Fuga na noite
Eu tinha a certeza que se minha mãe pudesse falar comigo, ela faria um elogio à minha perspicácia. Bebi tanta água que Miguel foi obrigado a me levar ao banheiro inúmeras vezes em pouco espaço de tempo.
Ele estava empolgado com meus sinais. Exultante de alegria.
Eu queria poder estar feliz também, mas isso não era possível. Depois de algumas horas de reflexão, decidi que o melhor seria fugir para algum lugar desconhecido e deixar Miguel. Não somente ele, mas toda minha vida. Quando percebesse minha fuga, Juan iria me procurar até no inferno e eu não poderia aceitar que ele estivesse perto de mim ou do meu bebê.
Não era a decisão mais fácil de todas. Morria uma parte de mim toda vez que Miguel acariciava meu ventre e sorria de um jeito bobo. No entanto, a lembrança de minha mãe morta sobre a cama do quarto de visitas trazia uma dor que se transformava em coragem para executar meu plano de fuga.
Meu marido me amava, ele me perdoaria por fugir, isto é, se ele descobrisse os motivos, caso contrário, ficaria devastado. Todavia eu não tinha outra escolha.
A segunda parte do plano consistia em não chamar atenção para qualquer melhora que eu tivesse. Eu não tinha muita certeza se entendi como funcionava a troca das personalidades, mas Juan poderia dominar o corpo de Miguel quando achasse necessário e isso aconteceria se o cérebro dele registrasse alguma melhora.
Comecei a armar um plano de fuga. Eu não conhecia a ilha, o único dinheiro a meu alcance era o que estava na carteira de Miguel e meu celular estava junto ao dele. Era preciso premeditar cada passo, ou não haveria chance. Juan era cruel. Para ele, a vida não passava de um jogo. Eu era um hamster em sua gaiola.
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Nia apresentou um pequeno sinal de lucidez e melhora que deixou meu coração repleto de alegria. Era como se eu fosse um balão e a alegria me inflasse até o ponto de eu quase explodir.
Ela bebeu muita água durante o dia, talvez fosse alguma reação de grávida ao tempo chuvoso, eu não entendia. Nossos telefones ainda estavam sem sinal e era impossível sair, então fizemos o que qualquer casal faria. Assistimos a filmes, li um capítulo de um livro e fiz carinho no ventre onde crescia meu primeiro filho. Fruto do nosso amor.
— Eu estava pensando em alguns nomes. — Falei. Nia estava sentada na poltrona que eu arrastara da sala. Por um instante, parei de picar a abobrinha que eu colocaria na sopa daquela noite e admirei a beleza de minha esposa. Agasalhada em um cobertor. — Se for menina pode ter o nome de alguma flor, para combinar com o seu. Se for menino também, poderia ser Narciso, por exemplo. Mas eu não gosto, faz parecer que nosso filho vai ser narcisista.
Coloquei a abobrinha devidamente picada em um recipiente e dei início ao trato das batatas.
— Eu gostaria que fosse menina. Sim, pense em quantos nomes magníficos podemos colocar. Dália, Bromélia, Orquídea. — Parei um instante e olhei para o teto, aqueles nomes soavam estranhos quando ditos em voz alta. Olhei para Nia em busca de alguma reação, mas ela não se expressou. — Ou podemos colocar nomes exóticos, por exemplo, Hera. Hera Tulipa? Afrodite Solar? Nossa! Realmente sou péssimo nisso. Ainda bem que temos nove meses para escolher um nome decente.
Ri sozinho enquanto avaliava os cubinhos de batata.
Parecia até pecado estar tão feliz após tantos acontecimentos traumáticos. Pelo menos eu podia dormir bem por ter feito a escolha certa. Viveríamos em paz.
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— Maldita chuva que não para! — Isac praguejou enquanto olhava pela janela.
Eu entendia seus sentimentos. Mesmo que ele tentasse desesperadamente não interferir mais na vida de Nia, não seria possível. O inferno congelaria antes que ele conseguisse esquecer aquela mulher, mas eu ficava feliz que ele fizera uma autocrítica, obsessão nunca foi o caminho certo para o coração de alguém.
— Vai parar, tenho fé, pelo menos por enquanto. Depois de muito tempo seremos obrigados a assistir jornal para ver a previsão do tempo. — Expirei com força, aquele maldito Juan soube se enfiar no fim do mundo, mas não era apenas isso que me deixava estupefato, o homem também tinha uma sorte dos diabos.
— Nem sei há quanto tempo não faço isso. Ver a previsão na TV. — Isac se virou e me encarou. As mãos enfiadas nos bolsos da bermuda, postura tensa que me lembrava um poste. — Nico... — Iniciou a frase e apesar da sugestão de continuidade, meu nome pairou no ar.
— Sim. — Ergui uma sobrancelha incitando a completar o raciocínio.
Isac franziu o cenho e olhou para o teto, como se esperasse uma resposta divina.
— Você acha que é errado eu amá-la? — As palavras saíram em um tom quase inaudível.
Eu já tinha parado para refletir sobre aquele assunto. Então respondi a única coisa que fazia sentido.
— Isac, você realmente ama? — A resposta dessa pergunta abriria as portas do entendimento acerca de muitas outras questões.
Soturno, meu amigo olhou para a correia da sandália de borracha enquanto refletia.
— Eu não sei bem o que sinto. Sei que é algum tipo de amor, mas tudo mudou em uma velocidade tão vertiginosa que... Nia se casou, fui preso, conheci Djéfani... Eu preciso ser sincero, Nico. Já não sei o que sinto. — Foi nesse ponto que Isac me olhou e fez meu coração se sentir enroscado em arame farpado. Seus olhos brilhavam com as lágrimas represadas e eu quase podia adivinhar o peso de sua angústia.
Até então, ninguém prestou a devida atenção aos sentimentos de Isac. Todos tiraram conclusões rasas, até mesmo o próprio garoto estava preso em uma certeza que não existia. Foi preciso chegar ao limite para confrontar os próprios sentimentos, e eu entendia perfeitamente, a sinceridade às vezes é uma lâmina afiada.
— Eu não sei o que sinto. — Admitiu.
Dessa vez, a represa dos sentimentos se rompeu e Isac chorou tudo o que ele não tinha chorado até então. Minha única ação foi atravessar o quarto e oferecer meu abraço mais caloroso. Era qualquer amigo faria.
Naquele momento Isac chorou até chegar aos soluços. Meu ombro ficou ensopado pelas lágrimas.
— Mas se eu amar... Será que é errado? — Perguntou a voz abafada no meu ombro.
Pensei alguns instantes naquela pergunta e cheguei a uma conclusão.
— Não é errado amar, Isac. Ninguém escolhe a quem ama. — Acariciei seus cachos macios que ganharam mais vitalidade nos últimos dias. — Mas é preciso que você a deixe descobrir o que sente por você, e mesmo que te parta o coração, aceite a decisão que ela tomar. Você não está sozinho, amigo.
Isac continuou a chorar. Tudo bem, ele precisava daquilo.
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02:00 a.m.
Meu marido já tinha se deitado fazia um bom tempo. A chuva continuava a cair. Comecei a me perguntar se aquela chuva seria um castigo eterno por todos os meus pecados.
Naquela noite, tomei cuidado para não beber água antes de dormir. Tentei mexer os dedos da mão esquerda e consegui. Eu precisava me concentrar e mexer todo o corpo. Sentia-me como se tivesse desaprendido todos os movimentos que eu executava desde quando comecei a engatinhar.
Sempre tive uma teoria de que algumas pessoas reagem melhor sob pressão, e eu rezei, com toda a força da minha alma, para ser uma daquelas pessoas.
Concentrei minha mente no pior estímulo que pude imaginar. Ressuscitei todas as memórias traumáticas da minha vida e deixei o fogo do ódio incendiar meu peito. Não a tristeza, como antes, quando eu pensava que estava segura com um homem que eu amava, mas sim o ódio, que me daria forças para fugir até outra dimensão. Como tinha me dado forças para me tornar uma jornalista implacável.
Minha garganta se fechou de raiva quando me lembrei de Juan esfaqueando a mulher no cruzeiro. Asco, eu sentia asco daquele homem e ele estava ao meu lado. Queria bater nele, me vingar de cada vida ceifada.
Foi nesse momento que todo o meu corpo tremeu.
Senti-me estranha, pesada, era como se fora esmagada pelo peso de muita água.
Experimentei mover uma perna, bem devagar. O movimento foi estranho. Se um fantoche pudesse contar como se sente, ele iria descrever aquela sensação esquisita. Meus movimentos não pareciam naturais. Mexi os dez dedos dos pés, depois os dedos das mãos. Abri a boca e experimentei os movimentos to maxilar. Ondulei os músculos do abdome como em uma dança do ventre. Minha estratégia surtiu efeito. Senti-me completamente eufórica. Meu coração bateu tão rápido e forte, cheguei a temer que o homem ao meu lado pudesse ouvir.
Em movimentos lentos, escorreguei para fora da cama. Meu corpo aterrissou no chão com um baque macio graças ao agasalho que Miguel colocou em mim antes de me deitar para dormir. Nossas roupas estavam em outro cômodo.
Com muita cautela, peguei meu celular sobre o criado mudo. Rezei para que o escuro não atrapalhasse minha fuga. Rastejei até a cômoda onde Miguel colocara sua carteira. Meus movimentos ainda estavam estranhos. Tateei a carteira e arranquei de dentro tudo o que supus ser dinheiro. Depois abandonei o acessório no chão e rastejei até a porta.
Levantei-me assim que cheguei ao corredor, usando a parede como apoio. Seria mentira se eu dissesse que não precisara de muito esforço para me levantar, além disso, havia a dor, me agarrei ao batente da porta enquanto me firmava sobre meus próprios pés. Os primeiros passos foram vacilantes, mas eles melhoravam à medida que eu seguia em frente.
Entrei no cômodo onde a maior parte dos nossos pertences estava organizada. Liguei a lanterna do celular. O coração, aos pulos, me lembrava da urgência de uma fuga rápida.
Peguei alguns aparelhos de roupa. Produtos de higiene ainda lacrados, a carteira com meus documentos e coloquei tudo dentro de uma mochila. Dei um sobressalto quando o quarto foi iluminado pelo clarão de um raio seguido pelo barulho de um trovão. Desconfiada, olhei para a porta, mas ninguém estava lá. Agradeci aos céus e continuei a pegar minhas coisas. Por último, tirei o dinheiro que estava na calcinha, onde eu tinha colocado antes de me levantar, e depositei dentro da mochila.
Fechei o zíper devagar para não fazer barulho.
Calcei um par de tênis próprio para caminhadas. Respirei fundo e soltei o ar devagar para ter mais coragem. Coloquei a mochila nas costas. Todos os meus músculos reclamavam devido a atividade inesperada. Passei no banheiro e peguei o rolo de papel higiênico. Depois desci as escadas rumo à cozinha.
Longe do quarto, relaxei um pouco. Peguei duas garrafas de água que estavam na geladeira e coloquei em um saco plástico. Em outro, coloquei várias frutas e o restante da sopa do jantar. As lágrimas, inesperadas, desceram pelo meu rosto, porque aquela seria a última comida feita por Miguel que eu teria oportunidade de comer.
Apertei tudo dentro da mochila e me dirigi à porta da frente.
Então a luz do corredor se acendeu. Pude ouvir os passos um pouco pesados. Antes que Miguel chegasse às escadas corri até a porta, destranquei e saí.
Contemplei a escuridão tempestuosa antes de correr e me embrenhar em uma mata próxima.
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