A pior forma de conhecer a sogra
Miguel e eu não dormimos juntos naquela noite. Nem transamos. Parecia que havia um terrível bloqueio entre nós. Ainda assim, cada minuto do encontro valia uma grande e brilhante barra de ouro.
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No dia seguinte acordei bem disposta.
Liguei para minha mãe e marquei um jantar que aconteceria no sábado seguinte. Seria uma noite memorável. Olhei no calendário do celular, vi que minhas férias estavam próximas e eu não tinha idéia do que faria durante meus dias de folga, mas isso nem chegava a ser uma preocupação. O pior que poderia acontecer seria comer, dormir e ver TV durante o dia todo.
Assim que cheguei ao trabalho percebi que tinha me esquecido de buscar as informações novas. Não era problema, o que tinha escrito no relatório já era de meu conhecimento.
Meu plano do dia era escrever sobre Lia, e inserido na matéria estaria o pedido de Nico.
O título da matéria era impactante e chamaria uma atenção absurda.
“Procura-se informações: recompensa em dinheiro.”
Meu chefe ficou contentíssimo com a matéria e ainda mais contente quando expliquei que era um pedido de Nico. Se sua alegria ficasse maior ele flutuaria pelo jornal.
— É disso que precisamos. Você é fantástica! — Era um elogio e tanto, mas dado o acontecido no sábado, havia controvérsias.
— Se sou tão fantástica, por que não ganhei o primeiro lugar? — Desabafei.
— Não sei muito bem o motivo. Você sabe que recebo ordens. Eu tinha certeza que você ganharia, o jornal tem lucrado absurdamente com suas matérias, mas as ordens eram claras. — Ele respondeu enquanto dava sinais de nervosismo.
— Isso não é justo — era meu direito poder desabafar —, nada justo. Eu controlei sentimentos, opiniões, estraguei encontros e talvez vá para o inferno, tudo por correr atrás da melhor matéria que esse local já publicou.
— Eu se...
— Tenho um informante — cortei sua fala —, quem mais tem um informante dentro da polícia? Diz-me! Ninguém, ninguém mais nesse jornal teve a coragem e a audácia de ter um informante fixo. Eu poderia ser presa e até assassinada por isso.
Meu coração diminuiu de tamanho no peito, eu ainda sentia a dor daquela injustiça.
— Mas quem ganha os louros da vitória é um boçal arrogante. — Bufei.
— Desculpe, eu não concordo com eles, mas preciso desse emprego tanto quanto você. — Foi tudo que ele falou antes de encerrar o assunto.
Retirei-me de sua sala e fui preparar a matéria do dia seguinte, adiantaria meu trabalho e sairia um pouco mais cedo, precisava comprar uma roupa para usar no jantar. Eu já tinha muitas roupas, mas queria uma especial.
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A noite anterior valeu cada minuto que passamos juntos. Cada detalhe era único e especial. Peguei uma folha de papel na gaveta da escrivaninha e usei um lápis comum para traçar o rosto de Nia. Ela era maravilhosa em todos os sentidos. Fiquei bons minutos admirando fotografias dela que eu tirara em meu celular, aquela mulher era uma obra prima da natureza, minha amada.
Meu celular tocou. Era uma moça da joalheria, ligou para avisar que nossas alianças estavam prontas. Agradeci a gentileza e desliguei. Já iria buscar.
Pensei em como tudo acontecia rápido durante aqueles dias, mas ao contrário de como eu deveria me sentir, eu não estava inseguro, não, eu queria Nia bem perto de mim. Se ela aceitasse, até mesmo nos casaríamos.
Disquei o número de minha mãe e ouvi enquanto chamava. Ela morava em outro estado, sendo assim, eu quase não podia vê-la. Era uma mulher baixinha de cabelos negros e olhos bondosos. E naquele momento me irritava por não atender ao telefone.
“Tuuuu, tuuuu, tuuuu”, a ligação caiu. Tentei novamente e deu na caixa de mensagens.
Meu pai havia morrido em um acidente de carro, foi algo terrível, eu morava com eles naquela epoca. Minha mãe me deixou mudar de cidade para me graduar e tentar a sorte no mercado de trabalho, mas felizmente a sorte veio através de um passa tempo, que era escrever.
Meu novo livro estava quase finalizado, se chamava “O Botânico Demoníaco”, eu ria sempre que pensava em um jardineiro do mal, mas de alguma maneira eu concretizei isso e consegui fazer com que ele fosse medonho.
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Eu andava pelo centro com uma sacola de roupas quando encontrei Miguel. Sua atitude estava um pouco suspeita, parecia me esconder algo.
— Você está escondendo algo? — Brinquei enquanto cutucava de leve o umbigo dele sob o tecido da meia estação branca.
— Claro que não, o que eu poderia esconder de você? — Nem preciso acrescentar que ele sorriu de uma maneira charmosa e fantástica.
Fiquei sem ar.
— Com esse sorriso? Poderia esconder até mesmo um assassinato. — Meu senso de humor não era dos menos peculiares.
Percebi que ele não gostou muito da piada.
— E o quê a senhorita faz aqui? — Passou um polegar pela linha do meu maxilar em uma demonstração de carinho.
— Eu trabalho aqui. — Minha voz era quase um ronronar, se fizesse um pouco mais de carinho, eu me deitaria no chão e pediria afago na barriga.
— Na calçada? — Ele sorriu torto e semicerrou apenas um olho.
— Sim, estou vendendo minha arte.
Gargalhamos. Passei o braço em sua cintura enquanto ele me conduzia até meu carro que estava próximo dali.
— E o jantar? — Perguntei.
— Mal posso esperar. — Percebi que ele estava de fato ansioso e resolvi que seria melhor não tocar mais no assunto.
Nem contar que ele participaria de um jogo divertidíssimo onde seria o alvo.
Meu carro tinha vidro fumê, ou seja, escuro. Isso não permitia que as pessoas vissem o que estava dentro e eu amava essa privacidade.
Eu e Miguel trocamos um beijo apaixonado e escandaloso antes de eu entrar em meu automóvel. E outro quando estiquei o pescoço para fora da janela aberta. Então, sem fôlego, paramos. Ele endireitou o corpo e eu me preparei para voltar ao trabalho.
Só que naquele dia eu não voltaria ao trabalho.
Meu coração acelerou quando olhei no banco de trás através do espelho retrovisor. Fiquei tão horrorizada que não consegui gritar, apenas virei a cabeça para conferir se era verdade.
Era.
O grito saiu quando confirmei ser real o que vi pelo espelho. Era uma mulher morta. Uma senhora. Seus olhos abertos e assustados fitavam a parte de trás do banco do motorista. A pele estava lívida.
Abri a porta do carro, saí aos tropeços, caí e ralei o joelho na calçada. Miguel não esperou eu explicar o que acontecia, enfiou o tronco dentro do carro e poucos segundos depois o ouvi falar com a voz embargada.
— Mãe?!
Sua fala foi abafada pelo metal, mas ele saiu da parte da frente e abriu a porta de trás.
— Mãe...? MÃE! — Miguel sacudiu o cadáver na esperança de acordá-lo, mas isso não aconteceu.
Tudo que vi foi uma colombiana amarela cair no chão enquanto Miguel abraçava o defunto. A cena ficou pior quando ele começou a chorar abraçado à falecida.
Peguei minha bolsa dentro do carro, retirei de lá meu celular que usei para ligar para Nico.
Expliquei toda a situação e pouco tempo depois ele já estava conosco. Trouxe consigo uma equipe de perícia que teve muito trabalho para soltar a mulher dos braços de Miguel. Aliás, ele teria muitas complicações por ter alterado a cena e tocado no corpo, mas era compreensível a forma como agira. Miguel ainda chorava quando levaram o corpo.
— Minha mãe, Nia! Minha mãe! — Ele me abraçou.
Ser abraçada depois de a pessoa ter tocado um cadáver não era exatamente um sonho de consumo, mas meu coração estava em pedaços ao ver Miguel chorar como uma criança. Milhares de perguntas passaram por minha mente, mas nenhuma delas seria bem vinda no momento. Abracei-o de volta com todas as minhas forças e deixei-o chorar no meu ombro.
Nico em algum momento nos deixou a sós, mas precisaríamos prestar esclarecimentos depois.
Miguel me soltou e se sentou no chão como um garotinho, ainda chorando.
— Ela nem morava nesse estado, Nia! Como isso aconteceu com ela?! Como?! — Seu olhar era de uma fera que fora ferida e desonrada. — Minha mãe era a melhor pessoa do mundo. A melhor! Ela não merecia. Por que ela? — Abraçou os joelhos e voltou a chorar.
Pensei em minha própria mãe e em como eu me sentiria se a visse daquela maneira. Foi assim que saí do estado de choque para o de compreensão aguda. A mãe dele estava morta, nunca mais ele a tocaria, ouviria a voz ou comeria algo preparado por ela. A mulher não mais andaria pela casa, mandaria fotos de viagens, brigaria com ele por motivos bobos ou reclamaria de alguma dor, porque ela estava morta e a morte é irrevogável.
Naquele momento os assassinatos se tornaram uma questão pessoal para mim. Havia um monstro a solta e ele brincava comigo, mas mais que isso, sua troça macabra envolveu uma pessoa que eu amava. A polícia não parecia ser perspicaz o suficiente para jogar aquele jogo maldito, mas talvez eu fosse. Talvez todas as mortes fossem um convite doentio para que eu o capturasse. E havia outra motivação excelente para que eu desmascarasse o serial killer: minha família estava em perigo.
Sim, minha família estava em perigo. O cerco se fechava. Eu não sabia as motivações ou objetivos daquele ser doentio, mas sabia que queria me atingir de alguma maneira e ele faria o que estivesse ao seu alcance para lograr sucesso.
Com lágrimas nos olhos, ainda abalada pela compreensão do que ocorria, liguei para a funerária. Precisaríamos disso e deixar Miguel encarregado quando estava em estado emocional tão frágil seria o mesmo que empurrá-lo em um precipício de mais dor e sofrimento.
Deixei tudo acertado. Eu pagaria tudo se fosse necessário.
Peguei as chaves de Miguel que estavam em seu bolso e o conduzi até seu carro, precisávamos ir à delegacia antes de tudo.
Foi triste o caminho até lá. Meu companheiro não parava de chorar, com a lateral da cabeça encostada no vidro da janela e o olhar perdido em um infinito que eu não conhecia. Às vezes ele se enfurecia e gritava um “maldito” ou um “vagabundo de merda”, com toda certeza elogios direcionados ao assassino, mas depois voltava a chorar.
Quando chegamos à delegacia me mantive firme, Miguel precisava disso. O conduzi até a sala de Nico e esperei com ele. Passamos pelas burocracias de sempre e algumas que ainda não conhecíamos por ele ter tocado o cadáver. Em determinado momento, Nico me chamou para fora da sala e disse ter acelerado o processo de liberação do corpo, a equipe de perícia já tinha colhido todo o material necessário. Esperei Miguel, sentada em uma cadeira da sala de recepção, onde tudo tinha diferentes tons de cinza. Minha cabeça doía, mas eu precisaria ser firme até o enterro.
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Com exceção da mãe, Miguel não tinha parentes próximos, então a sala estava praticamente vazia.
Pelo que entendi do pouco que ele falou, a mãe era viúva e não saía de sua cidade a não ser em casos extremos. Foi renegada pela própria família ao casar com seu pai, então apenas a família paterna de Miguel gostava deles. Perguntei se ele gostaria de avisá-los e esperar sua chegada, mas seu “não” foi incisivo.
Nunca tinha entrado na casa de Miguel, naquele dia foi a primeira vez.
O sobrado era todo dele, isso significava que seu quarto ficava na parte de cima. O conduzi até o banheiro e procurei o quarto para encontrar roupas pretas que ele pudesse vestir para o velório. Achei um terno, seria adequado para a ocasião. Coloquei a roupa sobre a cama e sentei em uma de suas extremidades. Enquanto analisava o local, ouvi Miguel chorando e se lamentando no banheiro, aquilo era demais para minha sanidade, fui para a sala onde havia uma máquina de costura.
Sentei no sofá e esperei por alguns minutos, até que ele apareceu pronto e falou algo sobre escolher uma roupa para a mãe. O confortei explicando que já tinha cuidado disso.
Fomos para minha casa. Apressei-me no banho e coloquei um vestido. Saí com os cabelos molhados, ninguém se importaria. Quando já estávamos no salão fúnebre sentei Miguel na cadeira ao lado do caixão e lhe dei privacidade para dizer suas últimas palavras para sua mãe.
“Eu te amo, mamãe” o ouvi dizer enquanto me afastava. Não consegui segurar as lágrimas. Fui ao banheiro para chorar, não queria que Miguel me visse descomposta. Eu desejava ser seu pilar assim como ele foi o meu na noite da festa.
Quando saí do banheiro, para minha surpresa, Nico e Isac estavam lá, sentados lado a lado conversando sobre algo. Ainda mais surpresa fiquei ao ver que com o passar das horas o local se encheu. Colegas de trabalho, fãs - que eu nem sabia que ele tinha - e colegas do meu trabalho. Eles não estavam ali pela senhora morta, mas por Miguel, pela pessoa iluminada que ele era.
Questionei a um dos fãs acerca de como ele soube do acontecido. Indignado, respondeu que era a notícia do momento já que alguém havia publicado em um blog a foto de Miguel agarrado à mãe morta e uma nota de pesar.
Aquilo era cruel demais. Alguém explorava a dor de Miguel e isso não passaria em branco. Contei a Nico tal informação e ele disse que já sabia e já havia tomado as devidas providências.
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Nunca sabemos como será o momento de dizer adeus à pessoa que mais amamos sobre a terra. Não existe maneira de se preparar para isso. A pessoa que eu mais amava era minha mãe e aquele foi o dia mais terrível da minha vida.
Entrei em um estado de torpor desde o momento em que a vi morta no banco traseiro do carro de Nia. Depois daquilo, tudo parecia acontecer em câmera lenta e todas as vozes se puseram distantes.
Deixei que Nia me conduzisse, eu não tinha condições de me guiar. Saber que minha mãe morrera era como perder uma parte minha. Uma metade de meu coração. Eu estava destruído, acabado, desnorteado.
Nia foi discreta e me deixou fazer a despedida com privacidade.
— Mãe, eu não sei como isso aconteceu, mas peço p-p-perdão... — Não consegui falar mais que isso, o restante só me vinha nos pensamentos.
O local ficou cheio de pessoas que jamais imaginei que apareceriam por ali. Não pude ser atencioso como gostaria. Era egoísta, mas era minha mãe que estava morta e eu merecia um momento de solidão.
Ela foi sepultada ao pôr do sol.
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