O fim da fantasia
Um cadáver em um congelador era a gota d'água, principalmente o de uma pessoa tão querida. Eu era cliente dele, sabia que dificilmente ele teria inimigos, pois era homem adorável.
Meus alvos daquela noite em momento nenhum agiram de maneira estranha, pelo menos não muito estranha. Ficou óbvio que havia uma competição profissional ali, e era claro como o dia que algo estava errado já que a jornalista ganhou primeiro lugar em melhores matérias e segundo em melhores profissionais. Sim, qualidade não era quantidade, mas ela escrevia bem.
No decorrer do baile pude ver o movimento dos garçons. Em determinada altura todos estavam desesperados com o péssimo humor do chef que não conseguia encontrar a chave do freezer. Observei tudo bem quieto e com muita atenção. Alguém arranjou um pé de cabra. Depois disso não levou mais que um minuto antes do ribombar de um estrondo alto, o que indicava que obtiveram sucesso na empreitada de arrombar o cadeado.
O grito que se seguiu ao estrondo poderia ser ouvido de toda a cidade. Os garçons iniciaram um atropelo enquanto corriam para fora da cozinha. Um homem alto e forte conhecido como João Tora saiu carregando uma garçonete nos braços, e, vendo que não passaria pelo espaço, foi obrigado a chutar o biombo.
A essa altura eu já tinha me levantado e ia em direção a porta, mas Nia chegou antes no chef que gaguejava coisas ininteligíveis. Nitidamente assustada enquanto escrutinava o rosto rechonchudo e retorcido do homenzinho, que era uma careta de desespero.
Quando finalmente o alcancei, nele me detive, lhe dei algumas orientações e tentei entender o ocorrido. Foi uma péssima idéia já que Nia se aproveitou para sair correndo e entrar na cozinha.
Um pouco depois me livrei do chef e a segui.
Entrei na cozinha e a vi parada perto do congelador, completamente imóvel. Não era um lugar onde ela deveria estar, já que ali era a cena de um crime, me toquei disso quando olhei para o freezer e vi o cadáver dentro. Era horrível. Meu estômago se retorceu e deu um nó. Senti ânsia de vômito mas me contive.
Agarrei os braços da senhorita que estava estacada e não sairia dali mesmo que quisesse. Posteriormente a conduzi até a porta. A mulher estava em choque, mal respirava. Quando a deixei fora da cozinha, tratei de colocar um par de luvas de látex, que estavam guardadas no meu bolso. Sempre carregava um quando estava no trabalho, duvidei que nessa noite fosse necessário, mas foi. Desliguei todos os fornos e as chamas dos fogões, e quando tudo parecia seguro, liguei para o delegado.
— A situação está piorando. Um cadáver no freezer e um salão cheio de pessoas, preciso de ajuda para pegar o depoimento deles e também de uma equipe da perícia para retirar o corpo. — Falei, e sem ouvir a resposta, desliguei a ligação.
Já era tarde, um milagre que ele tivesse atendido ao telefone. O delegado era um homem solitário que bebia para sanar o vazio de sua alma. Quase todas as noites podia ser visto em algum bar da zona de baixo meretrício que havia na cidade. Sem filhos, sem esposa, sem família que morasse perto.
Eu não podia ignorar o fato de ele ter agido com incompetência. Quando o primeiro corpo apareceu, instintivamente eu sabia que algo muito ruim estava prestes a começar. O rosto do homem fora esmagado com algo pesado e o sangue ainda estava fresco, com todos os documentos no bolso da calça e uma rosa escondida. Por ironia do destino eu sabia de quem se tratava. O segundo caso foi um rapaz no cinema. Aquele maldito cinema sem câmeras de segurança nas salas, mas havia os depoimentos dos funcionários que diziam não ter visto pessoa alguma entrando ou saindo. Sendo assim me restou apenas uma hipótese, e era a de que o assassino estava entre eles, colocou o corpo lá antes de a fila ser autorizada a entrar na sala.
No salão de bailes do prédio pertencente ao Jornal da Hora também não havia câmeras de segurança e isso me deixava muito irritado. Quando os reforços chegaram, eu já tinha analisado cada parte do cômodo e coletado qualquer coisa que fosse minimamente considerada uma pista.
Em seus depoimentos todos os garçons disseram praticamente a mesma coisa. Que estavam todos ali, o pé de cabra era de João Tora que o emprestou para o chef. O cozinheiro irritado arrombou o cadeado o mais rápido possível e ficou em choque quando viu o conteúdo do congelador. Curiosas, as pessoas se aproximaram e quando a compreensão veio, todos correram.
Os convidados que estavam no salão não tinham muito a acrescentar.
Com o olhar varri o local e pude ver, do outro lado, o quarteto se transformar em trio. Nia chorava enquanto Miguel passava a mão em seus cabelos. O coque bonito desfeito e a maquiagem era apenas um borrão negro no rosto. Isac sentara no chão e eu não conseguia ver seu rosto, mas eu sabia que ele estava em prantos.
Precisava avisar Nia e Miguel de que seriam considerados suspeitos no caso. Alguma ligação tinha entre os assassinatos e eles. Não era mais uma questão de azar. Eu colocaria dois policiais para segui-los. Aproveitei para me aproximar de Miguel e Nia quando Sebastião chamou Isac para dar seu depoimento.
— Vocês agora são oficialmente suspeitos de homicídio. — Informei. — Não podem deixar o país, e dada a gravidade dos casos, não podem deixar sequer a cidade. Aconselho que contratem advogados e reforcem sua segurança.
— Isso é ridículo, só estávamos no lugar errado, na hora errada. — Miguel respondeu.
Três vezes no lugar errado e na hora errada? Era muita coincidência.
— Você talvez, mas a tragédia claramente persegue essa moça. — Com o queixo apontei para Nia.
— Eu não tenho culpa, não faz sentido para mim. Sempre fui ao bar na sexta, com exceção de sexta passada e ontem. O cinema foi algo corriqueiro e essa festa é do meu trabalho, porque apenas eu sou suspeita? — Ela se defendeu com voz fraca e expressão cansada.
Neste exato momento recebi um telefonema. Atendi e ouvi o que foi dito do outro lado da linha. Não consegui acreditar, mas Eliane morreu.
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Pedi que Sebastião aguardasse um minuto enquanto atendia a ligação de Evelin.
— Onde você está?! — Uma voz aflita me questionou quase aos gritos.
— No salão de bailes do jornal. — Respondi.
— Você já sabe? — Perguntou.
— Sabe o quê? — Questionei atordoado.
— Lia, o carro dela foi atropelado por um caminhão. — A voz esganiçada se transformou em um choro intenso.
— Eu sinto muito. — Tentei consolar, completamente impotente.
Culpado. Senti-me absolutamente culpado. Se não fosse por ela ter ido àquela maldita festa aquilo não teria acontecido. Meu dever era acompanhá-la até em casa, nada teria acontecido se eu não fosse um idiota e não ficasse o tempo todo adorando Nia. Minha amiga estava mais que bem arranjada e eu precisava aceitar isso. Precisava mesmo.
Uma dor aguda perfurou meu coração como uma flecha xavante. A compreensão bateu em minha face como um lutador de boxe sedento de sangue. Duas pessoas adoráveis morreram e eu era responsável em um dos casos. Queria que alguém atirasse em mim, que puxasse meus cabelos até arrancar cada um dos fios, que me atirasse ao chão e chutasse meu abdome até que eu vomitasse sangue.
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Senti-me confusa quando vi o detetive franzir o cenho enquanto ouvia o que alguém falava do outro lado da linha. Uma mão na cintura enquanto a outra segurava o celular na lateral da cabeça. Fiquei ainda mais confusa quando vi Isac desmaiar do outro lado do salão. Aprumei o corpo e corri até ele sem me preocupar com as duas mesas que derrubei pelo caminho. Próximo ao corpo, estendido no chão, vi o celular com uma chamada ainda em andamento. Peguei o aparelho e li “Evelin” na tela. Seria aquela mesma Evelin de tempos atrás? Com um pouco de receio por invadir o espaço pessoal de Isac falei com a mulher.
— Evelin. — Chamei.
— Nia, é você? — A voz de Evelin estava trêmula e esganiçada.
— Sim, Evelin. Desculpa-me, mas Isac desmaiou e eu vi a chamada... — Não consegui concluir a frase.
— A moça que estava com ele sofreu um acidente e morreu. — Evelin esfregou a notícia no meu rosto sem piedade.
— Lia? — Perguntei enquanto uma lágrima descia pela minha bochecha.
— Sim. — Ela chorou mais.
Existem momentos na vida nos quais sentimos que nossa mente é uma parede de vidro e determinados acontecimentos são pedras enormes arremessadas nessa parede sem nenhum cuidado. Naquele momento todo meu ser era uma parede de vidro muito frágil e um meteoro caiu nesse vidro. Nada no mundo me faria imaginar um final tão trágico para aquela noite quanto duas pessoas mortas.
— Preciso ir. Quando Isac acordar ele liga. — Me despedi e desliguei.
Eu queria sentar em um canto e chorar muito mais do que já tinha chorado até o presente momento, mas não poderia, um dia eu havia prometido a mim mesma ser uma mulher forte e influente, isso não incluía fazer o que eu já tinha feito em demasia nas últimas horas, ou seja, chorar, me mostrar frágil e sentimental.
Engoli meu choro e estapeei o rosto de Isac chamando seu nome. Não foi uma estratégia inteligente. Vi que não porque seu rosto ficou com marcas da minha mão. Então Miguel chegou e colocou um lenço ensopado de perfume no nariz de Isac. Aquilo acordaria até um defunto, o cheiro era horrível.
— Sebastião, o policial, me emprestou o perfume dele. — Miguel sussurrou de modo que apenas eu escutasse.
— Quanta gentileza. — Ironizei.
Miguel riu e Isac acordou assustado.
— Credo, que cheiro horrível! — Gritou de modo que seria possível escutar do Japão.
— Claro que você ficou assustado pelo cheiro do Álcool concentrado em seu nariz, mas ESSE PERFUME DO SEBASTIÃO é bom. — Falei em um tom bem alto para que todos ouvissem e de uma maneira que servisse de alerta para Isac.
Não era um bom momento para magoar um dos policiais.
— Senhorita. — Nico apareceu acima de mim, naturalmente eu estava ajoelhada. — Você não pode publicar mais nenhuma linha acerca das ações do assassino, vai atrapalhar nossas investigações se o fizer.
Olhei feio para ele e funguei. Lá se foi pelo ralo meu sucesso profissional. Nico fixou os olhos sobre mim até que afirmei com a cabeça que tinha entendido, mas não publicar sobre o assassino não queria dizer que não publicaria sobre Lia. Ela merecia uma homenagem, de preferência contando detalhadamente sobre sua última noite viva.
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Acordei com o rosto dolorido e três pessoas a me cercar. Nia se encontrava mais próxima de minha cabeça, ajoelhada ao meu lado. Miguel também estava ajoelhado, porém um pouco mais distante. Nico estava de pé e atrás de Nia. Céus, como aquele perfume catingava! Já estava quase desmaiando outra vez.
Levantei-me e me recompus. Nia se levantou também. Seria cômico se não fosse trágico, todos ali vestidos com fantasias e vivendo um drama terrível.
— Falei para Evelin que você ligaria depois. — Nia estendeu o celular em minha direção.
Maldição! Desmaiei e deixei Evelin falando sozinha, eu era um idiota.
— Obrigado. — Respondi, já adivinhando o que viria a seguir.
— De quais profundezas Evelin reapareceu?
Eu sabia que ela perguntaria isso!
— Liguei para ela... s-ser minha acompanhante, sabe... — Gaguejei um pouco enquanto pensava a melhor forma de explicar.
— Sei, mas ela está casada. — Nia comentou como se fosse algo trivial.
Como ela sabia?
— Como você sabe? — Estreitei os olhos.
— Ela enviou um convite. — Deu de ombros.
Então minha ex paquera enviou um convite de seu casamento para sua ex rival e não para mim, e pior, Nia não falou uma palavra que fosse sobre isso. Duas traidoras, isso que elas eram.
— Não se sinta mal, acho que ela desistiria do casamento se te visse entre os convidados. — Nia tentou me confortar.
Uma mulher já me amara tanto que minha simples presença em seu casamento faria com que fosse destruído. Isso era absurdo, um exagero de Petúnia, mas pensando bem fazia todo o sentido. Nia, a mulher de todos os meus sonhos. Evelin, a mulher cujos pesadelos devo ter frequentado.
— Você sabia o quanto ela gostava de mim? — Perguntei incrédulo.
— Todos sabiam, ela não fazia segredo disso, mas você é sempre tão discreto e fechado que os sentimentos dela não alcançaram seu coração — Nia suspirou —, eu até ajudei dizendo tudo que você gostava, mas sempre que ela queria te agradar você se fazia de louco e mudava os gostos.
Ela tentou ajudar outra a ter meu amor, ouvir isso foi o mesmo que levar um tiro.
— É melhor irmos para casa. — A proposta veio de Miguel.
— Concordo. — Respondi louco para finalizar naquele assunto.
Despedimos-nos das pessoas de uma forma capenga e nos dirigimos ao elevador. Era uma situação estranha e incômoda. Miguel limpou a garganta e olhou para o teto.
— Você vai de quê pra casa? — Nia quebrou o silêncio.
— Bicicleta. Você irá em seu carro?
— Não, na verdade irei no de Miguel. — Ela olhou para suas sapatilhas.
— Posso levar você em sua casa. — O Mister Perfeição propôs.
— Não, obrigado, preciso levar a bicicleta, essa região é perigosa. — Respondi.
Eu poderia deixar a bicicleta, mas meu orgulho não me permitia andar na carruagemóvel.
— Não tem problema, tem como colocar ela em cima. Tenho algumas cordas no porta malas. — Ofereceu solícito.
O Senhor Perfeição tinha cordas no porta malas. Será que ele tinha uma frigideira no bolso? Resisti ao impulso de perguntar.
— Não quero incomodar. — Olhei para o espelho e me recostei na parede lateral.
— Bobagem! Não atrapalha, você mesmo disse que é uma região perigosa. — Eu e minha maldita boca! — Não tente recusar. — Nia era terrivelmente linda quando pedia algo com sinceridade. — Por favor. Não quero que você seja o próximo.
— Isso aí, camarada. Não atrapalha. — Príncipe Miguel apoiou a fala de Princesa Nia.
— Tudo bem. — Respondi a contragosto.
O elevador finalmente chegou ao hall de entrada. À vezes parecia que deus era uma criança manipulando o tempo para prolongar situações constrangedoras. Atravessamos o local ouvindo o ecoar do som de nossos passos. Estava completamente vazio. Será que estava assim quando Lia desceu?
Fomos ao estacionamento lateral onde destranquei o cadeado da bicicleta e ajudei São Miguel a colocá-la sobre o carro. Nia já estava no banco traseiro quando terminamos.
— Você devia ir na frente. — Seria constrangedor ir ao lado de Arcanjo Miguel.
— Estou bem aqui. — Ela se recusou.
Não tive alternativa.
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