Merda!
O dia seguinte amanheceu chuvoso. Não era uma chuva torrencial, do tipo que arrasa tudo pelo caminho. Era uma chuva leve, que vem para molhar os jardins e presentear o olfato das pessoas com o agradável cheiro de terra molhada.
Nico insistiu que eu dormisse em seu apartamento, o argumento era que seria mais fácil caso tivéssemos algum tipo de emergência durante a madrugada. De certa forma era verdade, mas tinha mais relação com o fato de ele precisar desenvolver as teorias sobre o assassino e não ter mais alguém em quem confiar. Aceitei a oferta, não por acreditar que seria indispensável, mas por saber que ainda não estava pronto para ficar sozinho em minha casa.
Observei à fumaça que saía do café dançar enquanto subia, morrendo no vidro da janela, molhado pelos respingos. Mesmo que tivesse dormido pouco, dormira bem. A casa de Nico era confortável.
Enquanto inspirava o aroma do café, me lembrei que poucos dias antes estive no mesmo apartamento, mas em circunstâncias muito mais assustadoras. A sensação era de que tudo tinha acontecido Eras antes.
— Bom dia. — A voz de Nico soou atrás de mim.
Virei-me e fiz um aceno com a cabeça. A mesa já estava posta para o café da manhã. Faltava apenas terminar de coar o café.
Nico já estava arrumado para sair, assim como eu, que tinha pego algumas de minhas roupas novas em minha casa. Mais cedo, enquanto me vestia, analisei minha figura no espelho. Tinha comprado as roupas para agradar Nia e chamar sua atenção, mas a verdade é que percebi como elas ficavam bem em mim e me senti feliz pelo investimento. Tinha escolhido jaqueta preta de couro, jeans escuros e uma camiseta branca, mais pelo conforto que pelo estilo, mas qualquer pessoa concordaria que estava bem arrumado. Nico usava jaqueta jeans, camiseta preta, jeans claro e coturno. Não que fizesse muita diferença. Ele poderia estar de vestido e seria praticamente a mesma coisa.
— Aonde iremos? — Perguntei enquanto pousava a garrafa térmica sobre a mesa antes de me sentar e observar Nico passar requeijão em um pão.
— Loja de materiais de construção. — Respondeu me lançando um rápido olhar antes de se servir do café.
— Vamos construir o quê? — Realmente não tinha idéia do que faríamos em uma loja do tipo. Nico me olhou de uma maneira que me fez acreditar que ele cravaria a faca da manteiga no meu tórax.
— Vamos fazer algumas perguntas sobre clientes especiais que precisavam de um muro. — Respondeu antes de morder o pão.
Então entendi qual era seu objetivo. Rastrear os motivos de Nia e Miguel construírem o muro com tamanha pressa.
— Como você sabe em qual loja deve ir? — Perguntei enquanto cortava um pedaço de bolo de milho.
— Apenas uma das lojas é também uma empreiteira. Pelo preço certo eles constroem na velocidade da luz.
Nico era genial, mas teríamos respostas significavas?
♠♠♠♠
Outra madrugada insone na qual Nia e meu sogro choraram sem medidas. Seria impossível dormir, mesmo que Morfeus em pessoa se deitasse na cama e nos embalasse. De certa forma eu me sentia aliviado por ter a oportunidade de tirá-la dali. Talvez ela conseguisse dormir em nossa nova casa.
Nove horas da manhã Nia acordou de um sono muito curto. Virou-se na cama e ficou deitada de lado, de modo que eu pudesse ver seus olhos desfocados.
Acariciei seu quadril com a ponta dos dedos e tentei sorrir de uma maneira tranquilizadora. Mesmo que parecesse um idiota e que ela nem ligasse, aquilo era importante. Talvez ela tivesse consciência dos acontecimentos em seu entorno e só não conseguisse falar.
— Bom dia. — Sorri enquanto ajeitava uma mecha de cabelo detrás de sua orelha. — Dormiu pouco. Está ansiosa? Nos mudamos hoje. Vamos ficar em um hotel até que a casa esteja pronta.
Nia não respondeu, na verdade eu não tinha esperanças de que ela respondesse, não com a fala, talvez fizesse um aceno ou desse um sorriso. Um piscar de olhos que fosse diferente já seria o suficiente.
— Hoje amanheceu chovendo. Você quer ver a chuva? — Perguntei enquanto me levantava.
Peguei uma cadeira e coloquei em frente à veneziana. Abri todas as folhas da janela e o ar fresco entrou no quarto. Andei até a cama, peguei Nia no colo e carreguei até a cadeira onde a sentei para que ela assistisse a chuva cair. Depois peguei um cobertor e enrolei a sua volta, garantindo que ela não se resfriaria.
— Vou aprontar o café da manhã. — Pousei um beijo em sua testa. — Já volto. Depois do café vamos arrumar as malas. Precisarei ir casa e pegar algumas roupas, você fica aqui com o Ricardo e quando voltar arrumo você. — Expliquei.
Depois desci pra fazer o café da manhã.
♠♠♠♠
Era uma loja grande que fazia jus à fortuna do dono. Não era a primeira vez que eu pisava no local, sempre impressionava ver o movimento de clientes, funcionários, e a quantidade de mercadorias.
Isac analisava tudo de maneira atenta e postura falsamente relaxada.
Um dos vendedores se aproximou e ofereceu atendimento.
— Sou o detetive Nico e esse é meu ajudante. — Apontei com o polegar na direção de Isac que analisava uma amostra de piso. — Desejo falar com o gerente.
A expressão do rapaz foi de surpresa, talvez não recebessem detetives com muita frequência. Ou, podia ser o caso de fraude no pagamento de impostos. Os funcionários sempre sabem os esquemas dos patrões, mesmo que seja através de fofocas.
— Pois sim, me siga.
O rapaz andou na direção dos fundos da loja e o segui com Isac logo atrás. Era realmente impressionante o tamanho da loja. O vendedor explicou a uma secretária peituda e oxigenada com voz de dobradiça enferrujada o que desejávamos ali, depois partiu para atender alguém.
— O senhor marcou hora? — Perguntou enquanto nos analisava com desdém.
Seria mentira se eu dissesse que não senti vontade de enforcar aquela criatura.
— Não marquei, mas é bom a senhora arrumar um tempinho dele para nós. — Ameacei e mostrei meu distintivo enquanto ela assumia uma expressão séria de pessoa ofendida. Era risível e extremamente irritante.
— Sou senhorita, e creio que ele não vá atender.
— A senhora não precisa se esforçar mais. — Falei enquanto andava em direção à porta.
Quando a abri, a mulher já estava de pé para me impedir de entrar, mas Isac lhe lançou um olhar feroz e ela ficou congelada no lugar.
— Bom dia. — Falei enquanto entrava sem ser anunciado.
Surpreendi o homem em uma situação comprometedora. Aquela pessoa despida sobre a mesa com certeza não era sua esposa.
— O que vocês querem! — O homem esbravejou enquanto eu puxava uma cadeira para me sentar.
— Algumas respostas, apenas isto. — Expliquei enquanto calmamente me recostava na cadeira. Olhei para Isac que, atônito, analisava a situação.
— Vá embora Cleide. — O homem furioso empurrou a funcionária que ainda lutava com a saia do uniforme.
— Vou ser direto. Quero saber se alguém viu este casal por aqui. — Tirei uma foto do bolso do casaco e mostrei para o homem que arrumava o cinto.
— Tenho milhares de clientes, como vou saber? — Resmungou.
— Alguém deve se lembrar. A moça tem olhos cor turquesa. — Falei de maneira casual enquanto Isac andava pelo escritório analisando os detalhes.
— Isso não é possível. — Ele parou na minha frente e cruzou os braços sobre o peito. Baixinho, gordo e careca. Era um clichê de chefe escroto. Por um instante desejei que fosse um CEO malhado e com cabelo, mas a vida real não funciona como romances.
— É muito possível. — Disse Isac que parou atrás do homem e adotou uma postura intimidadora. — Use o circuito de auto falantes e chame os vendedores.
— Não posso, vou perder vendas. — O gerente se virou para encarar Isac e quase bateu o rosto em seu tórax.
— Vai fazer por bem ou por mal. — Expliquei enquanto me levantava.
Uma ameaça não é e nunca foi a melhor maneira de um homem da lei operar, mas às vezes surte efeito rápido.
O homem, visivelmente incomodado, ordenou que a secretária pedisse para chamar todos os vendedores na sala de descanso.
Pouco tempo depois entramos em uma sala lotada de pessoas curiosas. Estava quente e desconfortável porque o teto era baixo e não havia espaço para boa circulação do ar. A secretária oxigenada nos apresentou, ouvimos alguns suspiros quando moças desavisadas pousaram os olhos sobre Isac, que fingiu nem estar presente, para o desgosto delas.
— Vamos ser rápidos aqui. — Fiz minha voz soar mais grave que o normal. — Quero saber quem atendeu essas pessoas.
Peguei a fotografia que estava no bolso, era do dia do casamento de Nia e Miguel. Isac entregou para um funcionário na ponta de uma fileira que passou para o que estava do seu lado, e assim sucessivamente. Era possível sentir a ansiedade de quem ficara por último.
Algumas pessoas se demoravam na análise, outras mal colocavam os olhos sobre a foto. Senti vontade de gritar tamanha a alegria quando um homem na penúltima fileira identificou os clientes.
— Todos os demais estão dispensados. — Falei para os funcionários que trocavam olhares ainda mais curiosos do que quando chegamos.
Não demorou mais que um minuto para que todos saíssem. Apenas o vendedor e a secretária ficaram na sala. Lancei um olhar na esperança de que ela entendesse o quanto não era bem vinda ali, mas foi preciso que Isac a conduzisse para fora e segurasse a porta.
Limpei a garganta enquanto o homem me avaliava, ainda sentado em sua cadeira.
— Bom, agora que estamos sós, gostaria de saber que o senhor atendeu essas pessoas. — O homem se levantou e caminhou em minha direção para entregar a foto. Peguei o celular e coloquei para gravar a conversa.
— Sim, atendi. E o gerente também. — Explicou, demonstrando seu nervosismo através de sinais claros.
— O gerente também? — Perguntei incrédulo.
— Sim, vou explicar. — O homem respondeu.
— Primeiro diga seu nome. — Pedi.
— Kléber com “k”. Meu nome é Kléber. — Começou. — Lembro deles porque minha comissão naquele dia foi muito acima no normal, e porque a moça tem olhos cor turquesa como o mar do Caribe. Uma cor muito rara.
— E o que eles queriam? — Indaguei.
— Construir um muro. Bem rápido por sinal, por isso pagaram quase o triplo do valor. — O homem olhou para as pontas dos sapatos sociais que usava combinando com a calça.
— Você achou suspeito?
— Não é meu trabalho achar suspeito ou não. — Retorquiu.
— Não perguntei se é ou não seu trabalho. — Ele estava com medo, sinal de que eu encontrara o caminho certo. — Responda, achou aquilo suspeito?
— Bom, tenho medo de ser demitido, sabe... — Estava vacilante.
— Você não vai. O gerente tem um caso com a funcionária chamada Cleide. É uma informação privilegiada que você pode usar a seu favor. — Eu não devia estimular um funcionário a chantagear o patrão, mas eu tinha carta branca para agir e um tempo muito curto antes de ser demitido.
Ele ainda pensou um tempo para responder.
— Sim, achei muito suspeito. — Suspirou enquanto olhava para o teto como se isso clareasse suas memórias. — Principalmente por a moça estar roxa e inchada.
— Roxa? — Fiquei surpreso, aquilo era mais do que eu imaginava que conseguiria.
— Sim, como se tivesse sido espancada. E ela estava com roupas compridas. — Respondeu.
— Como você sabe que ela tinha com hematomas? — Inquiri.
— O rosto dela estava marcado e as mãos também.
— Interessante. — Falei. — E você acha que o gerente fingiu não conhecê-los por qual motivo?
— Porque ele ignorou o pedido de outros clientes e passou o deles na frente.
— Isso é tudo? — Minha vontade era acertar um soco na face do gerente mentiroso que tinha me feito perder tempo, mas ainda assim me mantive controlado.
— Não, não conta para ninguém, mas um amigo disse que eles fizeram um pedido em uma empresa de vigilância. Queriam instalações de câmeras. — A voz do vendedor era quase inaudível. — Isso é informação particular e não pode ser divulgada.
— Qual empresa? — Perguntei muito interessado nas informações.
— Vou anotar o endereço em um papel.
O homem arrancou um cartão do bolso, anotou o endereço e o nome da empresa. Era famosa e eu sabia exatamente onde ficava.
— Obrigado, Kléber. — Estendi a mão para um cumprimento de despedida. — Foi de grande ajuda.
Isac e eu saímos de lá alguns minutos depois.
Não me fugiu o fato de que Lianmar foi para a casa de Nia um pouco depois de seu retorno, o que significava que ela tinha visto a filha com hematomas.
Por que não avisou da situação?
Quando estávamos no carro, meu celular tocou. Encontrava-me muito impaciente e não era o melhor momento para atender uma ligação, mas ignorar o delegado era pedir sermão. Sendo assim, não tive escolha.
— Alô. — Falei enquanto continha a raiva.
— Detetive, péssimas notícias.
Tinha como piorar?
Inspirei o ar com força e me preparei para o que viesse.
— Fala.
— Schukrut se enforcou com o lençol. — Disparou a notícia como se fosse uma bomba.
Nem me dei ao trabalho de me despedir. Apenas desliguei a ligação e bati com a cabeça no volante.
— O que aconteceu? — Isac perguntou enquanto me olhava surpreso pela reação que tive.
— Schukrut está morto. — Informei.
— Merda!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro