Garoa
— Nia? — Miguel tateou o outro lado do colchão à procura do calor da esposa. — Nia? — Chamou outra vez.
Seu coração acelerou em um pânico crescente. Onde estava sua esposa?
Abriu os olhos para confirmar a verdade que parecia absurda. Nia não estava deitada ao seu lado.
Confuso se levantou, acendeu a luz e procurou por Nia do outro lado da cama. Seus olhos ainda se acostumando à luz acesa. Ela não estava no quarto. Miguel começou a se questionar se tudo aquilo era um sonho.
Perdido em sentimentos e pensamentos que se avolumavam, o homem olhou para a janela, a chuva ainda caía pesada lá fora. Inspirou profundamente e olhou para o chão onde sua carteira jazia abandonada.
Miguel pegou o acessório e analisou seu conteúdo. Tudo estava dentro, exceto o dinheiro. Uma rápida análise do quarto e ele percebeu que o celular dela também tinha sumido.
Onde estava Nia?
Procurou pelo andar de cima, mas ela não estava lá, em nenhum lugar. Roupas e sapatos tinham sumido de onde estavam. Desesperado, ligou a luz do corredor e desceu as escadas. Pôde ver uma última imagem de Nia enquanto ela adentrava a noite chuvosa.
Ela tinha fugido com a própria força.
As lágrimas corriam pelo rosto enquanto pensamentos cruéis envenenavam seu coração. Nia não o amava. Fora tudo fingimento, toda a paralisia, as juras, a curta história de amor. A mulher foi embora e levou seus dois corações, o dele e o do filho que ela gerava em seu ventre. Seu olhar se tornou uma cortina embaçada, uma pontada de dor perpassou seu peito. Confusão, traição, medo e outros sentimentos faziam com que sua consciência imergisse na escuridão.
Em um minuto chorava no pé da escada, e no outro, dormia profundamente sonhando com sua amada. Sabia que não deveria se perder nos sonhos. Deveria ir atrás de Nia antes de tudo piorar. Tudo poderia ser resolvido com uma conversa civilizada, mas não seria, não naquele momento.
Juan, irritado com a fuga de sua presa, correu escada acima e se dirigiu ao quarto onde guardavam as roupas. Vestiu calça, camisa e um agasalho de tecido impermeável. Ela não fugiria, não agora que tudo estava perfeito.
Desceu as escadas de três em três degraus e correu até a cozinha. Pegou uma corda que estava no armário da pia e uma lanterna. Enrolou a corda na cintura e amarrou firme.
Avaliou a chuva que caía. Ela não poderia ir muito longe debaixo de tal tempestade e a mata era consideravelmente fechada. Além disso, o corpo de Nia ainda estava fraco demais para o grande esforço que ela precisaria fazer.
Abriu a porta e inspirou o ar úmido da noite.
Era hora de caçar.
Avaliou a mata próxima, havia um local mais aberto entre as árvores.
Seres humanos são previsíveis.
Juan gargalhou alto antes de se embrenhar na mata.
♠♠♠♠
A manhã trouxe consigo uma fina garoa banhada em brilhantes raios de sol. As iluminadas gotas de água ganhavam uma forma poética que eu apreciaria se não estivesse em péssimo estado de espírito.
Meus olhos, inchados, ardiam pelo choro seguido de uma noite insone. Minha intuição gritava que acontecimentos muito ruins estavam por vir. Cansado e preocupado, troquei minhas roupas e desci a procura de um café puro ou uma garrafa de energético. O que aparecesse primeiro.
Apesar do cessar da tempestade, os celulares ainda estavam sem sinal. Em um repentino ataque de fúria, senti vontade de jogar meu celular na parede do elevador e depois chorar em posição fetal, mas eu não podia desmoronar. Não ainda. Mesmo que os últimos dias tenham sido o inferno, eu não poderia me dar ao luxo, não enquanto não encontrássemos Nia. Porque se eu cedesse, nada mais me levantaria.
Passei pela recepção cheia de pessoas sorridentes com o cessar da tempestade e me senti um ser de aura carregada. Nem saberia dizer qual tinha sido a última vez que a felicidade bateu à minha porta.
— Bom dia. — Falei para uma funcionária que indicou onde estava o café da manhã.
Ela sorriu largamente, tudo que consegui foi olhar e depois me afastar.
Peguei um prato e analisei o conteúdo variado da mesa, em outro momento eu estaria disposto a provar cada prato servido ali, mas meu estômago parecia pesado, optei apenas por pão e um copo de café sem açúcar.
Escolhi uma mesa no canto do salão, à beira de uma janela. Enquanto tomava o café amargo, assisti a chuva cair como o choro de alegria de um anjo bem humorado.
Onde estaria Nia? Bem? Alimentada?
Pelo canto do olho vi Nico adentrar o lugar. Em breve eu teria respostas.
♠♠♠♠
Observei Isac sentado em uma mesa enquanto tomava o desjejum. Tinha o semblante tão carregado que espantaria o pior monstro do planeta. Várias mulheres observavam meu amigo e lançavam olhares de provocação, mas ele estava alheio a tudo. Eu quase podia ouvir seus pensamentos, o nome da mulher que neles habitava. Nia.
Como adulto maduro e homem da lei, era mais que meu dever não deixar aquele homem seguir com o psicológico abalado. Como amigo, eu sabia que tentar animá-lo seria o mesmo que fazer uma piada de extremo mau gosto.
Mas eu era acima de tudo, um detetive. Pousei meu prato sobre a mesa e afastei a cadeira de maneira ruidosa a fim de arrancá-lo de seus devaneios.
— Linda manhã. — Cumprimentei.
Em resposta Isac apenas bufou e grunhiu.
— O que você comeu? — Perguntei enquanto espetava com o garfo um pedaço de bolo de fubá.
Isac me lançou um olhar apático antes de abrir a boca para pronunciar uma resposta.
— Pão. Café.
— Ótimo, agora volte naquela mesa e pegue mais comida. Você é um homem livre, não precisa viver apenas de pão. — Provoquei. Ele realmente precisava se alimentar melhor.
— Você faz tudo parecer uma piada. — Não foi um comentário amistoso.
— Não, Isac. Sabe o que eu faço? Não perder o rumo da situação. É isso que eu faço. — Tomei um pouco de suco antes de continuar. — Eu não vou levar você se estiver mal alimentado. Sabe Deus o que nos espera naquela ilha e quanto tempo seremos obrigados a ficar sem comer. Se você passar mal, não poderei ajudar, serei obrigado a te abandonar em algum lugar e seguir com a busca. Eu não quero fazer isso, porquê vou acabar preocupado com você e com a Petúnia. Então faça o favor de ser menos inconsequente, volte naquela mesa e encha seu prato com toda a comida que couber no seu estômago.
Isac estreitou os olhos e franziu os lábios de uma forma que expressava seu descontentamento, mas se levantou e foi se servir de mais comida.
Ótimo. Era isso ou eu seria obrigado a deixá-lo para trás.
♠♠♠♠
Algo que ninguém diz sobre a dor, é que você não a sente muito quando seu corpo está tomado pela adrenalina. Minha fuga pela mata, durante a chuva e na madrugada, foi uma das piores experiências que eu poderia ter. No início, todos os músculos de meu corpo latejavam em um pedido agudo de piedade, mas eu não podia parar.
A chuva ensopou minhas roupas que ficaram cheias de lama, Cada centímetro de pele exposta foi arranhado por galhos. Perdi as contas de quantas vezes meu pé enroscou em alguma raiz e o tropeço me levou ao chão cheio de lama, folhas molhadas e galhos podres. Eu estava imunda, perdida e me sentia humilhada pela vida.
Minha vontade maior era me ajoelhar e chorar, mas eu não podia parar. Cada um dos meus instintos gritava que não era sábio parar. E eu não parei.
O plano era atravessar a ilha e ir para alguma praia. Não podia ser tão difícil. Se eu subisse chegaria ao topo de algum lugar, possivelmente no centro da ilha, se descesse chegaria a alguma praia.
Eu precisaria me esconder até o anoitecer, afinal Miguel me procuraria nas praias e durante o dia, eu seria um alvo fácil.
No fim das contas escolhi subir pelo relevo e encontrar algum abrigo.
Tentei com todas as forças ignorar a voz da minha consciência que gritava o quanto eu estava arriscando minha gravidez. Sei bem que nenhum moralista entenderia meu modo de pensar naquele momento, mas se eu parasse de fugir, não era apenas minha gravidez que estaria em risco. Era minha vida.
A manhã chegou, e a chuva se transformou em uma fina garoa que mal passava pela copa das árvores. Sentei-me em um monte de folhas secas para beber um pouco de água, coisa que eu não tinha feito até então.
A falta do movimento fez com que meus músculos voltassem a reclamar. Senti cada membro do meu corpo se afrouxar e ganhar consistência de gelatina.
Lágrimas traiçoeiras desceram pelo meu rosto.
♠♠♠♠
Nico conseguiu um transporte que nos levasse até a ilha. Uma vez mais fomos obrigados a lidar com a Polícia Federal. E, caso inédito, não houve troca de socos ou palavras ásperas.
Eu ainda estava profundamente irritado por Nico me obrigar a comer mais do que eu desejava, mas eu sabia que ele faria apenas escolhas que nos ajudassem.
♠♠♠♠
Acordei deitado no sofá. As roupas molhadas e enlameadas. Uma corda amarrada na cintura e uma lanterna na mão.
O que estava acontecendo? Onde estava Nia? Chamei por seu nome e corri pela casa procurando sua presença, mas ela não tinha voltado.
Eu não me lembrava de vestir aquelas roupas ou de pegar a corda e a lanterna. Parei no banheiro e joguei água no rosto. Olhei-me no espelho me sentindo completamente perdido. A confusão visível em meus olhos.
— O que aconteceu? — Perguntei para o reflexo.
“Lembre-se de mim, irmão.” Foi a resposta de minha mente.
Impaciente, desferi um golpe contra o espelho.
O que acontecia comigo?
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