Domingo
Corri com todas as forças de minhas pernas e na maior velocidade que eu conseguia alcançar. Eu não era exatamente ágil, mas era inteligente.
Pulei um tronco que bloqueava meu caminho. Isso retardou meu perseguidor por alguns instantes. Sem avisos uma chuva forte começou a cair. O ser ainda me perseguia. Um cadáver com roupas de espantalho e rosto desfigurado. Larvas saíam de sua cabeça, aos montes.
Tropecei e caí. Ele se ajoelhou sobre meu ventre. Gritei alto, tentei me debater, chorei e pedi piedade.
— Me beije, eu amo você! — Rosnou.
Larvas caíram sobre meu rosto e rastejaram até minha boca.
Acordei com o toque do despertador. A cama estava ensopada de suor.
Relembrei os fatos da noite anterior. Eu tinha sido esperta em enviar a foto para meu próprio e-mail, a polícia não a encontrou.
Peguei na gaveta do guarda roupas um celular descartável que tinha um número extra usado apenas para me comunicar com meu informante da delegacia.
Disquei o número desejado e abafei o som com uma toalha. Ouvi enquanto do outro lado da linha a voz pronunciava o código.
— Preciso das informações sobre o chá de berço. — Falei.
— No local arejado. — Respondeu.
— Que dia? — Indaguei.
— Hoje. O berço é três mil reais. — Sua voz soava convicta.
Com toda certeza as informações eram boas, precisaria pagar um adicional de mil reais.
— Comprarei o berço. — Desliguei.
Tudo bem, o jornal ressarcia meus gastos com informações.
Levantei-me animada. Alonguei os braços e segui para um banho matinal.
Após o banho coloquei um vestido leve e segui para a feira, aonde ia com Isac com certa frequência, quase todos os domingos, na verdade.
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Estacionei no mesmo local de sempre. Vi Isac parado, braços cruzados, encostado no muro. Bermuda, regata e cabelos encaracolados iluminados pelo sol fraca da manhã.
Desci do carro e segui até ele que, distraído, ouvia música mantendo os olhos fechados. Belisquei de leve a pele sobre sua costela e ele se assustou, reagindo com um sobressalto. Isac era um homem doce e rotineiro. O tipo certo para quem gosta de uma vida simples e cheia de certezas.
— Nia, você está bonita como sempre. — Me deu um beijo no rosto.
— E você bem distraído. — Retruquei.
— Noites mal dormidas, muito trabalho. — Era sua forma de colocar um ponto final naquele assunto.
— Então, pode falar o motivo de você não ter me dado sequer um “Olá” ontem no shopping? — Resmunguei.
— É q-que e-eu... Eu estava com pressa. — Gaguejou.
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Eu não podia contar para Nia o motivo de não cumprimentá-la no shopping. Ela não entenderia meus motivos. Como eu diria: “Hei, eu não fui cumprimentar você por que me nego a te ver com outro cara bonitão que não sou eu”? Eu a amava sim, mas ela parecia não notar, então para nosso próprio bem resolvi não forçar.
Linda, vestida com um vestido leve de algodão e com os cabelos ainda molhados. Os olhos brilhavam mais quando refletiam o céu. E os lábios estavam naturalmente rosados.
— Quero comprar um frango assado e um pouco milho verde. — Desviei o assunto.
Ela pareceu entender minha reação ou apenas não quis ser intrometida. Isso era um pouco fora do normal para os padrões dela, que era jornalista, naturalmente curiosa e muito ambiciosa.
— Tudo bem. E eu quero comprar uma moldura grande, vou colocar o jornal de ontem na parede. — Respondeu.
— Isso não É um pouco mórbido? — Não, aquilo era muito estranho.
Colocar uma matéria sobre um assassinato brutal na própria parede era algo um pouco sádico.
— Não, é o prenúncio do meu sucesso como jornalista. — Sua resposta foi um ácida.
Apenas assenti com a cabeça, mesmo assim eu não concordava.
Primeiro fomos até uma loja de utilidades onde Nia comprou uma moldura grande e dourada. Depois, na própria feira, comprei o frango e o milho. Nia aproveitou e também comprou um frango que cheirava muito bem devido a quantidade de temperos que colocavam.
Conversávamos distraídos sobre o tamanho das cenouras quando se aproximou de nós um senhor que já era conhecido. Ele trabalhava na banca de flores. Suas mercadorias eram as melhores da região, sempre frescas, e aquele comerciante era um homem gentil que conquistava boa clientela. Peculiar também, pois era surdo, completamente surdo.
Sem cerimônias entregou para Nia um bonito buquê de rosas vermelhas, depois gesticulou que não era um presente dele, apontou para o cartão sobre as rosas, sorriu e partiu. No centro do buquê havia uma linda rosa amarela.
Nia arrancou o bilhete que tinha sido escrito na caligrafia do vendedor. Eu conhecia, pois já havia enviado rosas dali para uma ex-namorada.
— “De um admirador” — Nia franziu o cenho —, apenas isto escrito.
— E na caligrafia do dono da floricultura. É possível que seu admirador fale em Libras? — Perguntei curioso.
— Talvez... São lindas, mas não tem como agradecer. — Suspirou.
Não eram apenas lindas, era um buquê com as rosas mais caras dali. Seja lá quem fosse não mediria gastos para conquistar minha estimada amiga. Senti uma pontada no peito, era ciúme, sempre sentia isso quando alguém se aproximava dela, mas era meu segredo.
— Minha pergunta é: como ele sabia que eu estaria aqui hoje? — Passou a ponta dos dedos sobre as pétalas delicadas.
— Não sei. — E eu realmente não fazia a menor idéia.
— Foi você? — Ela me encarou com uma expressão apavorante.
— Não, com certeza não. — Falei em um tom de quem jamais enviaria flores à ela. Era uma grande mentira, eu plantaria um jardim por ela.
Para um observador que estivesse de passagem, Nia pareceria apenas fútil e ambiciosa, talvez até mesmo vulgar, mas eu sabia quem ela era de verdade.
Ela lutou muito para chegar a seu peso atual, foi uma adolescente gordinha, sofreu muito bullying, mas era feliz em casa. Ela pesava cerca de oitenta quilos depois de tudo e estava bem com isso. Eu ficava feliz por ela. Mas a luta de Petúnia não acabou aí. Por cerca de dois anos ela se recusou a tocar qualquer homem, e o motivo, bem, o motivo foi uma festa da faculdade, regada à maconha - que não fumamos - e cachaça. Nia, bêbada, descansara em um dos quartos, acabou dormindo e quando acordou havia um jovem penetrando sua vagina.
Ela fez um escândalo, chamou atenção de todas as pessoas que estavam na festa. O jovem alegou que era consensual, ela chorava e dizia que era mentira, o dono da festa abafou o caso dizendo que isso acontecia mesmo, que o rapaz devia ir embora e que Nia precisava ter mais cuidado e se proteger mais.
Nia surtou. Foi quando a encontrei no quarto. Ela tentou esmurrar o rosto do anfitrião, mas estava muito tonta. Ajudei-a chegar ao carro e dirigi até a casa dela.
Como eu disse, minha amiga ficou dois anos sem encostar-se a qualquer homem que não fosse seu pai ou seu irmão. Nem mesmo em mim ela confiava para contato físico, mas sempre desabafava comigo quando eu a visitava. E chorava, a certa altura eu já não sabia de onde vinham tantas lágrimas.
Até então Nia não era tão ambiciosa profissionalmente, ela sonhava apenas em escrever para algum jornal e isso ela conseguiu, mas depois teve uma idéia que se transformou em uma obsessão, a de que deveria ser muito famosa e popular como jornalista, então ela usaria sua influência para denunciar casos de assédio e estupro.
Acontece que a cidade era bastante monótona e seu sonho estava longe de se realizar, a única maneira seria cobrir um grande caso. Por isso se via tão empolgada com o jornal de sábado.
— Sabe Nia, tem circulado pelas redes sociais a notícia de que um cadáver foi encontrado em uma sala do cinema, mas ninguém tem provas, você estava lá, não estava? — Perguntei.
Ela abriu bem os olhos e me respondeu com certo entusiasmo.
— Sim eu estava e a notícia é verdadeira. — Ela abaixou o tom da voz até se tornar um sussurro — E cá entre nós, tenho uma foto, uma bem nítida. Será meu trunfo.
Ela sorria alegremente como se não estivesse falando de algo tão macabro como um assassinato. Não perguntei mais, corria o risco de ela me mostrar a foto e eu não gostaria de ver, meu estômago era fraco. Na verdade, eu era fraco no todo, de mente e de corpo. Magro e alto, não tanto quanto o atual ficante de Nia, mas alto o suficiente para beijar o topo de sua cabeça.
— Melhor eu ir, depois nos falamos. — Beijei-lhe o topo da cabeça e aspirei ao aroma dos fios recém lavados.
— Vá bem. — Ela me beijou o rosto. Era a cota de carinho que eu recebia por ser seu amigo, mas era melhor ela do que nada.
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O parque estava ensolarado. Eu usava roupas de ginástica na cor verde limão e uns óculos de lentes coloridas espelhadas. Nada em meu estilo usual, eu detestava aquelas roupas, mas era um bom disfarce justamente por isso.
Eu e meu informante seguimos o velho esquema. Peguei as informações, entreguei o envelope e fui para o carro.
Conheci meu informante de um jeito curioso. Estávamos em um encontro às cegas, ele bebeu muito e eu não. Eu não bebia até perder a consciência quando ia a encontros. Ele começou a reclamar da vida, e a dizer como era injustiçado no trabalho, que seu salário era pouco para o cargo, dentre outras coisas.
Tive a brilhante idéia de lhe oferecer dinheiro por informações. Não era um procedimento ético, mas era vantajoso. O homem ficou receoso, mas quando falei o quanto poderia oferecer pelas informações, o coração ambicioso se pôs balançado. Uma boa informação podia valer até cinquenta mil reais. Sabíamos de jornais de pagavam mais, mas nosso jornal não era tão financeiramente abençoado. E, não havia jornal que pagasse mais em toda a cidade, essa era nossa maior vantagem. Ele aceitou o acordo.
No dia seguinte nos encontramos no parque e lhe passei o esquema. Encontraríamos-nos ali sempre que ele tivesse uma boa informação. Dei a ele um celular barato, desses que passam ilegalmente pela fronteira com um chip registrado em um nome falso. Dei também uma lista com quatro códigos e expliquei como funcionaria. Era bem simples. Cada código era uma conversa composta por um tema diferente e aleatório. Poderia ser brinquedos, receitas ou qualquer outra coisa. A única regra era que nunca deveria se repetir e sempre deveria ser possível falar de valores durante o interlóquio. Ele deveria decorar os quatro códigos e queimar o papel em seguida. Sempre que os códigos acabassem eu passaria uma nova lista.
Quem ficou feliz foi meu chefe, o jornal vendia como água no deserto e o lucro de sábado foi o mais alto nos últimos meses. Recebi até um adicional.
Abri o envelope e li as informações.
O cadáver estava com todos os documentos, tinha vinte e cinco anos, fazia faculdade e tinha HIV positivo. Havia sido brutalmente golpeado na face e o cadáver estava fresco. Encontraram uma rosa amarela no bolso traseiro da calça.
Todos os pêlos do meu corpo arrepiaram quando li o último detalhe. Mas meu coração acelerou bem mais quando li a linha seguinte, manuscrita:
“A polícia começa a considerar a possibilidade de um serial killer.”
Era o que eu precisava.
Arrepiei novamente.
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