02. Samantia
"Apenas ele sabe,
aquele que vagou por diversos lugares
e tem viajado para longe,
qual é o pensamento
que impulsiona todo homem;
é inteligente aquele que sabe disso."
— HÁVAMÁL (Os Ditos de Hár)
HAVIAM DUAS ILHAS LOCALIZADAS NO MAR entre o Reino da Noruega e a Islândia: Stór Eyja, a grande ilha, e Litla Eyja, a pequena ilha.
Enquanto Litla Eyja era formada apenas por um reino, em Stór Eyja três reinos dividiam espaço em suas amplas terras atualmente: Astana (composta por Asteria e Gralana, que se uniram com o casamentos de meus pais), Samantia, e Carmago, que era o maior em extensão territorial. Apesar de Stór Eyja estar localizada na região nórdica e seus habitantes dividirem a mesma origem, cultura e idioma dos povos que quatrocentos anos atrás ficaram conhecidos como Vikings e Bárbaros, há muito tempo os nomes nativos dos reinos foram esquecidos, e passaram a ser chamados por nomes latinizados, por conta do contato com o Império Romano que se deu por volta de 104 d.C.
Por volta de 104 d.C., o imperador Caesar Nerva Trajanus decidiu promover um novo ataque à Germânia, como uma espécie de vingança pela Batalha de Teutoburg, que ocorrera 95 anos antes, onde três legiões romanas foram arrasadas, destruindo de vez qualquer pretensão de conquista do Império Romano sobre a Germânia.
Já estando estabelecidos na região centro-sul da Grã-Bretanha (chamada Britannia, em latim), os romanos seguiram em direção nordeste pelo mar, chegando em Stór Eyja que começava a expandir suas relações comerciais com as terras continentais além da Noruega, Suécia e Dinamarca (pois já mantinha relações com essas três). A intenção era dominar Stór Eyja, conseguindo escravos e guerreiros (que também os romanos consideravam bárbaros), e ter uma posição estratégica para cercar a Germânia e futuramente realizar um ataque por mar e por terra.
Porém, pela força os romanos não conseguiram dominar a grande ilha. Os quatro reis e seus respectivos reinos em Stór Eyja tinham pacto de paz e amizade, e se uniram contra os invasores; eles não tinham as técnicas militares avançadas do Império Romano, mas tinham a ferocidade do norte em suas veias, além do conhecimento geográfico de toda a ilha — o que era uma grande vantagem.
Os romanos foram forçados a fazer um acordo.
Em troca de passagem segura pela ilha, além de mantimentos, os romanos ofereceram aos quatro reis estratégias e técnicas militares, conhecimento, e muito ouro. Assim teve início o contato mais "amigável" entre o Império Romano e Stór Eyja, pela troca de conhecimento sobre matemática, administração, e construção (principalmente de estradas e casas), que foram aperfeiçoados pelos povos da grande ilha conforme os anos foram passando.
A partir da ilha, os romanos atacaram a Germânia pelo mar, enquanto outras legiões atacavam por terra; era sabido que um ataque por terra e outro por mar iria desestabilizar a união das tribos germânicas, afinal: um líder da tribo do norte não iria querer se unir ao oeste enquanto suas terras eram invadidas e seu povo morto.
Assim, com a ajuda de Stór Eyja, os romanos interceptaram os germânicos por duas frentes, estraçalhando seu exército. Os romanos, entretanto, não se estabeleceram na Germânia, esse ataque fora apenas uma uma vingança contra a derrota que tiveram há tempos; eles retornaram à Britannia, onde começavam a enfrentar certa resistência dos celtas.
Por conta da ajuda dos reis de Stór Eyja aos romanos contra a Germânia, passou a haver certa hostilidade entre os quatro reis e os germânicos, porém nada preocupante, apenas alguns conflitos que foram facilmente repelidos pelos reis, e fez com que a Germânia nunca mais se levantasse contra nossa ilha, até agora.
Conforme os séculos foram passando, Stór Eyja foi evoluído, se abrindo cada vez mais, pelo comércio, para vários lugares do mundo e com isso adquirindo cada vez mais conhecimento. Os quatro reinos assumiram nomes latinizados, pelos quais são conhecidos: Asteria, Carmago, Gralana e Samantia.
O Reino de Asteria era governado pelos Talvi, linhagem de meu pai, e também se tornou um reino militar, porém mesclavam as estratégias romanas com a ferocidade nórdica. Asteria tinha em seu território parte das Montanhas Brancas, e nessa parte estavam as grandes minas de rubi, que se tornou a pedra símbolo do reino, e seus reis usavam em seus anéis de monarca uma única pedra de rubi. Os Talvi de Asteria tinham traços que os faziam ficar marcados na memória de todos que os conheciam: os cabelos espessos e negros (raro entre os nórdicos possuir cabelos tão escuros), e olhos de uma mistura de azul e cinza que sempre eram comparados ao aço polido; os cabelos negros e os olhos cinzentos foram características dos Talvi que eu mesma herdei.
O Reino de Carmago era governado pelos Elddreki, e foi o reino que mais assumiu o perfil militar dos romanos. Conquistaram, antes do pacto de paz e amizade e antes da chegada dos romanos, um vasto território, o que fez de Carmago o maior dos quatro em extensão territorial. Infelizmente, há quase duzentos anos, os Elddreki foram depostos do trono por Orm Ormsson, um Jarl muito popular, e pelos longos anos que seguiram, Carmago, agora com reis da linhagem de Orm (que adotavam sempre o nome "Ormsson"), tentou sem sucesso invadir Gralana e Asteria, com interesse nas minas que ambos os reinos possuíam. Foi apenas com Svend II (avô de Ulstan I) que Carmago conseguiu tomar algumas regiões estratégicas de Asteria e Gralana. Após sua morte, seu filho, Skarde I (pai de Ulstan I), conseguiu manter os territórios conquistados. Porém, apenas por um tempo. Quando meu pai ascendeu ao trono de Asteria, assumiu uma postura incansável e feroz contra os invasores; casou com minha mãe, a recém-coroada Anna Vinter, rainha de Gralana (feita rainha após a morte do pai e do irmão pelas mãos dos homens de Carmago), e assim uniu Asteria e Gralana em apenas um reino: o jovem Reino de Astana. Henrik e Anna formaram uma grande força para expulsar Carmago de seus territórios; a grande riqueza de Gralana combinada com o militarismo de Asteria logo começou a virar a sorte em favor dos dois. Skarde I foi morto por Henrik I Talvi em batalha, e Ulstan I se tornou rei. Mais 8 longos anos foram necessários para que Carmago fosse expulso e a paz restaurada. Uma paz frágil, mas ainda sim uma paz.
O Reino de Gralana era governado pelos Vinter, linhagem de minha mãe, e possuía um exército apenas necessário para a defesa do território, e não se preocupava em investir muito em sua área militar, embora possuísse uma grande frota de navios; o foco de Gralana era o comércio e a busca pelo conhecimento. Foi o reino que mais se abriu para o exterior e terras distantes, o que foi bom, pois Gralana foi responsável por repassar todo o conhecimento que adquiria para o restante de Stór Eyja. Localizando-se ao lado de Asteria, também tinha parte das Montanhas Brancas em seu território, e nessa parte estavam as minas de ametista; assim como os reis de Asteria usavam rubis em seus anéis de monarca, os reis de Gralana usavam ametistas.
O Reino de Samantia era governado pelos Fagerberg, voltado para o comércio e para agricultura. Sendo o mais pacato e pacífico dos quatro reinos, possuía um exército para garantir a defesa de seu território, e possuía uma frota de navios ainda maior que a de Gralana.
Eu estava indo para Samantia.
Era primavera do ano de 1124, o que significava que a neve derretia lentamente e o sol voltava a brilhar no céu, trazendo finalmente o início de um clima agradável para toda Stór Eyja.
Ainda tinha 15 anos, faria 16 apenas no próximo inverno, e estava sendo enviada por meu pai, que cogitava a ideia de uma união política por meio de um casamento entre príncipe Sten Fagerberg, herdeiro do trono de Samantia, e eu, visto que os laços de amizade entre os reinos de Stór Eyja estavam frágeis desde que Carmago rompera a paz há duzentos anos.
Gostaria de saber se Sverre, rei de Samantia e pai de Sten, desejava esse casamento ou até que ponto o desejava, pois o matrimônio de um príncipe herdeiro era algo a ser tratado com cautela; sendo também uma herdeira, sabia exatamente os problemas que uma união errada acarretaria, que poderiam ir desde a perda de aliados importantes à uma guerra interna, e até mesmo resultar na perda de um trono. Também sabia que, apesar de seu desejo em reaproximar-se de Samantia, meu pai procurava pretendentes para mim no exterior: Noruega e Dinamarca com certeza; França, pois minha falecida avó materna era filha de um barão francês, então haveria familiaridade — uma pena, já que de todos os idiomas que dominava, o francês era o que mais soava rude em meu sotaque nórdico.
De qualquer forma, não me importava muito com quem iria me casar, pois eu seria a rainha de Astana. Entretanto, tinha minhas próprias opiniões sobre isso e pensava ser melhor me casar com o filho de algum Jarl astaniano; isto fortaleceria nosso reino internamente. Talvez pudesse me casar com Knud Haraldsson, filho do Jarl de Gráttberg, ou com Vidar Valdasson, filho do Jarl de Sjóleið, que tinha olhos castanhos e contava ótimas estórias quando queria. Porém, se me casasse com Vidar, precisaríamos de uma dispensa, já que ele era meu primo em segundo grau.
E era com orgulho que eu afirmava que merecia o melhor pretendente que fosse possível encontrar e o que trouxesse as maiores vantagens, pois minha educação, além de superior a de todas as princesas, também era superior a de príncipes; afinal, a maioria dos príncipes nasceram em palácios e castelos, e cresceram com tutores para as artes militares, e eu nasci e cresci entre batalhas: vira mortes, vira viúvas e crianças chorando, vira fogo, e aprendera estratégias ao mesmo tempo em que aprendera a costurar.
Era fluente em grego, latim, alemão, inglês e francês, além das variações nórdicas; era versada em Aritmética, Astronomia, Escrita e História. Aprendi a costurar e bordar (ótimas atividades para distrair-se), a dançar e tocar harpa. Era excelente amazona (modéstia à parte, mas duvido que alguém soubesse cavalgar melhor do que eu) e caçadora (amava falcoaria).
Aos 15 anos, eu era — como minha avó paterna gostava de dizer — uma prodígio.
Não era muito de meu feitio pensar tanto em minhas qualidades dessa forma, embora fosse consciente delas, porém, mesmo que tentasse evitar, estava ansiosa ao pensar como seria minha estadia em Samantia; encarava como uma aventura, e apertava as saias de meu vestido com a expectativa.
Os longos tecidos se veludo e couro que envolviam a longa carruagem mantinha seu interior protegido do vento frio, mas por várias vezes eu os afastava para olhar o lado de fora. Jarl Fjölnir Leifsson acompanhava-me, distraído enquanto lia algo no códice que tinha em mãos. Fjölnir era o Jarl de Rúbínnámur; um homem alto, com cabelos já grisalhos e tranquilos olhos verdes, sua expressão quase sempre séria poderia passar a impressão de maldade, mas ele era um homem justo e inteligente.
— Se continuar torcendo as mãos assim, irá estragar o veludo de seu vestido, dróttning — Fjölnir comentou, sem desviar os olhos de sua leitura.
Alisei as saias, sentindo o tecido macio. O vestido era de um tom rico de azul escuro com bordados em prata; normalmente preferia vestes em tons rubros, pois vermelho era a cor que mais gostava, porém agora trajava-me de forma a representar Astana. O azul era de Asteria, já que suas cores eram azul e negro, e o prata era de Gralana, que as cores eram prata e púrpura. Astana não possuía um símbolo próprio para o brasão oficial, então nossos estandartes eram um campo azul escuro onde o falcão de Asteria e o cervo de Gralana dividiam espaço.
Finalmente havíamos entrado na capital de Samantia, a cidade portuária cujo nome era Höfnalvöru, e muitos homens, mulheres e crianças corriam para as estradas tentando se aproximar de nossa comitiva. Mais uma vez coloquei a cabeça para o lado de fora, agora acenando, sorridente, ao encarar os samantianos que acenavam e gritavam cumprimentos.
Paramos diante dos portões do castelo não muito tempo depois, e Fjölnir desceu primeiro, estendendo a mão para auxiliar-me. Hesitei por um momento, sentindo as mãos geladas pelo nervosismo, pois este lugar seria minha morada até que meu pai chamasse-me de volta para o meu lar.
Segurei a mão do Jarl firmemente, descendo em seguida.
Com um sorriso, passei os olhos pelas pessoas ali, com certeza Jarls samantianos e suas esposas, que se reuniram na capital para minha recepção; o homem que supus ser o rei Sverre Fagerberg — por conta do diadema em sua testa — se aproximou de mim.
— Seja bem-vinda à Samantia, dróttning Artemisia — ele cumprimentou, com um sorriso agradável — É um prazer recebê-la aqui.
— E é um prazer estar aqui, dróttinn Sverre. Estou honrada em conhecê-lo — retribui suas palavras gentis, satisfeita por minha voz não falhar.
— Gostaria de apresentar-lhe minha esposa e rainha, Guðrún Álafardóttir — gesticulou para a mulher atrás de si, que ofereceu-me um sorriso doce — E meu filho e herdeiro, Sten — dessa vez indicou o jovem que estava ao lado de sua rainha.
Sverre não era muito alto, mas era forte e vigoroso para a idade; tinha cabelos grisalhos que usava longos, caindo pelos ombros, e brilhantes olhos castanhos. Já Guðrún Álafardóttir devia ser uns dez anos mais nova que o marido, pois seus cabelos ainda eram completamente escuros, exceto por alguns poucos fios, e ela era esguia como uma lança. Príncipe Sten possuía mais de seu pai do que de sua mãe, com olhos castanhos escuros brilhantes e porte forte, parecendo ter minha altura.
Fiz uma reverência à rainha, e deixei que o príncipe beijasse minha mão. Ele não parecia muito satisfeito em estar ali, e eu não soube que julgamento fazer à primeira vista.
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As primeiras semanas que passei em Samantia foram agradáveis, embora sentisse muita falta de Astana, de meus pais, minha irmã e de meus amigos. Focando em meus estudos medicinais e em meus passeios pelas ruas, comecei a perceber que apesar do reino ser próspero, havia certa desigualdade: os camponeses samantianos eram completamente maltrapilhos quando comparados aos astanianos, por isso estranhei. Nem mesmo haviam Academias suficientes em Samantia!
Quis fazer algo por eles, mas minha autoridade era pouca ali, e eu não podia arriscar ofender rei Sverre. Por isso, limitei-me a ir toda a semana visitar as pessoas que se encontravam doentes ou feridas, e as tratava e curava usando meus conhecimentos. Isso era algo que eu gostava de fazer, além de ser vantajoso até mesmo para mim, pois poderia por em prática o que estudara.
Todos ficavam tão gratos, tão emocionados, que eu sentia como se uma mão apertasse meu coração. Me ofereciam flores como agradecimento, e entre eles me sentia feliz.
Princesa do inverno, eles me chamavam, enquanto sorriam, dizendo que meus olhos eram belos e brilhantes como os cristais formados pelo gelo no inverno. Eu ria com prazer, e agradecia.
Geralmente caminhava pelas ruas sem guardas, algumas vezes com somente um guarda astaniano ao meu lado, para não intimidar as pessoas. Não carregava minha espada, apenas a adaga que meu pai me dera em meu décimo quinto aniversário. Ficava presa em minha cintura, e em nada parecia destoar de meus vestidos, pois sua bainha de couro era delicada.
Depois de um tempo, escolhi alguns dos camponeses e comecei a treiná-los, afinal, não sabia ao certo quanto tempo demoraria até que meu pai me chamasse de volta à Astana, e não queria deixá-los desamparados quando isso ocorresse. Portanto, passei adiante meus conhecimentos medicinais, para que tratassem uns dos outros.
Talvez eu pudesse ajudar a melhorar oficialmente essa situação para o povo samantiano; poderia falar com o rei ou com o príncipe, tentar convencê-los a dedicarem mais atenção às Academias e incentivarem seus Jarls a fazerem o mesmo. Não iria esquecer disso, iria dar um jeito independente do tempo que levasse.
⚜️HÁVAMÁL (Os Ditos de Hár): é um dos poemas incluídos na Edda Poética, uma colecção de poemas em nórdico antigo preservados inicialmente no manuscrito medieval islandês Codex Regius, do século XIII. Os seus versos são atribuídos a Odin.
⚜️Stór Eyja e Litla Eyja: respectivamente "Grande Ilha" e "Pequena Ilha".
⚜️"(...) Porém, se me casasse com Vidar, precisaríamos de uma dispensa, já que ele era meu primo em segundo grau. (...)": Os casamentos entre primos de primeiro e segundo graus foram então proibidos no Concílio de Agde em 506 d.C., embora dispensas continuassem a ser concedidas. No século XI, com a adoção do chamado método do direito canônico para calcular a consanguinidade, essas proscrições foram estendidas até mesmo aos primos de sexto grau, inclusive por casamento. Mas devido às muitas dificuldades resultantes em saber quem era parente de quem, eles foram relaxados de volta a primos de terceiro grau no Quarto Concílio de Latrão em 1215 d.C..
⚜️Jarl: significa "guerreiro" e/ou "nobre". Era, nas línguas nórdicas, um título usado para designar o governador de uma região relativamente grande. Como foi um termo utilizado até meados do século XIII, optei por usá-lo. Seu plural em nórdico antigo era jarlar, porém escolhi usar "jarls" para melhor entendimento.
⚜️Dróttning: pode significar "Senhora", "Princesa", ou "Rainha". Um título respeitoso para uma mulher da nobreza.
⚜️Dróttinn: equivalente masculino de Dróttning, pode significar "Senhor"/"Príncipe"/"Rei", um título respeitoso para homens nobres.
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