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Capítulo 5° - Um soberano justo

Miyamoto, humano - (2 a partir do ponto em que ele faz 16) Anos antes da Queda da Cruz do Primeiro



Aos 9 anos

— Ei, cabeça de fogo, levanta - Miyamoto, de pé a frente do garoto com palmas e joelhos tocando o solo. Árvores erguiam-se ao redor e a manhã entrava através de espaços estreitados por folhas e galhos. - Provavelmente já se foram nossas chances de participar na escolha do jogo.

Os olhos escuros do menino encontraram os dele. Pálpebras erguidas, íris atrás de uma película úmida e três linhas enfeitando onde a testa tocara a terra. Liquido rubro começou a iluminar as marcas e escorrer ferida abaixo.

Miyamoto suspirou. Se agachou e estendeu uma mão.

— Venha, não vai ter ninguém com um apelido não muito ruim se ficar aí - disse, um sorriso de canto tomando a boca. - E se for futebol eu estou de saco cheio do mesmo time e vou te escalar no meu.

A mão do menino encontrou a dele, apertou e a usou como apoio para levantar. Seguiram caminho.


Aos 12 anos

Miyamoto tinha pais adotivos e uma história. A mãe fora expulsa da cidade de Musashi e se arrastou com ele até a vila não nomeada onde morreu. Fim. O semblante do garoto tensionara quando foi contado. Aprendera a ler e escrever aos cinco anos, atravessava toda a floresta desde os sete e aos dez ensinava as outras crianças.

— Por que?

Ela era uma amante que engravidou e foi descoberta pela esposa.

— Mas minha mãe era casada?

Não, o casal de elfos mestiços, Jânio e Aria, com pálpebras semicerradas e o olhar voltado para baixo, a altura dos joelhos de Miyamoyo, disseram.

— Então o único que fez alguma coisa errada foi meu pai e depois sua esposa. Vamos levar isso ao Shogun - Shogun, como aprendera aos oito, era a palavra que usavam em Musashi para ''lorde'' embora em outros tempos fosse o substituto de ''rei''.

O olhar de Aria, rubro, encontrou o dele. Um fungar escapou-lhe do nariz e palma caiu no ombro de Miyamoto.

— Seu pai é o Shogun.

Miyamoto piscou, abriu e fechou a boca. Mas ele é o ''rei'', a representação da justiça para seu povo, não é possível... cessou a respiração, o peito e face tensos, observando o rosto redondo marcado por íris vampiras e orelhas élficas de Aria, e ao próprio filho...

— Não deveriam deixar alguém assim ser o Shogun! - falou aos pais adotivos, timbre trêmulo e lágrimas subindo aos olhos, e correu.



— Saia perdedor e tente aprender uma ou duas coisas pra usar em sua próxima partida - Miyamoto, entrando no lado esquerdo da clareira seguido de mais quatro pirralhos. - E não se preocupe, derrotarei o time do Marcão e vingarei essa sua bunda suja.

Valmir ficou imóvel à frente dos calçados fazendo o papel de gol. Bochechas infladas e punhos agarrando vigorosamente as laterais do short azul empapado de terra.

O restante do time dele atravessava rumo a borda da clareira.

— Não - Valmir, com olhar subindo a face do humano Miyamoto, a cauda lupina balançando vigorosamente. - Vou mais uma vez!

Miyamoto deu um passo à frente e outro. Ombros para trás, peito estufado e pescoço esticando a cabeça adiante.

— Sim, mas não agora - rosto a quatro centímetros do coberto por um curta camada de pelagem marrom de Valmir. A respiração quente deslizando-lhe a face e o hálito de peixe e pão tocando a do licantropo. - Ficarei grato em jogar uma partida contra você assim que derrotar os dois times que antecedem a sua volta.

Os lábios de Valmir subiram um tanto e expuseram presas, luz refletiu na película de saliva cobrindo-as.

— Quem te fez o líder? - o licantropo, a voz quase um rosnido. - Saia, eu vou ir de novo e de novo até eu...

A orelha canina do menino lobo foi puxada para a esquerda e baixo. Um ganido escapou da boca dele e os lábios do humano se aproximaram da outra.

— Escuta aqui seu merdinha - em um tom enérgico. - Estava aqui quando as regras foram decididas, diferente de mim e de Ed. Como na porra do sistema parlamentar élfico, a maioria chegou a uma decisão justa e ela vai ser respeitada, entendeu?

O soltou. Valmir encontrou o solo.

— Agora anda e vai esperar sua vez, não vai ter graça se eu não puder jogar com você depois - Miyamoto, e o estendeu uma mão.


Aos 14 anos

A vampira acenou negativamente.

— Já estamos melhor do que poderiamos esperar - ela, passando as anotações para a frente. - Não temos como angariar mais fundos só dependendo de terceiros.

Miyamoto bateu na mesa com o punho. Tinha uma licença de mercador e aventureiro de rank seis e viajara para Semiramis por dez dias.

— Já pensou em plantar? Gado? Parar de depender tanto de revenda e começar a ser produtor?

Megan soltou uma breve risada.

— Eu não sou a chefe da vila, nem mesmo uma das vozes mais altas. - apoiou a bochecha no punho. - Por que não começa? Não vão te impedir de ter um jardim ou um curral.

Miyamoto suspirou e balançou a cabeça a esquerda. Estava sentado na cadeira de frente a Megan, lateralizado, um braço sobre a mesa e outro no apoio para costas.

— Esse lugar não vai crescer se um idiota sozinho plantar um pouco e criar uns poucos animais.

— Não precisa crescer, sério. A vila está bem do jeito que está - os lábios da vampira torceram um sorriso. - Se bem que mais feras na floresta fosse bom. Mais aventureiros viriam e eu poderia arranjar alguém. Cansei dos babacas daqui.

Miyamoto riu.

— Pensei que fosse amiga de quase todos, menos da Claudia e do Aroldo.

O dedo indicador de Megan o apontou.

— Eu odeiooo esses dois e só eles. Mas... hurr... como dizer... eu queria que tivesse dado certo com os outros e não ter dado... - o tom decaiu quase a um sussurro. - Doí, eram legais e ... acho que eu é quem ferrei com tudo. - soltou um suspiro. - Então arranja monstros para a floresta, assim teremos mais aventureiros de todo canto e um dia chegará alguém super especial para mim, muahahaha! Meu plano soa bem melhor que o seu!

Deu um peteleco no dedo dela.

— Não, acho que você fica melhor como tia.

A boca dela abriu em um ''o'' dramático e então levantou e cruzou a borda redonda da mesa.

— Seu merdinha! - o agarrou a cabeça, rindo e despenteou-lhe os fios negros.


Aos 15 anos

— Quieto! A vila não será nomeada, não vamos abrir uma plantação em meio a floresta e nenhuma construção será feita além da área que já as tem! Um dia...!

— Ela morreu! Seja lá como, ela não vai voltar trezentos anos depois, porra! - Miyamoto explodiu, pondo-se de encontro ao estrado de pedra no meio da via circular. Era manhã e uma dúzia de homens e mulheres se reunira para tomar as decisões da vila não nomeada. - A única Semiramis que existe hoje é a porra de uma cidade que, olha só, não ficou esperando alguém voltar para começar a crescer e virar a quinta metropole da porra do continente!

O rosto de Roswald enrubesceu e foi marcado por uma veia na têmpora.

— Heresia! Um insulto à grande heroína!

— Ela está morta! É um insulto a um grande cadáver!

Fitaram-se com íris semicerradas e semblantes tensos. Da velha Florisbela ao oni Erick com braços do tamanho de toras de madeira e vestindo o avental com ''beije o balconista'' escrito, encaravam silenciosamente.

— A decisão já foi tomada - o vampiro Roswald, por entre dentes, e desatou a andar para fora do palanque.



O som da porta arranhando o assoalho cruzou a pequena residência. As pálpebras subiram e o lençol foi atirado para o chão. Passos, dois. Suaves e lentos.

Aria estava na casa de uma amiga, o fizera várias vezes desde a morte de Jânio. Ela, e ninguém da vila entraria a essa hora, tão cuidadosamente.

Pôs-se de pé. O baque contra o chão ecoou breve e baixo. O ritmo das pisadas intrusas aumentaram, a distância ia de cinco metros a três e dois e um. Miyamoto correu para a janela, um duro arrepio forçando as pálpebras erguidas ao limite e manchando-o a pele com suor frio. Descalço, e vestindo uma camisa de tecido grosso e cueca, escancarou a dupla portinhola de madeira. A entrada do aposento as costas foi aberta. Tinha o primeiro pé no batente do retângulo e um vento frio o atravessava.

Fitou para trás. Um corpo robusto e a silhueta de um machado. Saltou para fora, árvores e gramas trinta passos a fren...

O toque do aço veio gélido e desceu-o sobre garganta. Queimou, superficial. Carmesim marcou lâmina e ar. Miyamoto encontrou o solo com punhos e joelhos, boca aberta e uma longa e aguda eletricidade percorrendo-o cima abaixo. Se mova!

Rolou para esquerda e de novo, o metal da espada enterrou-se na terra. Um agudo chiado de dor o percorreu. A lâmina tocara o ombro. Da janela outro homem pulou seguido de mais um.

O sangue começou a deslizar pescoço e braço abaixo. O que já estava do lado de fora era esguio e alto com orelhas élficas e olhos negros de onis, os outros dois de estatura mediana e porte atlético. Um com íris rubras de vampiros e o outro com a face tomada por curta pelagem cinza.

Continuou a se mover. Os pés deslizaram, mãos arranharam areia, tronco se erguendo e rosto fitando a casa do outro lado da rua.

— Criminosos! - gritou. Mais dois passos, viro a esquerda e corro vila adent... Fogo explodiu. A frente, no limiar entre terra e chão da via e beijando a parede da residência do garoto. Miyamoto praguejou, os olhos fecharam em um espasmo e pequenas manchas brilhantes dançaram diante das pálpebras. Não pare! Girou para direita e disparou. Voltou a pôr as íris a enxergar. Árvores, e breu e o piscar incandescente dado pelo fogo.

Eles seguiram atrás. Sobre raízes, caminhos estreitos e irregularidades no solo.

Miyamoto fez curvas, pulou sobre poços de terra moles e pedras escorregadias. Os cortes empapando-o com o líquido rubro e um tremor contorcendo-se timidamente pelo corpo.

Despencou, o queixo acertou violentamente a grama, um talho se abriu no local. Quente. O grito se espremeu pela garganta e saiu em um frágil ''ugh''. Ouviu correntes raspando em solo e pés marchando em lama. Piscou devagar, a pedra adiante turva e a respiração feita pela boca. O quê...? As mãos empurraram o chão, sangue pingou. Virou a cabeça esquerda e direita. Silhuetas de grama, pedra, terra e troncos.

Os despistei...? Estava em uma clareira, a frente de uma elevação íngreme de terra com uma grande rocha lisa no ponto adiante, e um braço de distância, do rosto de Miyamoto.

As correntes tilintaram mais alto, os pés pisaram com maior vigor. Uma gota de lama gélida o tocou e o frio o percorreu longo e duro. Fitou a si, a areia e o semicírculo de terreno mais baixo onde estava.

Mas o solo era firme. E só há árvores e grama e pedras e vento. Então as botas de um dos perseguidores pisou clareira adentro. O vampiro...

Começou a forçar as pernas e tronco acima. Lento, o sujeito cruzou a distância em três rápidas passadas. Foi erguido pelo couro cabeludo, lágrimas subindo aos olhos e descendo, mãos indo até o punho do algoz e pernas debatendo debilmente contra ar.

— Roswald manda lembranças - o vampiro, uma lâmina pousou na garganta de Miyamoto. Fria como a morte, como a lama que o atingiu e não existia em lugar algum para ser vista.

O ruído dos elos de aço e do marchar sobre terra molhada tomaram o ambiente.

E por um momento a algazarra sonora pareceu parafrasear ''Aceita?''.


Aos 16 anos

— Não era isso que eu queria.

O debater da mulher cessou. Tirou a mão do buraco rubro e ocupado pelos cilindros rosados das entranhas. Pôs-se de pé, lentamente, sangue manchando-lhe o quimono negro... quem era aquela?

As correntes haviam parado, as palavras do livro cruzaram-no a cabeça de novo, mas pôde sentir a onde colocar mais e menos energia mágica, quantas vezes e a ordem. Estou perto. Poderia erguer a magia ''casa de boneca'' agora, os ressuscitados produziriam sua própria energia e mesmo vampiros e elfos não seriam capazes de diferenciá-los dos vivos contanto que não os controlasse.

Saiu da casa, o sol tocava o calçamento e as ruas eram tomadas por ventos frios. Silêncio. Dois cadáveres andavam pela via, o restante, inertes, ocupavam as residências. Alimentados pela força do humano apenas seis podiam ter consciência, três se quisesse-os desempenhando funções que exigissem esforço muscular. Mesmo só o pedaço patético de consciência que conseguiu ser puxado da morte.

Andou. Íris indo de um lado ao outro. Portas e janelas fechadas, o jardim de Florisbela tomado por ervas daninhas e o bar com mesas para fora e vazias. Suor frio desceu-lhe o rosto. Gerson, Marcão, Nina, Megan... mortos e outros mortos.

Correu, abriu a porta da casa de paredes rabiscadas com um escarcéu de nomes e corações. Analuiza era uma das que estavam vivas, certo? Ela e mais dez que ele fazia recepcionar viajantes. Escolhidas porquê tremiam sob sua visão, tinham lágrimas a encher os olhos quando ameaçadas e obedeciam com pressa.

Ela estava sobre o sofá. Braços esticados as laterais e pernas abertas com joelhos virados na direção um do outro. Boquiaberta, pálida e com pálpebras completamente erguidas.

Miyamoto engoliu em seco. Foi para a outra casa e então a outra e a seguinte. Jeferson, Claus, Vera...

Todos... já matei todos?

Parou na entrada da vila. Arfando, suor marcando a pele e umedecendo o traje. São todos zumbis?

Por que eu...? Cerrou os dentes. Depois dos três que Roswald contratou para matá-lo, matou o próprio e outro e outro. Havia um mar de cacos brilhando em meio a um breu infindável, o via quando assassinava. O livro o mostrava e ensinava o seu conteúdo e pedia por mais sacrifícios. Era frio e os pedaços, cacos, mostravam cenas cada vez mais claras... como desenhos realistas se movendo numa tela, de pessoas fazendo pães a lutando em meio a milhares, morrendo e nascendo.

A cada morte estava mais perto dos cacos e queria chegar até eles. Uma vez que os tocasse, entoava o som de correntes raspando em pedra e pés marchando em lama do livro, seria ''deus''.

Olhou para os poços pontilhando o campo aberto que antecedia as primeiras residências.

Quem era a mulher que mais cedo matei, abrindo-a o estômago com as mãos e vendo os braços e pernas e voz ficarem mais e mais fracos... baixou as pálpebras.

Viera limitando o número de visitantes a vila, usando seis mortos sencientes e os habitantes que ainda não havia matado para os receber.

E hoje matei a última pessoa viva... cerrou os punhos, os músculos enrijeceram. Eu queria ser ''deus'' ... diante daqueles pedaços refletindo vidas em meio a breu parecia que nada mais existia e... a justiça existirá quando eu for deus, eu seria um soberano justo e... viu o rosto da mulher de mais cedo claramente com a imaginação. Fitou o sangue nas mãos e traje. As bordas da boca penderam para baixo, água encheu os olhos. Minha mãe... até ela eu...

Os joelhos tocaram o chão, olhos fitaram o solo marrom marcado por grama, curtos desníveis e estruturas circulares de tijolos. Pequenos rios quentes foram íris abaixo.

Não era isso que eu queria.

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