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Capítulo 21° - Que minha mãe e irmãs me receberiam com abraços e lágrimas


Jormungand Ouroboros, oni - 18 anos atrás



As demais crianças estavam a frente do corredor que cercava a residência principal, em meia lua e fitando um urso a diante da formação. A fera tinha pelagem branca, com pernas, uma curta área no entorno dos olhos e orelhas cobertas de negro. Ele surgira no cais dentro de um bote e Ingrid o comprara, do anão que o reivindicou, para presentear o chefe da família Ouroboros. A criatura comia carne e passava os dias farejando o gramado, dormindo ou sendo cercada pelos onis jovens.

— Ele não gostou disso — a oni, sentada com as costas contra o tronco alvo de uma árvore, um caderno aberto sobre as coxas e potes de tinta ao lado de ambas as pernas.

— Papai não gosta de nada tem um tempo — Dagmar, e colocou um dedo na folha em que a irmã rabiscava. — A proporção dos olhos tá esquisita.

— Oh... vou ajeitar — a mais jovem, apagou o olho esquerdo usando tinta branca. A brisa balançava-a os fios negros que desciam a altura do peitoral e as bordas do quimono alvo que vestia. — Acha que ele vai sair hoje?

— Nah. A idiota da Ingrid devia ter trazido um médico, não esse urso estranho.

Começou a fazer o contorno do olho. A irmãzona é uma boca suja. Dagmar se erguia a um metro e noventa nos seus dezessete anos, tinha músculos robustos, cabelos negros, olhos purpuras e chifres longos. Vestia uma camisa escura sem mangas e uma calça branca de tecido leve.

— Mamãe disse que não há médico que possa ajudar.

Dagmar fitou as íris lilases da irmã de soslaio, a boca em linha dura.

— Nossa mãe é uma idiota. Papai não é como os outros, ele pode sim sobreviver a isso.

Ele morreu naquela noite. A ponta dos chifres queimava e uma ida ao banheiro, para lavá-los, levou a oni à frente de um espelho. Foi quando recebeu a informação no escarlate que os marcavam as pontas. Não soube que o pai havia morrido até que o significado do rubro fosse posto em palavras na manhã seguinte. Quando Dagmar acordou, viu o vermelho nos chifres de sua irmã do meio e chorou.

Jormungand era o título dado ao chefe da família, entregue ao novo após a morte do atual, sendo a coroação o natural avermelhar da extremidade superior dos chifres de um jovem Ouroboros aleatório.

Ela tinha doze anos quando se tornou Jormungand, seu pai foi encontrado com a garganta cortada e uma folha dotada de um ''sinto muito'' na caligrafia dele. O enterro ocorreu ao meio dia, o corpo foi banhado em álcool e pétalas róseas das sakuras. A noite a família inteira reuniu-se à frente da residência principal para que a nova Jormungand lesse a promessa de proteger a Bélica e liderar os assuntos internos dos Ouroboros, sem nunca tomar partido em disputas externas ou abandonar o lar. A nova líder forçava as bordas dos lábios a não subirem. Sou a chefe agora, todos vão disputar minha companhia, poderei mandar em todo mundo e nunca mais vou ficar de fora das brincadeiras, hahaha! Só comerei sobremesas!

— Onde pensa que vai?

Parou no final do corredor externo, o cheiro do álcool ainda pairando no nariz. Virou a cabeça e fitou a figura escura de sua mãe. O semblante dela era duro, o queixo ligeiramente erguido e a mão em cima da outra e ambas sobre a barriga. A criança apontou a esquerda, o caminho que levava-a ao quarto.

— Tem muito a aprender —  a mulher. 

Semicerrou as pálpebras.

— Hum?

Foi levada ao salão central e foi instruída sob contabilidade até não poder compreender as palavras ditas ou manter os olhos abertos por mais de três segundos. Com o chegar da manhã foi levada para correr ao redor das plantações de uva e o ao redor do muro que cercava a área residencial.

— A tarde começará a estudar a história da Bélica.

Em uma semana andava com olheiras e a tropeçar regularmente, no fim de um mês começou a se acostumar a rotina. Após um ano descobriu que morreria por volta dos quarenta e cinco, perdendo gradualmente os sentidos sensoriais e as emoções após o trigésimo nono.

— Por que não conquistamos o resto do território, mamãe? — um dia, aos quinze anos, após três horas estudando os registros da família.

A oni sênior a fitou.

— Sabe a resposta — em tom austero, as íris deixando o registro de gastos da quinzena por ela durante três segundos.

— Mas se eu, se os outros antes de mim, são o...

— No dia em que seu pai morreu, fez uma promessa, não fez? — interrompendo a filha.

A oni cerrou os punhos e se levantou do tatame. Eu li umas palavras, foi tudo que fiz! Expirou audivelmente e deu um passo na direção dela.

— Mas mamãe...!

A adulta a encarou com suas íris tom de carvão, em silêncio, o rosto ainda voltado as contas e o pincel em posição sobre a folha onde fazia anotações. A criança engoliu em seco e olhou para baixo. Isso não está certo, eu não quero ficar aqui e apodrecer como meu pai! Ergueu a face.

— Eu sou a chefe, então eu decido!

— Se acha mesmo isso é uma tola maior do que imaginei — a matriarca, pondo o tronco ereto, largando o pincel e virando o rosto a criança. — Já esqueceu da sua lista de deveres, do porquê decidimos não intervir em nada além da segurança da Bélica ou como seus antepassados honraram suas obrigações? Não é uma situação em que você possa decidir, então não decidirá. É sozinha a honrada e agirá de acordo. Volte a seus estudos.

Os lábios da oni tencionaram e lágrimas subiram aos olhos.

— Agora — a mãe, tom gélido.

A menina sentou-se e encarou as letras na folha. Eu vou embora. Que toda essa família vá à merda. Eu não ligo. Fungou e esfregou a umidade para fora dos olhos.

A noite, no quarto que fora do pai, a brisa fresca entrando pela janela e a pedra de mana brilhando púrpura no suporte sobre o criado mudo, Sigrid entrou no quarto.

— Precisa de algo? — a oni sobre a cama, com um mapa acima das coxas.

— Não. Só queria dormir na cama grande hoje.

Sigrid era sua irmã mais nova. Mas é mais alta e musculosa que eu. Voltou ao mapa e a garota subiu e deitou no colchão redondo.

— Sig, eu quero chorar em voz alta — disse. Os punhos apertaram o papel entre os dedos e as pálpebras pressionaram os olhos. — Vá embora.

— Eu não me importo.

Se levantou.

— Vá.

A oni foi embora de casa assim que a irmã deixou o aposento.

— ⚔ —  ⚔ 

Quando chegou aos campos longos e dotados majoritariamente de grama de média a baixa estatura, com bosques ocasionais e veios de rios, vilas pequenas e medianas, sentiu o que significava a frase escrita acima da entrada da residência principal. ''Entre o céu e a terra, o único honrado''. Todos que encontrava, de feras a pessoas, eram mais fracos, lentos e, majoritariamente, burros que si.

Levou meio ano marcado por desesperos de estar perdida no meio do mato, de passear por aldeias, matar bestas e dormir ao relento antes de chegar a Semiramis. O lugar fedia a dejetos, as casas eram demasiadas próximas umas das outras, as ruas intercalavam-se entre ser percorridas vigorosamente e estar vazias. Os edifícios eram majoritariamente pedra, os olhares não demoravam-se nela apesar de ter chifres longos e três a cada cinco vendedores ambulantes faziam ofertas ao avistá-la.

Um pirralho tentara a arrancar sua bolsa de moedas antes que completasse uma hora na cidade. Ele foi despido de sua mão e deixado sangrando em um beco. O ruído no ar eram vozes, passos, carroças e o pisar dos animais as puxando.

A sul dali o boato sobre o mau de olhos púrpuras circulava. Um título indevido. Apenas desmembrara pessoas que tentaram roubá-la ou comprar briga, poupara até uma oni de pele vermelha por ela ser uma criança estúpida. Mas o boato fizera um homem caçá-la, um aventureiro de rank um. O primeiro que matei, supondo que nenhum dos que arranquei membros tenham morrido... o que soa pouco provável. Mas foi ele que me deu a primeira luta decente desde que saí de casa, me senti grata pela breve diversão.

''Jormungand é o único honrado sob o céu e acima da terra. Sua força cresce ao ponto em que danifica seu corpo mortal, privando-o dos cinco sentidos e emoções. Apenas quando superado essa perda se tornará a serpente que devorará o mundo e a si mesma. Dos restos de seu autoconsumo uma nova terra nascerá''.

Costumava ter pesadelos onde uma enorme cobra comia uma bola azul com manchas verdes e depois  essa serpente girava e começava a pôr a própria cauda para dentro e continuar até o torso rasgar e os olhos, olhos lilases, fecharem. Nessas noites abraçava Sigrid com força.

Baixou as pálpebras, a brisa quente de Semiramis a deslizava sobre a pele. Eu estava só mesmo depois de me tornar a Jormungand. Abriu os olhos. O topo das residências e lojas, a rua à frente do telhado em que estava e o cheiro de fezes mal encoberto com o de perfumes doces, carnes e pães. Esperava que viessem me buscar. Que uma horda de tios e primos me encontrariam nos dias em que vaguei perdida pelos campos... que minha mãe e irmãs me receberiam com abraços e lágrimas.

Soltou o ar pela boca. Devaneios bobos. Se pôs de pé, então desceu a via. Vagou pelas diferentes áreas da metrópole dos licantropos por dois anos, desceu a um dojo e ficou por um tempo discutindo filosofia com um velho humano. Conheceu um elfo negro alquimista e uma costureira, passou um período arrumando confusões com eles e com um licantropo que se uniu ao grupo mais tarde. Viajou ao extremo norte, depois visitou a cidade élfica, a dos anões e humanos. Passou por crateras, florestas, mar, cavernas, montanhas, vilas... fez teatro, música, estudou ciências, magia, história e geografia. Leu e escreveu histórias.

Matou, torturou e devorou gente. 

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