04. Uma Amizade Inesperada
"O que for feito será dito da mesma forma."
— Grettir's Saga
FAZIAM DOIS ANOS DESDE MINHA CHEGADA EM SAMANTIA, era o início do verão, o que significava alegria em demasia, fartura, e muita dança e música. Durante o pico do verão o sol quase não se põe aqui nas terras do Norte e o dia praticamente dura para sempre, deixando todos mais esperançosos e vigorosos.
O verão era minha época preferida do ano, pois ficava ao ar livre quase todos os dias praticando a arte das espadas. Geralmente era Skarde que me treinava, e algumas vezes praticava com Lars Iversson — um homem quase três anos mais velho que eu, que fora sagrado cavaleiro pouco antes de ser mandado junto de minha comitiva para Samantia. Seus olhos eram castanhos em tom escuro, assim como seus cabelos que iam até a altura da nuca; era calmo, paciente em geral e centrado em tudo o que fazia, e eu apreciava sua companhia como a de um amigo querido.
Foi nesse verão que rei Sverre Fagerberg recebeu vários cavalos jovens e fortes de presente, e, como todo rei, independente do quão bom e competente fosse, gostava de exibir o que possuía. Sendo assim, todos foram convidados a verem os belos garanhões serem apresentados. Estava parada ao lado de Fjölnir, ao lado esquerdo do rei, pois éramos seus convidados de honra, e Sten ao seu lado direito; Estrid Matsdóttir estava junto ao seu pai, um Jarl de confiança do rei samantiano, e outras duas jovens encontravam-se segurando em seus braços de forma amigável.
Sempre gostei de cavalos, por isso admirei cada corcel que fora apresentado. O vento soprava agradavelmente, foi bom que nesse dia meus cabelos estavam presos em tranças, assim os fios não ficariam bagunçados ou cobririam meu rosto.
Observei os animais, que eram conduzidos por cavalariços, tinham várias pelagens diferentes; o cinzento com manchas brancas parecia ser o mais dócil, o marrom tinha uma aparência esguia e veloz; entretanto, aquele que mais atraiu minha atenção foi um grande e forte cavalo negro. Ele parecia não aceitar ser domado como os outros e lutava contra o cavalariço que segurava suas rédeas, não sossegando nem mesmo quando um segundo cavalariço se aproximou para ajudar.
— Controlem este animal! — rei Sverre ordenou.
O alazão relinchou quando puxaram suas rédeas com força; não haviam ganhado a confiança do animal, por isso ele se rebelava, ainda mais já sendo temperamental por natureza, pelo que podia notar. Já tinha visto casos assim antes, principalmente por ter aprendido a cavalgar bem cedo.
— Esperem! — mal dei-me conta de que havia gritado — Dróttinn Sverre, permite que eu me aproxime? Gostaria de tentar algo.
Ele pareceu curioso com meu pedido, mas deu sua permissão. Senti Jarl Fjölnir tocar meu braço de leve, como se para alertar-me a ter cuidado, e mantive meus passos lentos enquanto me aproximava do cavalo sem fazer contato visual; ambos cavalariços permaneciam em seus lugares, certamente para intervir se o animal se agitasse ainda mais, e senti seus olhares sobre mim.
— Hæ, sætt dýr — murmurei, tocando o pescoço do cavalo — Róaðu þig, elskan...
Esperei um pouco, observando se meu toque seria aceito; quando ficou claro que ele não apresentaria sinal de incômodo, comecei a acariciar sua crina e pescoço.
— Róaðu þig, elskan — repeti, e o cavalo bateu as duas patas dianteiras no chão, já bem mais calmo. As rédeas foram passadas para mim — Posso montar em você, amigo? Você deixa?
Como esperado o cavalo não respondeu, porém não se agitou quando coloquei o pé no estribo e icei-me sobre a cela, endireitando a postura. Os cavalariços se afastaram para dar espaço; rei Sverre riu, sendo acompanhado pelos outros, enquanto eu fazia o animal dar uma volta, obedecendo aos meus comandos.
Toquei o pescoço do cavalo novamente, fazendo um breve carinho em agradecimento por sua obediência.
— Você será um bom amigo, não? — falei baixo, ainda com a mão em seu pescoço.
— Nem mesmo um animal rebelde resistiu ao belo sorriso da princesa de Astana! — um dos Jarls samantianos que estavam ali gritou, fazendo risos surgirem novamente.
Sverre Fagerberg veio até mim, calmamente, observando-me com certo interesse, e parou ao lado, também tocando o pescoço do animal; parecia pensativo e mantive-me em silêncio, assim como ele.
— Este é seu — falou, surpreendendo-me — Um presente do rei de Samantia à princesa de Astana, este cavalo é forte e digno de uma futura rainha.
— Ele é meu? — abri um sorriso — Tem certeza que quer dá-lo a mim?
— Sim, e espero que aceite — o monarca sorriu, fazendo com que os olhos escuros se estreitassem, assim como acontecia com os de Sten — Acho que ele não aceitará ser a montaria de mais ninguém além de você. Parece decidido como um trovão ao soar.
— Trovão... — murmurei — Esse é um bom nome.
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Academias eram os nomes dos lugares onde os filhos de camponeses e comerciantes iam aprender Letras e Números, além de também Artes, Astronomia e Medicina, e várias outras coisas se assim escolhessem. Antes que meu pai e minha mãe se casassem, seus reinos (Asteria e Gralana) que viriam a dar origem à Astana, já possuíam Academias para que todos tivessem acesso ao conhecimento. Nós, do norte de Stór Eyja, éramos os que mais investíamos em Academias atualmente. Pelo que via, Samantia também apoiava suas Academias, já Carmago não sabia dizer, pois há mais de 100 anos não tínhamos boas relações, mas era provável que continuassem a mantê-las, já que o conhecimento era algo de toda nossa Grande Ilha, desde nosso contato com os romanos.
Infelizmente, como já constatara assim que cheguei em Samantia, apesar das Academias serem mantidas, eram muito poucas em minha opinião, e ainda havia muito o que precisava ser melhorado, principalmente na área de Medicina — algo que não deveria acontecer, já que Samantia possuía textos medicinais raros, adquiridos pelos romanos no passado, e seu acervo sobre o assunto era rico. Mesmo ensinando algumas pessoas quando andava pela cidade, procurei questionar disfarçadamente príncipe Sten e o próprio rei Sverre sobre a manutenção das Academias e sobre a desigualdade que rondava o reino. No fim, a única coisa que pude perceber era que a maioria dos Jarls não sentiam vontade de gastar parte de seu ouro e sua prata para ao menos requintarem as Academias já existentes; e o rei, por mais que fosse um bom homem, não iria arcar sozinho com as despesas necessárias.
Sentada na cama com o cenho franzido, deixei que meu olhar caísse sobre um dos baús que continham meus pertences. Eu tinha muitas joias feitas de rubis e ametistas, pois as minas se localizavam totalmente no território de Astana.
Uma ideia surgiu em minha mente. Se os Jarls samantianos e o rei não iriam ajudar as Academias, eu mesma poderia fazer isso! Custaria-me todas as joias, mas teria consequências boas e talvez não fosse considerado uma afronta, e sim uma doação. Uma demonstração de boa vontade de Astana para com Samantia.
Levantei-me da cama em um salto, indo até o baú e, sentando no chão diante dele, comecei a separar as joias em alguns sacos de veludo que tinha. Fjölnir me encontrou assim que terminei com o último saco, e encarou-me com certa surpresa.
— O que está fazendo, minha menina? — perguntou, franzindo levemente as sobrancelhas.
— Ninguém quer ajudar as Academias samantianas, então eu pensei...
— Que pudesse ajudar — o Jarl completou, olhando os sacos amarrados ao meu redor — São suas joias?
— Sim — assenti — Queria mandá-las para as Academias que mais precisassem. Poderia me ajudar?
— Hm... — ele pegou um dos sacos, pensativo, em seguida olhou para mim e sorriu — Providenciarei para que nossos cavaleiros mais rápidos levem para cada uma delas, com os cumprimentos da princesa de Astana.
E assim foi feito.
Na semana seguinte só faltavam gritar meu nome ao me verem quando saía pelas ruas, algo que deixava-me um pouco desconfortável; afinal, eu não era nada em Samantia, quem deveria ter feito o que fiz era o rei ou seus Jarls. Ainda assim, estava feliz por ter ajudado o pouco que pude aquele reino.
Recebi uma carta de meus pais dizendo o quanto estavam orgulhosos de minha ação, e senti a saudade atingir-me novamente no peito. Sempre que recebia alguma carta vinda de Astana, vontade de voltar para meu lar.
Foi nessa época, em meio minhas ajudas às Academias e a falta que sentia de meu próprio reino, que o príncipe de Samantia se aproximou ainda mais de mim. Já éramos bons amigos, porém, admito, queria que fôssemos mais do que isso. Essa vontade se realizou quando Sten tomou meus lábios debaixo de um céu estrelado, em uma de nossas escapadas noturnas do castelo.
E, a partir desse momento, juramos que ficaríamos juntos. Ele seria meu rei e eu seria sua rainha, no futuro. Agarramo-nos a essa promessa feita.
Eu agarrei-me a essa promessa.
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— Dróttning, minha senhora, não posso cobrar da princesa de Astana! — a voz da mulher estava incrédula.
Mesmo assim, pus cinco moedas de ouro em suas mãos, com gentileza.
— Então esse será nosso segredo — sorri, e em seguida mordi o pão quentinho que havia saído do forno. Era recheado com manteiga derretida e queijo - Como vão as coisas, senhora? - perguntei.
— Vão bem, na medida do possível, dróttning — ela respondeu — Mas sua presença ajuda e alegra a todos nós.
Suas palavras me deixaram feliz.
Faziam agora sete anos que eu estava vivendo em Samantia, e, apesar de sentir muitas saudades de Astana, sentia que esses anos foram bem aproveitados em questão de aprendizado e amizades. Tinha agora 22 anos, quase 23, e já era uma mulher feita, muito havia feito e experimentado, e em muitas coisas me aventurado.
Terminando de saborear o pão quente, comecei a andar por ali, cumprimentando os trabalhadores; alguns davam-me flores e ofereciam-me frutas, agradecendo por ter ajudado algum conhecido ou familiar que estava doente ou em necessidade. O vento soprava mais frio, por isso mantinha o capuz do manto vermelho erguido, e ainda assim me reconheciam.
Algumas crianças passaram por mim, correndo e rindo, e acenaram me chamando.
—A princesa do inverno! — elas chamaram — Princesa do inverno!
Esse foi o apelido pelo qual eu fiquei conhecida ali.
Caminhei de volta ao castelo, calmamente, sentindo o vento bater em meu rosto e corpo, agitando minha capa. Estávamos em meio ao outono, faltava pouco para o inverno chegar, trazendo neve e também meu vigésimo terceiro aniversário.
Jarl Fjölnir Leifsson vinha ao meu encontro assim que pisei no pátio interno do castelo.
— Dróttning, mensagens de Astana chegaram — ele falou — Seu pai nos chama de volta para casa.
Olá, leitores!
Aqui vão algumas observações:
⚜️Hæ, sætt dýr: "Ei, animal bonito";
⚜️Róaðu þig, elskan: "Acalme-se, querido";
⚜️Jarl: significa "guerreiro" e/ou "nobre". Era, nas línguas nórdicas, um título usado para designar o governador de uma região relativamente grande. Como foi um termo utilizado até meados do século XIII, optei por usá-lo. Seu plural em nórdico antigo era jarlar, porém escolhi usar "jarls" para melhor entendimento;
⚜️Dróttning: pode significar "Senhora", "Princesa", ou "Rainha". Um título respeitoso para uma mulher da nobreza;
⚜️Dróttinn: equivalente masculino de Dróttning, pode significar "Senhor"/"Príncipe"/"Rei", um título respeitoso para homens nobres.
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