09. Lições
"O homem tolo,
se consegue obter
dinheiro ou o amor de uma mulher,
o orgulho cresce nele,
mas nunca o bom senso;
ele se deixa levar pela arrogância"
— HÁVAMÁL (Os Ditos de Hár)
— MEU REI E SENHOR, EU AGORA SOU teu servo até o dia de minha morte.
Knud Haraldsson encontrava-se ajoelhado diante de meu pai, com as mãos unidas entre as dele, jurando-lhe fidelidade. Estava um pouco diferente de quando o vira pela última vez, com os cabelos castanhos tão longos que passavam dos ombros, mas os olhos azuis escuros continuavam com o mesmo brilho divertido.
— Levante-se Knud, Jarl de Gráttberg — o rei o ergueu, segurou seus ombros e beijou-lhe a fronte, aceitando-o.
Todos estavam reunidos no salão do trono: minha mãe, Emmeline e seu marido; Birger Birgersson, Jarl de Stórhiminn, sua esposa e filhos mais novos; Lísa Trygvesdóttir e seu irmão Owden, os filhos mais novos do Jarl de Nordurstjarna. Lísa tinha bonitos cachos castanhos, e a pele marrom brilhava à luz das velas e tochas. Balder Agnarsson, que parecia sempre estar presente quando meu pai tinha audiências, também estava ali; isso não me incomodava, sentia muita gratidão pela forma que ele havia me consolado em minha tristeza pelo coração partido.
Lembrar da carta de Sten fazia meus olhos se encherem de lágrimas sem que conseguisse evitar; eu raramente chorava, porém o coração partido trazia uma dor que era quase física. Poderia parecer algo tolo, mas... Mas Sten sabia de meus sonhos, havíamos formado uma amizade antes de tudo, tinha entregado a ele minha virgindade e promessas foram feitas. Se o arrependimento fosse capaz de matar...
Como eu era uma garotinha tola, pensando que poderia competir com Estrid e seus cabelos ruivos, porte pequeno e graciosidade feminina, com seus olhos de corça e verdes como a grama no verão. Ela adorava dar a entender que eu era uma selvagem, por minhas costas obviamente, sabia disso; quantas vezes o príncipe e ela com certeza riram de mim juntos, perguntava-me agora.
Desonrada e descartada, sentia-me humilhada. E implorava mentalmente para que ninguém descobrisse.
Aproveitei que minhas mãos estavam atrás das costas para fincar as unhas na pele, distraindo-me com a dor física. Eu não choraria por Sten, por um príncipe que escolhia se casar com uma ninguém e desprezava a mim, uma filha de reis, simplesmente por não ter a mesma beleza e suavidade, não me permitiria demonstrar tamanha fraqueza.
O que era a filha de um Jarl comparada à herdeira de um trono? O que era a paixão e o amor comparados ao dever de príncipes para com seus reinos? Apenas uma chama que se esvai com o vento.
Escolhendo a mim, o príncipe de Samantia estaria servindo ao seu povo, pois eu traria para essa aliança todo o exército e riquezas de Astana. Entretanto, ele escolhia Estrid Matsdóttir, que nada acrescentava nessa aliança e nenhuma vantagem daria à Samantia. Essa decisão apenas constatava que Sten Fagerberg não colocava seu reino, seu povo, em primeiro lugar — então ele era um fraco. E, provavelmente, eu não seria feliz com um homem fraco.
Respirei fundo, percebendo o quanto havia endurecido meu semblante e cerrado os punhos, e repreendi meu orgulho; sabia que tais pensamentos maliciosos vinham de minha raiva e, embora a escolha de Sten tenha sido insensata e imprudente para um príncipe herdeiro do trono, o reino de Samantia e seu futuro não mais me diziam respeito. Astana deveria ser minha única preocupação.
De qualquer forma, o príncipe de Samantia havia partido meu coração e ferido meu orgulho. Eu não esqueceria isso, e nem perdoaria facilmente.
— ... in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti — a voz de bispo Sandarr Sigvaldasson quase fez com que tivesse um sobressalto.
— Amen — murmurei juntamente com todos.
Mal notara que saira de meu lugar ao lado do trono de meu pai até estar sentada na grande mesa que fora arrumada ali, no centro do salão; estávamos tendo um banquete em homenagem à chegada de dois Jarls e mais alguns representantes no Kristalhöll. Sentava ao lado direito de meu pai, e logo ao meu lado direito sentava minha irmã, que lançou-me um olhar levemente preocupado ao perceber a forma como encontrava-me distraída.
— Está tudo bem? — ela perguntou. Emmeline estava linda, com um vestido verde que cobria seu pescoço e se abria em mangas longas, e os cabelos trançados eram presos por um diadema de ouro em sua testa.
— Sim — pestanejei, forçando um sorriso — Apenas perdi-me em pensamentos.
O diadema que eu usava também era de ouro, porém era cravejado com ametistas e rubis, simbolizando minha posição como herdeira do rei. Pesava um pouco, o que me fazia agradecer por só precisar usá-lo em determinadas ocasiões — essa tecnicamente não seria uma dessas ocasiões, mas meu pai insistia que eu usasse o adereço sempre que recebêssemos os Jarls.
Robin estava posicionado poucos passos atrás de mim e, quando finalmente comecei a encher meu prato, ele se aproximou e serviu vinho em minha taça. Não produzíamos vinho em Stór Eyja, e muitos eram importados da Inglaterra e França; provavelmente só receberíamos um novo carregamento da bebida na próxima primavera ou verão. Não costumava beber tanto vinho, tinha preferência por hidromel e cerveja, porém, engoli mais da metade da taça rapidamente, concentrando-me na comida.
Emmeline e Jostein conversavam com Birger Birgersson, e meus pais e minha avó conversavam com Knud; bispo Sandarr conversava diretamente com Lísa e Owden, assim como com todos os que sentavam-se mais próximos dele. Os servos andavam ao redor da grande mesa, cuidando para que nenhuma taça estivesse sem bebida. Os músicos tocavam melodias agradáveis em seus instrumentos de cordas e sopros.
Pela primeira vez não sentia vontade de conversar e rir com os demais, e a aura alegre parecia incapaz de me envolver; sentia Knud tentar encontrar meu olhar com o seu, mas não encarei nada que não fosse meu prato e minha taça. Robin tornou a enchê-la, e seu jeito hesitante revelou sua vontade de perguntar o motivo de meu silêncio, mas não poderia falar comigo sem que eu falasse com ele primeiro — não quando estávamos diante da corte.
— Meu pai, — chamei o rei em voz baixa — posso me retirar?
Ele virou-se para mim e seus olhos claros observaram meu rosto, certamente vendo mais do que eu gostaria de mostrar.
— Sim, pode ir — respondeu.
— Meus senhores! — levantei de meu assento, sorrindo abertamente — É sempre um prazer estar entre vocês, porém agora preciso me retirar! — reverenciei meu pai e minha mãe — Meu rei. Minha rainha.
Mantive meu sorriso até sair do salão e o desfiz assim que alcancei o corredor. Robin seguia-me de perto, sem iniciar qualquer diálogo, mesmo que agora estivéssemos sozinhos; ele respeitava meus raros momentos de silêncio e esse era um dos motivos que me faziam amá-lo.
Atravessamos um passadiço de pedra enquanto seguíamos para outra ala do palácio, em direção aos meus aposentos. Parei por um momento, sentindo o ar frio entrar por meu nariz e tocar minha pele. O outono caíra sobre Astana há pouco tempo, mas parecia trazer consigo o inverno; a décima hora ainda se aproximava e o sol começava a se pôr.
Naquela noite, após dispensar Robin e Arnora, e já estar enroscada na cama devidamente banhada e com as vestes de dormir, eu chorei. Chorei de raiva e não de tristeza, ou ao menos tentava convencer-me disso; enfiei a cabeça em meu travesseiro deixando que as lágrimas me sufocassem e minha tosse fosse abafada. Eu manteria minha dignidade durante o dia, diante dos olhos de todos, mas meu pesar pertencia à noite e seu silêncio solitário.
Estava com tanto ódio de Sten Fagerberg.
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Na manhã seguinte, fui acordada por Arnora, que abrira as cortinas de meu quarto e também as cortinas que estavam puxadas ao redor da minha cama. Encolhi-me entre as peles que me envolviam, sabia que o dia ainda não clareara, pois o sol começava a nascer mais tarde e se pôr mais cedo.
— O Jarl de Gráttberg está requisitando uma audiência com você — a serva falou, estendendo meu robe diante de mim — E a filha do Jarl de Nordurstjarna está com ele.
— Knud e Lísa? — perguntei, ainda um pouco atordoada por ter despertado de um sono profundo.
— Sim, Mia — ela sacudiu o robe que segurava, incentivando-me a levantar e colocá-lo sobre minhas finas vestes de dormir.
Lavei meu rosto com a água que havia na bacia ao lado da cama, como sempre fazia, e bochechei água com folhas de hortelã para refrescar meu hálito, enquanto Arnora fazia o possível para escovar meus cabelos.
— Eles estão na antecâmara? — recebi uma resposta afirmativa — E Robin serviu o desjejum?
— Sim, ele serviu assim que chegaram. O suficiente para três pessoas, e retirou-se logo em seguida.
Não era surpresa que ele tivesse saído tão rapidamente, pois Robin não gostava muito de Knud: considerava-o atrevido e faladeiro em demasia. Não poderia culpá-lo, até mesmo eu me irritava algumas vezes com o jeito expansivo demais do novo Jarl de Gráttberg.
Ao sair de meu quarto de dormir e entrar na antecâmara, observei Knud Haraldsson e Lísa Trygvesdóttir de pé, vestidos como se fossem sair para cavalgar. Avancei alguns passos e eles fizeram o mesmo, e logo estávamos nos abraçando calorosamente.
Nesse momento, senti que a parte de meu coração que havia endurecido finalmente era tocada e acalentada; o cheiro floral de Lísa e o de terra molhada de Knud pareciam fazê-los se tornarem a personificação de Astana.
— Eu senti... Senti falta de vocês — falei, sorrindo de olhos fechados.
Os braços de Lísa apertaram minha cintura e a risada de Knud soou na altura de meu ouvido.
— Estamos juntos agora, dróttning — ouvi sua voz murmurar.
Quando nos afastamos e sentamos à mesa, fizemos planos para o dia.
— Vamos pegar os cavalos e ir até o Dragão Vermelho — Knud decidiu, após engolir metade da comida em seu prato — Está anoitecendo cada vez mais cedo, então podemos pernoitar por lá.
— Será que haverão quartos disponíveis? — Lísa questionou.
— Estaremos com a princesa, Mia é nossa garantia de que irão arranjar quantos quartos forem necessários — ele riu e eu o lancei um olhar reprovador — De qualquer forma, estamos nos aproximando do inverno e não há mais tantos viajantes nas estradas em busca de estalagens. Teremos quartos confortáveis. Então, o que me dizem?
— Eu concordo — respondi, descascando um dos ovos — Será bom me mostrar um pouco para o povo, já que passei muitos anos longe. E gostaria de rever Ned e sua família no Dragão Vermelho.
Dragão Vermelho era uma estalagem localizada a quase um dia de distância de Konungr Staðr, exatamente em uma das estradas restauradas e por isso recebia muitos viajantes, principalmente durante a primavera e o verão. Seu dono era um homem de quase meia-idade chamado Ned Scarlet, filho de uma astaniana com um inglês; ele costumava contar que seu pai o dera o nome de "Edward", porém a mãe o chamava de "Edvard", a versão nórdica do nome. No fim, ambos o chamavam de "Ned" e o apelido pegou antes que ele fosse um homem feito.
Pedi que Knud e Lísa aguardassem-me aos portões da cidade, enquanto Robin pediria que os cavalariços preparassem Trovão e eu me vestisse com a ajuda de Arnora.
Trajando uma túnica azul, calças e botas de montaria, e um manto também azul bordado; tinha a espada e um açoite presos à cintura. Fiz meu caminho até sair do grande Kristalhöll e chegar em um dos pátios externos.
E qual não foi a surpresa que tive ao ver Jarl Jostein, marido de minha irmã, meu cunhado, ameaçar um dos jardineiros do palácio?
— Veja, desastrado! — Jostein gritava, com seus homens de armas ao redor. Certamente estivera treinando com eles — Veja o que fez, jardineiro! Derramou toda a água! Deveria ensinar-lhe uma lição!
O jardineiro, que reconheci como sendo Berg, um dos senhores mais amáveis que já conheci, parecia prestes a desmaiar.
— Perdão, dróttinn Jostein, perdão! Não foi minha intenção...
Jostein ergueu a mão e atingiu fortemente o rosto de Berg, fazendo-o cambalear. Sangue escorreu de seu nariz.
Aproximei-me de todos, com passos duros, e os homens de Jostein assumiram postura ereta ao me verem. Jostein pareceu surpreso, mas teve a ousadia de sorrir para mim como se tudo estivesse bem.
— Minha cunhad... — ele começou, mas eu o cortei.
— De joelhos — falei, friamente. Berg começou a se ajoelhar, trêmulo, acreditando que estava falando com ele. Pobre homem — Não você, Berg. Pode se retirar — disse, e em seguida encarei novamente Jostein — Você. De joelhos.
— Minha cunhada... — ele arregalou os olhos, ainda sem se ajoelhar.
Soltei o açoite de minha cintura, sem tirar os olhos dele.
— De. Joelhos — falei pausadamente, apontando com o açoite para seu peito e em seguida para o chão.
Parecendo visivelmente desgostoso, Jostein se ajoelhou.
Me aproximei, sentindo a ira aumentar a cada passo que eu dava em direção aquele homem. Quem ele pensava que era? Ele estava em meu palácio, não em suas terras. Aliás, até em suas terras ele não era soberano, pois meu pai era rei.
— Você agrediu um de meus servos. Disse que deveria lhe ensinar uma lição — repeti suas palavras, o encarando firmemente — Permita-me também lhe ensinar uma lição.
Estava ciente de que os homens juramentados à Jostein estavam no pátio, nos observando, mas nada era capaz de me intimidar. Erguendo o açoite, desferi um golpe rápido e forte. Ele foi ao chão, o sangue espirrou nas pedras; provavelmente ele não esperava que eu tivesse tanta força nos braços.
Seus soldados fizeram um movimento de se aproximarem, mas eu os apontei o açoite, sem nem olhá-los, e eles pararam. Reconheciam a autoridade que eu tinha e sabia que tinha, assim como sabia usá-la.
Jostein se ergueu, ofegante, porém, antes que ele se pusesse de pé, o encarei com toda fúria que conseguir reunir em meu olhar — que não era pouca, dada as circunstâncias. Lentamente, ele voltou a se colocar de joelhos.
— Escute bem, Jostein — comecei — Se eu somente suspeitar que destratou alguém, não apenas neste palácio, mas em toda Astana, você terá problemas comigo. Não se esqueça, você é casado com minha irmã, mas eu sou a herdeira do trono. Me deve obediência. Estamos entendidos? — questionei, ainda o encarando de cima.
— Sim, dróttning, minha senhora — ele engasgou, o sangue ainda jorrando de seu lábio.
— Ótimo — lancei um olhar aos homens ao redor, para que entendessem que o aviso servia para eles também — Espero que todos tenham compreendido.
Virei-me, saindo do pátio em direção aos estábulos, deixando Jostein para trás, de joelhos.
⚜️HÁVAMÁL (Os Ditos de Hár): é um dos poemas incluídos na Edda Poética, uma colecção de poemas em nórdico antigo preservados inicialmente no manuscrito medieval islandês Codex Regius, do século XIII. Os seus versos são atribuídos a Odin;
⚜️Sobre os "sobrenomes" nórdicos: Haraldsson, Birgersson... os sobrenomes sempre significam "filho de" (–sson) ou "filha de" (–dóttir). Por exemplo, Haraldsson significa "filho de Harald"; Henriksdóttir significa "filha de Henrik";
⚜️Jarl: significa "guerreiro" e/ou "nobre". Era, nas línguas nórdicas, um título usado para designar o governador de uma região relativamente grande. Como foi um termo utilizado até meados do século XIII, optei por usá-lo. Seu plural em nórdico antigo era jarlar, porém escolhi usar "jarls" para melhor entendimento;
⚜️" ... in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti (...): "... em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo;
⚜️"(...) a décima hora ainda se aproximava e o sol começava a se pôr.": a décima hora era o equivalente à quatro horas da tarde (16:00 horas);
⚜️Dróttning: pode significar "Senhora", "Princesa", ou "Rainha". Um título respeitoso para uma mulher da nobreza;
⚜️Dróttinn: equivalente masculino de Dróttning, pode significar "Senhor"/"Príncipe"/"Rei", um título respeitoso para homens nobres.
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