Julgamento
Estava em um manequim na vitrine. Era a coisa mais ridícula que eu compraria em toda a minha vida, mas talvez funcionasse.
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Sentado junto às demais testemunhas de acusação, Isac observava o burburinho da sala do tribunal.
Estava em um local suspenso, quase como um camarote. A estrutura era antiga, mas foi reformada em algum momento. Havia um grande vidro na parede com grades de ferro do lado de fora, tão grossas que precisaria ser sobre humano para sair por ali e não teve dúvidas de que o vidro era blindado, cuidado nunca é demais. A vantagem é que poderia ouvir tudo que aconteceria durante o julgamento.
Uma horda de jornalistas e fotógrafos se espremia nos últimos bancos, tentando registrar cada detalhe do julgamento. Havia muitos deles ali na porta também, mas quatro policiais muito parrudos mantinham a segurança do local.
Isac suspirou e admirou as mãos algemadas. Só se sabe o preço da liberdade quando ela é tirada de você. Gostaria de ficar sentado na mesa junto aos demais, mas não conseguia. Puxou a cadeira para perto do vidro. Os sons frenéticos do tribunal podiam ser ouvidos com clareza. Uma mão pousou sobre o ombro do jovem. Ele conferiu rapidamente quem era o dono dela, seu advogado, um homem tão compenetrado que chegava a dar medo.
— Não se preocupe, aqui é praticamente minha casa. — O homem puxou uma cadeira para o lado de Isac. — Preste atenção, Isac. O dia de hoje é crucial para que eu consiga sua liberdade, não pise em falso. — Falou tão baixo que era quase um sussurro.
Pareceu uma ameaça, mas não era. Ele era bom no que fazia e estava seguro de si. O burburinho cessou por um instante, o que deixou Isac atento.
As pessoas estavam tomando seus postos. Todo o público parecia ter prendido a respiração. O olhar de Isac passeou sobre a cabeça deles e ele descobriu um casal familiar. Analisou os assentos próximos, talvez Nia estivesse lá, mas não estava.
Um urro de excitação e vaias interrompeu seus pensamentos. Schukrut estava lá, e descaradamente jurou falar a verdade.
Isac sentiu um nó no estômago. Sua cabeça latejava com o sangue correndo rápido pelos ouvidos. A vontade era descer até aquela sala e espancar o homem até a morte.
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— Miguel? — Nia ouviu a porta ser fechada com um baque alto. — É você?
Seu coração acelerou. Sentiu muito medo de estar sozinha, mesmo agora a casa estivesse murada. Analisou o quarto em busca de algo que machucasse uma pessoa e desse uma dor que durasse tempo suficiente para ela fugir. Levantou-se da cama para alcançar um guarda chuva que estava do outro lado do quarto. Seus olhos passaram rapidamente pelo reflexo no espelho, ela estava descabelada, os olhos vermelhos e inchados, as roupas amarrotadas. Uma aparência horrível, mas ela realmente não se importava.
Outro barulho de porta, mais próximo.
— Miguel? — Perguntou em vão.
Pegou o guarda chuva, encostado na parede, calçou os chinelos que estavam ao lado da cama, abriu a porta do quarto vagarosamente e saiu para o corredor.
Andou da forma mais silenciosa que conseguiu, empunhando o objeto como se fosse uma espada. Testou o quarto que a mãe ocupava, estava vazio. Devagar andou até o outro quarto que literalmente estava vazio, nem mesmo uma sombra estava lá, a não ser a da lembrança da noite que fora violentada em sua própria casa. Sentiu uma dor no peito. A lembrança a teria feito chorar se suas lágrimas não tivessem secado.
Devagar se dirigiu para a sala e depois para a cozinha. Nada acontecia lá. Ninguém estava ali. Seria impressão dela?
Não.
De repente pensou no único cômodo que não tinha olhado. O banheiro. Como se tivesse ouvido seus pensamentos, a porta se abriu. Com toda a coragem que tinha em si, Nia foi em direção ao banheiro. Cautelosa. Quando virou o corredor se deparou com algo grande, rosa e macio, sem pensar, em um desespero cego, usou o guarda chuva para bater na coisa. Olhos fechados com força, um forte zumbido no ouvido.
Continuou até que a coisa oferecesse resistência e segurasse o objeto que a agredia. Desesperada abriu os olhos que focaram em uma boca familiar. Os lábios se mexiam formando palavras.
— Nia!
Ela então compreendeu. Era seu nome. A pessoa estava chamando seu nome. Tomada pelo medo, soltou a arma improvisada e se afastou. Fez um esforço para entender o que acontecia.
Respirou fundo e olhou mais uma vez para a criatura rosa que agora estava parada no corredor. Os pés macios e rosa como um urso de pelúcia com uma imitação de cascos de plástico brilhante com glitter. As pernas longas e macias. Um trecho de rabo da cor de um arco íris. As mãos cobertas com o mesmo tecido. E o rosto...
Ela colocou a mão na boca para abafar uma gargalhada histérica. Olhos negros assistiram sua reação. Ela entendeu o que era a coisa quando viu a cabeça de Miguel encimada por um chifre colorido. Ele estava fantasiado de unicórnio.
Não conseguia parar de rir da cena e ele assistia perplexo. Quando comprou aquela ridícula fantasia, pensou que poderia ajudar a melhorar o humor dela, mas nunca previu que ela cairia em um ataque de riso.
— Você está ridículo. — Disse, ainda gargalhando.
— E você nem viu a varinha de condão. — Ele largou o guarda chuva e enfiou a mão em um bolso secreto para tirar uma varinha de plástico. A ponta tinha formato de coração e quando ele apertou um botão no fundo, ela começou a lançar luzes coloridas e piscantes por todo o corredor. — Estou me sentindo particularmente mágico.
Nia gargalhou.
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Isac estava apreensivo. Sentado naquele lugar sob os olhares dos chacais da imprensa. Procurou algum conforto em presenças próximas, mas encontrou apenas Lianmar e Adamastor. A apreensão palpável.
À sua frente estava Schukrut, não conseguia olhar para o homem sem que a vontade de esganá-lo fizesse as mãos formigarem. E pensou que teria conseguido matá-lo se Nico não tivesse interrompido. Ainda não sabia se deveria agradecer ou amaldiçoar o detetive.
Ao sinal, começou a contar tudo que tinha vivido e visto naquela clínica horrível. As lembranças mexeram com seus sentimentos. Todo o sofrimento e a quase morte, se não fosse por Djéfani... O anjo da sua vida agora estava morto.
O ódio fez com que Isac paralisasse a fala, mas alguém o estimulou a prosseguir. Excluiu a parte da cobertura de Nico, mentiu que tinha dormido debaixo de uma ponte, ninguém seria capaz de provar o contrário. Um homem frio e implacável o pressionou com perguntas, em busca de algo que fizesse inválido seu testemunho, mas não conseguiu.
Schukrut nem se moveu na cadeira. Aquele homem era uma gárgula obscura e terrível.
Quando o depoimento terminou, Isac foi levado para a mesma sala de antes. Nico estava lá, esperava por ele.
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Nia já não conseguia mais rir. Seu maxilar ficou com cãibras de tanto gargalhar.
— Confesse, sou o sonho de toda garota. — Miguel brincou, ainda segurando a falsa varinha de condão.
— Claro. Toda garota com até oito anos de idade. — Ela endireitou a postura. — Onde você conseguiu essa coisa?
— No Vale Encantado do Rei Fruma. — Respondeu.
— Fruma? — Perguntou. Incrédula com o nome.
— A vendedora disse que é uma combinação entre “frufru” e “mago”. — Explicou.
— Acho que escondem uma boca de fumo nesse lugar, não existe outra explicação.
— Fumo eu não sei dizer, mas têm alguns itens maravilhosos, eu até trouxe uma tiara de prin-ce-sa para você. — Deu ênfase na palavra “princesa”.
Miguel era um homem de quase dois metros de altura, que podia ser muito intimidador quando queria. Ela o imaginou na fila do caixa com aquela fantasia em uma cestinha e cercado por crianças barulhentas. A imagem lhe aqueceu o coração. Mas ele estava ridículo demais para ser levado a sério.
— Tira isso, está bobo. — Falou, ainda sorrindo.
— Mas eu nem levei você até a cozinha para comer cupcake mágico. — Fez uma expressão falsa de tristeza. — E você nem pegou no meu rabo.
Miguel lançou um olhar malicioso, mas em seguida estragou o efeito daquilo quando virou a bunda e começou a rebolar para fazer o rabo mexer. Nia começou a rir mais uma vez. Ele se virou contente com o resultado de seu empenho. Tinha alcançado o objetivo.
Conduziu Nia até a cozinha e pegou os cupcakes na geladeira. Todos enfeitados de formas chamativas. Provara um antes de comprar, o sabor era ainda melhor que a aparência.
Pela primeira vez no dia sua esposa comeu. E Miguel respirou aliviado. Foi até o banheiro e buscou a tiara de princesa que havia comprado para ela. Era de plástico, com muito glitter e brilhava como sua varinha.
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Soares se foi e Nico tomou seu lugar. Parecia estranho, volta e meia o peguei olhando para mim como se estivesse pronto para avançar e me segurar. O julgamento estava quase no fim depois de horas de pessoas falando como Schukrut era um homem cruel e ambicioso.
Fiquei mais atento quando anunciaram que haveria um vídeo apresentado pela acusação. Seria alguma imagem das câmeras de segurança? Todo o local foi preparado para a reprodução do vídeo. As pessoas, apreensivas, fizeram um silêncio sepulcral e olharam para uma grande tela. Estava um pouco longe, me movi na cadeira para enxergar melhor. Nico ficou mais tenso do que antes.
A reprodução do vídeo foi autorizada, apenas depois de ouvir as primeiras frases me dei conta de quem estava nele.
“Meu nome é Djéfani Luíza Ferreira. E eu não tenho mais família...”
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Depois que Nia comeu, quis voltar para o quarto. Apesar de estar bem mais alegre, ainda tinha marcas de profundo cansaço por todo o rosto.
— Tira isso, amor. — Pediu. — Não consigo parar de rir.
— Está pedindo um strip? — Brinquei.
— Talvez. — Ela olhou como se considerasse a proposta.
— Uma pena, queria fazer disso aqui uma segunda pele. — Apontei para o tecido fofo.
— Prefiro sua primeira pele. — Ela tirou a tiara e colocou cuidadosamente sobre o criado mudo.
— É? — Tentei lançar um olhar sedutor. Qualquer coisa que a tirasse da tristeza ou a distraísse.
— Sim... — Ela entrou no jogo.
Virei-me e balancei o rabo da fantasia. Nia riu. Em seguida abri o zíper das costas imitando os movimentos de um go go boy, ela permanecia rindo. Quando a fantasia finalmente caiu no chão, eu estava apenas de cueca.
Ela me olhou com desejo e meu corpo reagiu. Ajoelhei sobre a cama e lhe dei um beijo suave.
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Todos estavam profundamente chocados. Ninguém ousou dar um pio durante a reprodução daquele vídeo horrível. Quanto a mim, não conseguia parar de chorar enquanto ouvia a voz de Djéfani e a via em seus últimos momentos. Eternizada em sua história triste. O mundo foi cruel e completamente injusto com uma grande mulher que sofreu demais para a pouca idade. E morreu cedo demais, antes de conhecer a felicidade.
Eu me lembrava dos poucos momentos que passamos juntos. Quando ela disse “Você voltou.” eu não entendi a real importância daquilo, mas passei a entender. Se antes eu já odiava Schukrut e queria matá-lo, a partir de então, eu o esquartejaria se fosse possível. A fúria tomou conta do meu ser. Eu já não enxergava e não ouvia. Queria acabar com a vida daquele ser miserável.
Movido pela ira, me levantei da cadeira. Ela caiu no chão. Eu estava algemado, meus movimentos eram contidos.
Corri para a porta, mas Nico me segurou.
— Me solta! — Gritei tomado pelo ódio.
— Eu não posso. — Nico tentava me segurar enquanto eu me debatia.
— Aquele monstro! — Juntei minhas mãos e acertei com força na lateral da cabeça de Nico. Ele cambaleou perdendo o controle. — Me deixa matar ele com minhas próprias mãos!
Corri para a porta na esperança de descer até o tribunal, mas os policiais me impediram de sair. Dois dos homens e Nico, depois de algum esforço, conseguiram me dominar. Com raiva e humilhado, fiz a última coisa que podia: Chorei.
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Fizemos amor.
Miguel foi sensual, mas suave. Respeitou todos os meus limites e deixou que eu tivesse controle do momento. Eu tinha mil razões para amar aquele homem.
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Schukrut foi considerado culpado e condenado a tantos anos de prisão que dificilmente sairia vivo depois de cumprir a pena. Mesmo assim aquilo não era o suficiente. Todavia eu seria obrigado a aceitar.
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