Luto e tentações - Parte 6
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Em quanto tempo se resolve um luto? Uma semana? Um mês? Seis meses? Após aquele acidente, alguns pais e mães desenvolveriam Transtorno do Luto Complexo Persistente e continuariam a sofrer por anos a morte dos filhos a ponto de prejudicar suas carreiras individuais. Durante o primeiro mês, cerca de duas mães e um irmão vieram em frente a minha casa reclamar a vida de seus queridos como se nós tivéssemos alguma responsabilidade por eles. Para piorar, eu tinha a impressão de ver seus familiares mortos juntos comigo várias vezes ao dia.
A escola precisou de três semanas para reclamar minha presença na sala de aula, me dando uma semana de aviso prévio. Nas primeiras duas semanas, não houve aula na São Gilberto, até porque a policia ia e vinha do local para investigar pistas do acidente. Na terceira semana, os alunos não envolvidos diretamente na tragédia retornaram, sobrando apenas, euzinha.
Fui questionada se não pretendia continuar os estudos com aulas particulares em casa, ficaria difícil financeiramente aos meus pais, porém se sacrificariam por meu bem-estar. Neguei. A solidão do lar, na minha opinião, estava sendo bem pior que o ambiente tumultuado na escola. As minhas esperanças se retinham na possibilidade de me distrair dos pensamentos e esquecer as visões durante as aulas. Teoria bastante ingênua olhando retrospectivamente.
Da última vez que tinha pisado na escola, parecia ter entrado numa nuvem tóxica e asfixiante, agora, eu que parecia ser a nuvem tóxica e asfixiante adentrando o local e sufocando os alunos e até alguns professores. Os olhares eram de receio, de aversão ou mesmo de indiferença. Sentava-me agora no canto esquerdo do fundo, onde ninguém se aproximava a menos de duas carteiras de distância. Os professores evitavam aquele quadrante e eu também os poupava de perguntas ou qualquer barulho que desviasse suas atenções.
Nos intervalos, ou continuava na minha carteira mexendo no celular, ou ia até a biblioteca ler algo. Não vou dizer que fui excluída o tempo todo. Apareceram sim algumas pessoas, tanto para compartilhar boas emoções de eu me encontrar viva, como conversar qualquer trivialidade para passar o tempo. Porém, no fundo todos sabíamos que permanecia encoberta com um véu de solidão tão denso que nenhuma amizade parecia ter chances de ultrapassá-lo. E com o passar dos dias, vieram as importunações.
Antes de tudo, as importunações internas. Minha menstruação estava descontrolada. Quando começou a vim, depois do acidente, era como uma represa transbordando, em grande volume, mas por pouco tempo. Mas depois se tornou indefinida. Poderia surgir a qualquer dia, independente do horário e da forma que quisesse, mas sempre com uma cólica intensa que se assemelhava a um corte de espada por entre as tripas (pelo menos, assim eu achava).
Havia buscado, primeiramente nos absorventes, porém, acabavam encharcados e muito incômodos. Então tentei num anticoncepcional que comprei na farmácia, mas eu teria que usá-lo no primeiro dia da menstruação, regra que a minha não seguia. Que seja, não estava com medo de engravidar mesmo, usei em um dia qualquer e fui seguindo os dias. No oitavo dia de uso, quando meu fluxo havia desaparecido há dois dias, me senti aliviada. Um problema a menos.
Pelo menos, foi assim até no intervalo da aula de matemática, quando fui atingida por um nó nas tripas e um ardor no ventre. Merda! Levantei e fui depressa até o banheiro mais próximo parecendo uma criança com diarreia com medo de melas as calças. Forcei os passos até alcançar o vaso sanitário e despejar o maldito sangue lá dentro. O calor do meu corpo desparecia da cabeça até o ventre, era como se o sangue fugisse das veias e fosse ao meu útero. E se pouca desgraça é bobagem, percebo diante de mim, marcando o caminho que percorri da sala até o banheiro, gotas de sangue pelo chão.
Havia um rastro descendo pela calça até escorregar por meu sapato e atingir o chão. Ah, se eu pudesse desaparecer do mundo naquele instante. Que merda, cara. Por que eu estava sendo amaldiçoada daquele jeito?! Não soube como proceder, apenas chorei sobre o vaso e pedi a qualquer coisa no universo para me ajudar.
— Ninguém se importa com você, afinal, já deveria estar morta, não é mesmo? — Era a voz do rapaz deformado, mas dessa vez vinha diretamente da minha cabeça, como se competisse com a minha própria voz pensante.
— Você quer que eu me mate? — Indaguei-o.
— As vozes na cabeça servem para isso, correto? — disse num cinismo nauseante. — De que vale um parasita com hospedeiro morto? Seria duplo suicídio.
Eu continuava lhe ouvindo até perder a noção de tempo, perder a percepção do corpo e mergulhar no fundo de minha mente até não conseguir mais enxergar um palmo a minha frente.
— Ayla! Ayla, tudo bem aí?
Ivonete, minha professora de história apareceu no banheiro preocupada comigo. Claro que não consegui contar tudo a ela, pois algumas frases se entalavam na garganta, mas ficou convencida de que eu precisava ir para casa e acabou por me oferecer uma carona. Em casa, mais explicações mal dadas. Me sentia envergonhada pela situação e ao mesmo tempo furiosa. Juro que até pensei em métodos suicidas no fervor da mente, mas um miado atrás de outro miado conseguiu me acalmar. Lua Nova ronronava enquanto se esfregava nas minhas pernas, parecendo absorver toda a tensão, seus olhos tinham um certo brilho violeta que foram um bálsamo para mim.
Emparedada por dona Diana, precisei lhe contar sobre algumas coisas (lhe escondi sobre as visões e vozes). No dia seguinte eu já estava atrás da mesa de uma ginecologista, com um ultrassom e exames de laboratório marcados. Quatro dias depois, após os exames constatarem normalidade, fui até uma endocrinologista e até cogitaram um reumatologista. No fim, acabei com uma dezena de possíveis diagnósticos (ovários policísticos, doença de von Willebrand, síndrome do anticorpo antifosfolípide), e nenhuma confirmação de fato. Voltei para casa com um suplemento de ferro, algumas vitaminas e um novo anticoncepcional.
...
Completado dois meses do acidente, já estava impossível esconder meu atual estado mental. Vivia isolada na escola e em casa, parecia conversar sozinha quando ninguém estava olhando e negava qualquer contato social. As preocupações começaram em casa, em seguida na escola, até que meus pais foram chamados na diretoria para conversar com a psicóloga e a diretora. Isso, sem meus conhecimentos. E por ironia do destino, eles vieram a escola justo no bendito dia em que um desgraçado dum rapaz decidiu me atormentar ainda mais o juízo.
Seu nome era Henrique. Há dois meses eu o até acharia bonitinho e me envergonharia em falar com ele. No momento, não sentia nada e só queria sua distância. Ele era um daqueles idiotas com o ego inflado e suposta sensação freudiana que com um pênis poderia dominar o mundo. Em situações normais, eu desviaria do foco dele rapidamente, mas naquele dia, a voz do rapaz deformado estava no volume máximo e meu corpo, dominado pelo estresse, só precisava de uma fagulha para explodir.
"Ele aceitou um desafio dos amigos que conseguiria seu numero e transar com você em menos de uma semana." Disse a voz na minha cabeça. "Como qualquer outro aluno aqui, ele não se importa contigo, acha que seu corpo é o único atrativo e mesmo assim parece estar apodrecendo." Eu deveria rejeitar aquelas frases, mas concordava e me alimentava delas.
— Sai fora, tu não aguenta dois minutos e se acha o maioral. O que tem de músculos é pra compensar lá embaixo. Tá mais pra um modelo de loja, só presta pra olhar, quando se pega é só decepção. — Não tive certeza se as palavras foram minhas ou não. De qualquer sorte, estava dito.
— Tá pensando que é quem, ô assombração! Ninguém aqui é necrófilo pra comer cadáver não! Tu é frígida que nem a sua amiguinha magricela era!
Antes um adendo. Eu não imaginava que ele tinha capacidade intelectual para conhecer e saber colocar numa frase as palavras "necrófilo" e "frígida". Depois, pulei em cima daquele infeliz como um carnicerio pronto para degolar um franguinho. Eu era uma menina fraca e ele o bombadão da sala. Contudo, tive força e agilidade para jogá-lo ao chão e torcer seu braço até ouvir um estralo alto. Quem me viu, não sabia me distinguir de uma fera selvagem. Henrique só não terminou sem o braço o resto da moral, porque as vozes em minha cabeça se multiplicaram e me tiraram toda a atenção.
Segundos depois, vários alunos se intrometeram entre a gente e logo a sala ficou lotada de gente. Inclusive, com a ilustríssima presença de meus pais atordoados pela cena da sua filha parecendo uma serial killer pega em flagrante.
...
Fui suspensa da escola por alguns dias e recebi uma advertência dizendo que mais qualquer outro comportamento inadequado e eu seria expulsa. Também disseram aos meus pais que só me aceitariam de volta com um relatório do psiquiatra afirmando minha sanidade mental. De um lado, meu pai furioso com minhas atitudes, do outro, minha mãe orando a todos os santos e morrendo de preocupações. Aslan, para melhorar a situação, contou sobre meus sonambulismos e fuga de casa (sem mencionar Lua Nova e os eventos sobrenaturais). Rendida, tive que admitir.
— Voltei a ver coisas... — disse aos meus pais, desde então, nossa relação em casa nunca foi mais a mesma.
A única que pensei que poderia contar naquela casa era Lua Nova. Nunca havia me julgado, apenas pedia carinho e me encarava com seu olhar misterioso. Até então, não havia suspeitado de nada anormal nela, mesmo sem saber de onde viera e por que era tão educada, às vezes parecia realmente entender o que falávamos com ela. Contudo, no final daquele dia, quando minha mãe procurava um bom psiquiatra na cidade, Nova surgiu pulando em cima do meu colo com algo entre os dentes.
Quando puxei para ver do que se tratava, lá estava o cartão amarelado com o contato de Yosaka, o tal médico/médium. O que afinal era aquela gata?! Continuou me encarando com seu olhar violeta e até suspeitei que estivesse sorrindo.
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Este foi o último capítulo do arco "Luto e tentações".
No próximo, iniciaremos um novo arco no qual Ayla se verá em frente a Yosaka e a ideia de mediunidade e espíritos. Obrigado a todos que acompanham essa história, são vocês os responsáveis por me motivar a escrever os novos capítulos.
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