítima da história foi Schukrut, que preferiu defender o mistério do filho a entregá-lo.
Quando chegaram ao sobrado, tudo estava escuro. A rua, mal iluminada e silenciosa, como se os arredores estivessem mortos. Nico sentiu um arrepio sombrio percorrer o corpo como sinal de mau agouro.
— Como entramos? — Isac perguntou enquanto encarava a porta fechada.
— Por um acaso tenho a chave. Estava na casa deles. — Nico respondeu enquanto tirava do bolso um molho de chaves. — Só preciso descobrir qual é.
Nico testou cerca de dez chaves antes de encontrar a que abria a porta da frente. Em seguida sacou o revólver do coldre e entrou no sobrado de maneira cuidadosa. Alguém podia estar ali. Isac o seguiu de perto, mas não se deu ao trabalho de sacar a própria arma.
Depois de averiguar que todo o imóvel estava vazio, começaram a minuciosa busca por pistas.
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Miguel e Nia estavam deitados de conchinha. Ele acariciava o ventre de Nia e sussurrava coisas sobre o bebê deles enquanto observavam a tempestade cair lá fora.
Jantaram, depois tomaram banho e em seguida se deitaram. Tinha sido um dia cansativo. Não demorou até que o sono chegasse e os arrastasse. Nia não teve pesadelos. E Miguel sonhou que estava embalando o próprio filho.
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— Droga! Já reviramos esse muquifo e nada! — Isac gritou. Estava cansado e tomado pela raiva, precisavam se apressar.
— Calma, ainda temos que olhar o porão. — Nico fez um gesto apaziguador.
— O último porão que olhamos só tinha uma lâmpada. — O jovem bufou.
— Vou buscar as plantas no carro.
Nico desceu apressado para buscar as plantas enquanto Isac admirava a decoração da casa. Havia livros sobre assuntos diversificados e cópias dos livros da autoria de Miguel. Uma máquina de costura estava em um dos aposentos, assim como a fantasia de príncipe que Miguel usara na festa do jornal. Parecia que aquele dia tinha sido havia um século. Não vira fotos. Elas provavelmente já tinham sido levadas para a outra casa.
Isac sacou o celular do bolso e enviou uma mensagem para Ricardo perguntando sobre o endereço de Nia. O irmão dela respondeu pedindo desculpas, pois tinham perdido o endereço e estavam tentando entrar em contato com o casal, mas só dava na caixa postal. Isac agradeceu a atenção e ficou com o coração pesado. Nada estava bem.
O detetive voltou com as plantas nos braços e as jogou sobre a mesa de centro.
— Nico, acabei de falar com o Ricardo. Eles perderam o endereço e não conseguem falar com Nia e Miguel. — Contou.
Nico coçou a nuca e olhou para o teto como se esperasse iluminação divina.
— Deus, isso só piora. — Reclamou. — Não se preocupe, podemos fazer as companhias aéreas nos passarem uma lista de passageiros nos vôos. Vai demorar mais, mas é melhor que nada.
— Sim. — A resposta de Isac foi curta.
— Agora vejamos... — Nico se ajoelhou ao lado da mesinha de centro e abriu a planta.
Isac se ajoelhou também para acompanhar a leitura.
— Estamos aqui. — Nico apontou. — De acordo com a planta, toda essa área é o porão.
— Muito grande. — Isac se surpreendeu.
— Realmente. Nesse caso, a entrada é aqui. — Nico colocou o dedo sobre as linhas que marcavam a entrada. — Faz um favor? Veja se é aqui mesmo.
Isac foi até o local indicado e bateu com o pé no piso.
— Sim, é aqui! — Gritou.
Nico largou as plantas e alcançou Isac que estava parado sobre o chão.
— Como faço para abrir essa merda? — Nico esbravejou.
— Talvez tenha uma maçaneta em algum lugar. Um mecanismo oculto. — Isac opinou.
Depois disso procuraram em todas as paredes, mas não encontraram mais que interruptores e tomadas. Frustrado e cansado, em uma demonstração de imaturidade, Nico sapateou sobre a porta do porão. Isac assistiu atônito. Depois caiu na gargalhada.
O detetive não resistiu e riu também. E quando saiu de cima do lugar, a porta se desprendeu.
Isac se aproximou e ergueu a porção de piso.
— Olha, é o mesmo mecanismo de algumas presilhas de cabelo, das antigas. — Isac apontou para o mecanismo de metal. — Quando você aplica a pressão certa pelo tempo certo, ela se solta. — Fez uma demonstração.
— Genial. — Nico admirou.
— Você desce primeiro, não quero lidar com os monstros. — Isac brincou.
— Tudo bem, são os riscos que vem com a profissão.
Nico pegou o revólver no coldre e começou a descer as escadas. O lugar estava escuro. Isac o seguia de perto. Um cheiro forte de madeira podre preencheu o olfato de ambos. Era sufocante e deixaria tonta qualquer pessoa que colocasse os pés ali.
Isac ligou a lanterna do celular para procurar o interruptor. Estava na parede ao lado da escada.
Quando a luz foi acesa, o coração de Nico quase parou de bater. Estupefato, não conseguia pronunciar nenhuma palavra. Isac colocou uma mão sobre a boca e entrou na estufa que fora construída no porão. Nico o seguiu com o coração aos pulos.
Era a mesma forma de estufa que Yamma desenvolvera. Dentro do lugar, dezenas de roseiras colombianas morriam abandonadas à própria sorte. Nico se aproximou e analisou uma das plantas. As rosas tinham o tamanho das colombianas originais. Alguns caules estavam cortados.
— Muito sofisticado esse esquema de cultivo. — Isac falou enquanto andava entre os canteiros. — Veja isto! — Apontou para um canto. Onde instrumentos de jardinagem repousavam abandonados. — Tudo de primeira qualidade. São importados. — Isac se agachou para observar os instrumentos. — Esses sacos... — apontou para as embalagens grandes encostadas na parede — Fertilizante e terra importados. Direto da Colômbia. Custa uma fortuna e só trazem para clientes muito especiais.
Nico pegou o telefone e discou um número. Já era tarde, mais de meia noite. Uma voz grogue atendeu a ligação.
— Delegado, preciso que venha onde estou e traga uma equipe. — Nico falou para o homem do outro lado da linha.
— Mas que diabos acontecem? — O homem perguntou com uma raiva não contida.
— Já sabemos quem é o assassino da rosa. E estamos correndo contra o tempo. Espero aqui.
Nico desligou e enviou o endereço via mensagem de texto.
— E agora? — Isac perguntou.
— Agora nós rezamos. — Nico tapou o rosto com as duas mãos e expirou profundamente.
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04:00 a.m.
Era um sonho lindo, de Miguel correndo com nosso bebê. Dormimos abraçados e agora alguém me sacudia para eu acordar. “Nia”, sua voz me chamava.
Abri os olhos, relutante, e fitei o rosto dele. Estava ajoelhado na cama e sorria.
Sorria de maneira estranha. Meu coração acelerou. Só podia ser um pesadelo.
Ele me sentou no colchão, pegou uma cadeira trazida da cozinha e posicionou perto de mim.
— Boa madrugada, my princess! Sentiu saudades? — O homem gargalhou. — Sabe, agora que você está esperando um filho nosso, resolvi fazer uma visita. Queria comprar um presente, mas a tempestade lá fora não deixa.
Era um pesadelo. Só podia ser. Como ele chegou ali? Como sabia do bebê? Onde estava Miguel? Comecei a me desesperar e a tentar me mexer, mas meus órgãos estavam pesados demais.
O homem ergueu uma seringa com uma agulha muito fina.
— Algumas drogas são muito boas para deixar as pessoas imóveis. — Riu em deboche. — Bom, por onde devo começar? Apresentando-me? Creio que sim... Então, meu nome é Juan Schukrut ou Miguel Tunísio Schukrut.
As maneiras de Juan olhar me fizeram sentir acuada. Uma presa em uma armadilha mortal.
— Você é meio burrinha, darling. Se ainda não entendeu que eu e ele somos a mesma pessoa, você não vai mais entender. — Juan pegou minha mão e deu algumas tapinhas enquanto fingia compreensão.
Eu não conseguia acreditar naquele pesadelo. Minha mente queria fugir da cena, mas eu não conseguia me mexer. Tudo que pude fazer foi rezar para minha mãe me proteger de algum lugar.
— Sei que você é um pouco lenta, então vou explicar devagar e com detalhes. E não se preocupe, hoje não faremos amor. — A última palavra saiu carregada de sarcasmo. — Do começo... Nossa mãe, Minha e de Miguel, era uma vadia. Como papai sempre disse. Ele era um jovem rico, tinha as mulheres que queria e ela foi uma delas. Como outras, ela engravidou e foi procurá-lo, mas ele disse que não queria saber de crianças. Muito compreensível, já que mamãe quis cobrar algo a que ela não tinha direito. Pobre mamãe, eu gostava dela. Acho que você será uma boa mãe, eu escolhi você.
Ele soltou minha mão e descansou os braços sobre as pernas cruzadas.
— Onde eu estava? — Colocou um dedo na testa e fechou os olhos como se fizesse esforço para se lembrar de onde tinha parado. — Papai não quis saber, ele tinha uma carreira brilhante pela frente. O famoso psiquiatra Schukrut, vindo de uma família abastada e tradicional. Então minha mãe arrumou um marido, era um homem bom, o Miguel gostava dele. Já eu... Bom, eu o achava entediante.
“Até certa idade, mamãe não tinha percebido que éramos dois em um corpo. É como se eu fosse um gêmeo sem corpo e precisasse habitar o do meu irmão. Crescemos pensando que aquele homem era nosso pai, até um dia quando mamãe contou a verdade. Miguel aceitou tranquilamente. Mas eu não! Eu queria saber quem era meu pai biológico.”
“Quando éramos criança, meu irmão não tinha controle sobre mim e nem eu sobre ele. Eu aparecia no momento que desejava. Às vezes eu deixava cartas para Miguel, pois ele esquecia tudo o que eu tinha feito. Sem problemas, eu contava minhas picardias e preenchia a memória dele onde havia lapsos. Claro que ele não ficou muito contente com os assassinatos de animaizinhos e as más criações com a mamãe. Então começou a adoecer, em silêncio, sem desabafar. O corpo minguou e eu entendi que se ele morresse, eu também morreria. Por necessidade, comecei a controlar a nossa mente. Sim, eu era uma criança prodígio!”
“Você ficaria impressionada com os milagres que a mente humana consegue operar. Aliás, você mesma fez um milagre ignorando que o homem que você ama é um psicopata. Você não viu por que não quis.”
Juan riu e deu um tapa na própria coxa. Sem aviso, saiu do quarto, e voltou minutos depois com uma garrafa de água e dois copos.
— É melhor você beber água. A sede não vai fazer bem para o bebê.
Juan serviu ambos os copos. Colocou um em minha boca e me fez beber, depois bebeu a própria água.
— Como eu dizia, comecei a manipular nossas lembranças e ele ficou feliz. Você precisava ver que criança exemplar ele era. — Juan se levantou da cadeira e deitou ao meu lado. Cruzou os braços sob a cabeça e continuou a falar. — Nossa mãe ficou meio perdida, não sabia o que pensar. Miguel era apenas uma criança, um anjo, seria impossível ele fazer aquelas travessuras macabras, como colocar uma galinha degolada sobre a cama. Foi hilário! — Juan gargalhou como se o show de horror realmente tivesse sido hilário. — Ela soube o que estava acontecendo no dia que matei meu padrasto. Ela me viu enfiar a faca no coração dele enquanto ele dormia.
“A mulher achou que eu era o Miguel, chamou por ele, mas eu expliquei que não era ele. Devastada, ela entrou em contato com meu pai, que já era muito renomado, e pediu ajuda. Papai sumiu com o cadáver do nosso padrasto e quis me levar com ele, mas minha mãe não deixou. Não por livre e espontânea vontade. Porém ele explicou o que acontecia, e ela cedeu.”
“Foi quando me mudei para esta cidade. Miguel sabia apenas metade da verdade. Papai optava por deixar ele protegido porque era mais socialmente aceitável. Enquanto isso, eu e meu dad estreitamos os laços. Fui o único bastardo que ele assumiu.”
“Nossa vida foi mais ou menos normal. Comecei a aparecer nas madrugadas para ajudar nosso pai em seus experimentos e assim seguimos felizes para sempre... Até que um dia conheci você.”
Ele se virou de lado, pegou minha mão e começou a beijar os nós dos dedos. Sua expressão estava séria, os olhos tinham um brilho perigoso, muito pior que a expressão sádica de antes. Foi quando senti mais medo, mais do que tinha sentido até então.
— Minha maior obsessão. Miguel não gostava de festas, mas eu gostava. Eu estava naquela festa e vi esse raro par de olhos. Turquesa, que cor ímpar. — Juan acariciou meu rosto com o indicador. — Eu não era tão atraente quanto sou agora. E você me rejeitou. Eu quis você, me ofereci, mas você me rejeitou e maldito seja aquele Isac por atrapalhar.
Era ele, o homem que me estuprou era ele, as lágrimas escorreram fora do meu controle. Eu queria poder reagir, bater naquele maldito que destruiu uma parte da minha vida, mas não conseguia.
Juan se levantou e andou até a janela. Depois de um longo momento contemplando a tempestade que caía, continuou a história.
— Fui embora correndo, mas não esqueci você. Eu precisava ter você. Contei sobre você para nosso pai e ele ficou preocupado. Então fez uma pequena cirurgia plástica em mim. Mudou meu nariz principalmente. O trabalho mais difícil foi implantar memórias falsas em Miguel. Fazê-lo acreditar que tinha mudado durante a adolescência. — Juan voltou a se sentar na cadeira, ainda sério. — Procurei você depois, mas não encontrei. Até o dia que vi seu nome em um jornal. “Petúnia”, um abençoado nome diferente. Desde então eu segui você. Descobri tudo o que fazia. Onde morava; locais que freqüentava; até mesmo suas ambições, consegui descobrir. Pelo menos três vezes estive com você no bar. Você não me percebeu. Uma péssima jornalista.
“Ouvi você comentar com seu amigo que queria um grande caso. Então tive uma idéia e meu pai ajudou. Você não me amaria, mas amaria Miguel. De certa maneira, se você o amasse também me amaria. Aprendi a cultivar rosas lindas com o melhor na área, o senhor Yamma.”
“Ah, você está chorando muito, melhor eu esperar que se acalme.”
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