𝐎𝟓 ; 𝗰αpítulo 𝗰ınco
Eu joguei as camadas externas de roupas na cômoda gasta, meus dedos frios massageando o vão entre as sobrancelhas, respirando fundo, tentando afastar o cansaço que tomava meu corpo. Sentei-me na cama que dividia com minhas irmãs, os braços caídos ao redor do corpo, finalmente olhando para frente, sem pressa de fazer mais nada.
Franzi a testa, observando as violetas e as rosas pintadas por Feyre ao redor dos puxadores da gaveta de Elain, as chamas crepitantes que ela pintou em torno dos de Nestha, e as estrelas amarelas com um céu noturno que ela fez para si mesma. Mas, para mim... Eu não sabia o que Feyre realmente via quando olhava para mim. Talvez, fosse isso, uma escuridão envolta em confusão, cheia de cores misturadas até se tornarem um tom profundo e opaco. Abaixo disso, a tinta vermelha, que mais parecia sangue, formava arabescos estranhos e desconexos.
Quando comentei sobre as pinturas, Feyre ficou em silêncio por um longo tempo. Ninguém mencionou, ninguém falou sobre aquelas imagens, nem Elain, nem Nestha, nem mesmo eu. Mas eu precisava saber, então perguntei.
"Para mim, você é uma escuridão cheia de confusão, mas que, no fundo, bem distante, existe uma força que não sei descrever."
Na época, não percebi o quão simples eram aquelas palavras, ou como elas poderiam descrever uma vida. A minha vida. Aquela sensação confusa, mas tão cheia de algo que eu ainda não sabia o que era.
Mais uma vez, o silêncio me envolveu. Deixei o peso da noite atrás de mim e desci para baixo após poucas horas de sono, o corpo ainda pesado, mas a mente não parava.
═════════ ◈ ═════════
Jantamos o cervo naquela noite, e, embora eu achasse tolice desperdiçar, fiquei em silêncio enquanto as meninas se serviam mais de uma vez, até que finalmente declarei que era o bastante. Não me importava tanto com o excesso por elas, mas sim pelo que seria necessário guardar para o restante dos dias.
O dia seguinte seria preenchido pelo trabalho de preparar as partes restantes da corça para o consumo, cortando e salpicando o sal que precisávamos economizar. Depois, separaria as peles para levá-las ao mercado. Conhecia alguns mercadores que poderiam se interessar, mesmo sabendo que nenhum deles pagaria o que a pele realmente valia. Mas dinheiro era dinheiro, e não havia tempo, nem disposição, para enfrentar a longa e arriscada viagem até a cidade grande mais próxima em busca de uma oferta melhor. Não agora, não com minha perna ainda machucada.
Terminei de comer, lambendo os lábios secos para saborear os resquícios de gordura que cobriam minha boca. Minha língua deslizou pela pele ainda macia, mas áspera, antes que eu deixasse o garfo de pontas tortas na mesa. Era parte de um faqueiro tosco, resgatado por Vittório da ala dos criados enquanto os credores saqueavam a mansão. Nenhum de nossos talheres combinava, mas eram melhores do que usar os dedos. O faqueiro do dote da Senhora Archeron fora vendido há muito tempo, junto com tudo que um dia simbolizara o que éramos.
Minha mãe, altiva e fria para uns, alegre e deslumbrante para os que frequentavam nossa antiga propriedade, fora apaixonada por Vittório. A única pessoa que ela realmente amou e respeitou. Um amor decadente, que afundara junto com a fortuna que nos sustentava e o orgulho que ela ostentava. Um amor que, no fim, restou tão vazio quanto os talheres desiguais sobre a mesa.
Mas ela também amava de verdade as festas; tanto que não tinha tempo para nós, suas filhas, a não ser para contemplar como as habilidades de Nestha na dança, a doçura adorável de Elain e as promessas do talento de Feyre com desenho e pintura — ainda por desabrochar — poderiam garantir a cada uma um bom casamento. Para ela, éramos investimentos cuidadosamente cultivados, não vidas a serem realmente nutridas.
Se tivesse vivido tempo o bastante para ver a riqueza ruir, teria ficado arrasada. Talvez até mais que Nestha. Talvez o fato de ela ter morrido antes de tudo desmoronar tenha sido, no fim, um ato de misericórdia.
De qualquer forma, pelo menos restara uma filha que se dedicava a uma das atividades que ela mais desprezava: a caça. Selvageria, sangue... Irônico. Agora, essa selvageria sustentava as filhas de sangue Archeron, mantinha-as vivas quando nada mais parecia capaz de fazê-lo.
Do que fora sua vida de luxos e frivolidades, quase nada restava no chalé além da cama de pau-ferro que ela tanto amara e uma promessa que um dia eu fizera. Sempre que olhava por tempo demais para o horizonte, ponderando se não deveria simplesmente partir, caminhar sem rumo até desaparecer, essa promessa ressoava nos recônditos da minha mente.
Cuide delas. Não era um pedido para mantermos um laço, para ficarmos juntas. Era algo mais direto, quase imperativo: Proteja-as.
E eu prometi. Talvez jovem demais para entender o peso do que dizia, com apenas 19 anos, na tênue linha entre a juventude e a vida adulta. Prometi que ficaria com minhas irmãs, que as protegeria de tudo e de todos. Nestha, Elain e Feyre eram suas filhas de sangue, enquanto eu... Eu era apenas uma sombra de caridade que ela aceitara, uma solução para um ventre que lutava contra a infertilidade, uma esperança num momento de desespero.
Naquele instante, a Senhora Archeron não parecia se importar comigo, mas mesmo assim, a prioridade eram elas, sempre foram elas, nunca eu. Não era ressentimento, era apenas um fato. Mas agora, isso não importava mais.
Nesse mundo miserável, nesse lado da muralha protegido há séculos pelos Grão-Feéricos, onde nem sabíamos ao certo os nomes dos deuses que um dia governaram, promessas eram mais do que palavras. Uma promessa era uma lei, uma moeda de troca, uma garantia.
E havia momentos em que eu a odiava por ter me feito prometer isso. Talvez, delirante de febre, ela nem soubesse o peso do que estava exigindo. Ou talvez, nos últimos momentos, a morte tenha dado a ela uma clareza cruel sobre a verdadeira natureza de suas filhas e de seu marido: incapazes, inúteis diante da miséria. Talvez, naquele leito, ela tenha percebido que eu era a única que poderia manter o que restava da família de pé.
Respirei fundo, observando as chamas minguadas da lareira dançarem na lenha restante. O calor era fraco, mas suficiente para manter o frio afastado por enquanto. Deixei minha perna esquerda se estender para a frente, o incômodo do ferimento latejando levemente.
Virei o rosto para minhas irmãs. Como sempre, Nestha estava reclamando. Dessa vez, dos aldeões. Falava sobre como eles não tinham modos, traquejo social ou qualquer noção de como suas roupas baratas eram inferiores, mesmo fingindo que se tratavam de tecidos nobres como seda ou chiffon. Desde que havíamos perdido a fortuna, suas antigas amigas — as damas da sociedade — passaram a ignorá-las incontestavelmente. Ainda assim, ela e Elain agiam como se o círculo dos jovens aldeões fosse uma classe social menor, mas ainda digna de comentários mordazes.
Eu tomei um gole da xícara de água quente em minhas mãos. Nem chá podíamos pagar ultimamente, mas a bebida improvisada ainda assim ajudava a enganar o frio e o vazio. Ajustei minha posição, acomodando-me com certa dificuldade, e deixei a voz de Nestha preencher o ambiente, arrastando-me para a narrativa que eu sabia ser fútil, mas que servia para preencher o silêncio.
— Bem, eu disse a ele: "Se acha que pode simplesmente me pedir de modo tão indiferente, senhor, vou recusar!” — Nestha narrava com veemência, os olhos brilhando de indignação exagerada. — E sabe o que Tomas respondeu? — Seu tom teatral capturava toda a atenção de Elain que ouviam como se fosse a história mais fascinante do mundo, enquanto Feyre escondia sabiamente o olhar de escárnio.
Eu, por outro lado, apenas observei de longe. O mundo delas parecia tão distante do meu — cheio de queixas triviais e gestos de superioridade que eu não podia me permitir. Mesmo assim, fiquei, ouvindo em silêncio, porque, no fundo, elas ainda eram minhas irmãs. E, por mais inúteis que fossem às vezes, eu havia prometido protegê-las.
Franzi a testa ainda mais, olhando para Vittório, o pai das garotas. Ele parecia perdido em alguma memória nebulosa que o tomava. Sorria gentilmente para Elain, a única que realmente se esforçava para manter algum diálogo com ele. No entanto, o sorriso desapareceu quando ele notou o olhar vazio que lancei em sua direção.
— Tomas Mandray? — interrompi, voltando-me para Nestha. — O segundo filho do lenhador?
Os olhos de Nestha se estreitaram, frios e calculistas.
— Sim — respondeu ela, antes de se virar novamente para Elain e Feyre, descartando minha pergunta como irrelevante.
— O que ele quer? — perguntei, dessa vez olhando diretamente para Vittório. Era raro que eu me dirigisse a ele, mais raro ainda que houvesse qualquer emoção em minhas palavras ao fazê-lo. Não obtive resposta. Nenhuma reação, nenhum sinal de que ele sequer estava ouvindo.
Foi Elain quem respondeu, com um tom sonhador:
— Ele quer se casar com ela.
Minha boca se abriu em choque, e antes que pudesse responder, vi Nestha inclinar a cabeça de lado. Um movimento quase predatório, semelhante ao que eu já havia visto em feras que caçava. Às vezes, me perguntava se sua determinação inabalável poderia ter sido melhor aproveitada para sobreviver e prosperar, em vez de ficar tão fixada no status perdido.
— Algum problema, Elle? — disparou Nestha, transformando o apelido em um insulto.
Embora eu soubesse que era estúpido reagir às provocações, senti a resposta escapar dos meus lábios:
— Você não pode cortar lenha para nós, mas quer se casar com o filho de um lenhador?
Nestha empertigou os ombros, seus olhos brilhando com aquele desafio habitual.
— Achei que tudo o que você queria era nos ver fora desta casa — disse ela, carregando as palavras com desprezo. — Casar a mim, Elain e Feyre, para que tenha tempo para seus gloriosos assuntos de caça.
Ela lançou um olhar depreciativo para o arco e flecha próximo à porta. Ignorei o insulto, embora uma parte de mim quisesse enfiar uma flecha naquelas mãos delicadas. Talvez um dia ela percebesse o sacrifício que eu fizera — que fazia todos os dias.
— Acredite — repliquei, mantendo minha voz calma, mas firme — no dia em que quiser se casar com alguém, vou marchar até a casa dele e entregá-la. Mas você não vai se casar com Tomas.
As narinas de Nestha se dilataram levemente, e o sorriso que ela ofereceu era gélido e sarcástico.
— Não há nada que você possa fazer — retrucou ela, triunfante. — Claire Bladdor me disse hoje à tarde que Tomas vai me pedir em casamento a qualquer momento. E então, nunca mais vou precisar comer essas sobras de novo.
Ela acrescentou, com um sorriso que irradiava puro veneno:
— Pelo menos não preciso recorrer a me deitar em um buraco mofado, como um animal.
No mesmo instante, Vittório virou a cabeça em direção à sua cama, ao lado da lareira. Eu não precisava olhar para saber que ele tremia dentro daquele corpo frágil e covarde. Não era difícil imaginar. Nestha, por outro lado, não parecia ter noção de que sua provocação havia tocado em algo muito mais profundo.
Por um breve momento, fui tomada por uma lembrança. Uma vez — mesmo sem acreditar nos deuses —, eu orei. Não para um deus específico, mas para qualquer um que pudesse me ouvir, para que lavassem minha alma... da vergonha, do nojo. Para que apagassem as memórias que, mesmo depois de tanto tempo, ainda queimavam na minha mente como cicatrizes abertas. Para que aquilo também fosse arrancado das cabeças das minhas irmãs mais novas, se elas ainda guardassem resquícios do que haviam visto ou suspeitado.
Apertei os dentes, encarando Nestha. Não existiam deuses. Não para mim. Nunca houve salvadores, nunca houve misericórdia. Apenas o vazio de promessas não atendidas.
Jamais disse uma palavra contra Nestha sobre isso. Não por respeito, mas por culpa e nojo de mim mesma. E eu não começaria agora, mesmo que cada palavra dela tivesse sido como um soco direto no rosto. Mesmo que a menção daquela realidade me fizesse querer gritar, ou chorar, ou ceder ao ódio que ainda pulsava em mim. Não havia espaço para isso. Não mais.
Apoiei as palmas das mãos na mesa, encarando Nestha com uma calma controlada que me custava todo o meu autocontrole. Elain afastou a mão delicadamente, como se o sangue seco e a terra sob minhas unhas fossem, de alguma forma, sujá-la por osmose.
— A família de Tomas vive melhor que a nossa, e isso por muito pouco — argumentei, minha voz grave e firme, mas lutando contra um grunhido que quase escapava. — Você seria apenas mais uma boca para alimentar. Se ele não percebe isso, os pais dele certamente sabem.
Meus olhos cravaram nos dela, buscando uma reação que não veio. Mesmo diante da verdade nua e crua, Nestha parecia impenetrável. Tão indiferente quanto sempre. E, por mais que me consumisse, não era surpresa.
Tomas sabia disso. Já tínhamos nos esbarrado na floresta antes, e eu vi aquele brilho faminto nos olhos dele quando me viu carregando uma pilha de coelhos. Nunca havia matado outro ser humano, mas, naquele momento, uma pequena parte de mim se agitou, despertando algo em mim — uma necessidade de proteção. Lembrei-me do peso da faca na lateral do meu corpo e, desde então, evitei seguir pela trilha dele.
— Não podemos pagar um dote — continuei, a voz baixa. — Para nenhuma de vocês.
— Estamos apaixonadas — disse Nestha, com uma confiança desmedida, e Elain a acompanhou com um sorriso sonhador. Feyre me olhou com um entendimento silencioso. Quando foi que passaram a abandonar o sonho de aristocratas e começaram a se encantar por camponeses?
— Amor não alimenta barriga vazia — repliquei, tentando manter o olhar firme.
Como se fosse um golpe, Nestha saltou do banco.
— Você só está com ciúmes, porque nunca encontrará nada disso — disparou, com desdém.
— Ciúmes? — falei devagar, cavando fundo em mim para esconder o ódio que crescia. — Não temos nada para oferecer a eles. Nenhum dote, nem gado. Mesmo que Tomas queira se casar com você, você será apenas um fardo para ele. Você será a esposa submissa, a boazinha que ele vai dobrar até se tornar só um objeto para ele. Todas as noites, ele voltará para casa e seu único serviço será... ser usada por ele.
— O que você sabe? — sussurrou Nestha, com os olhos ardendo em raiva. — Você é só uma besta semisselvagem, com coragem para dar ordens dia e noite. Continue assim, Elle, e um dia, ninguém se lembrará de você. Ninguém se importará com o fato de que você sequer existiu.
Antes que eu pudesse emitir qualquer palavra, Nestha se afastou, sua raiva espalhando-se no ar, e Elain a seguiu, como um pássaro enjaulado, murmurando palavras doces e vazias. O som das batidas na porta do nosso quarto foi tão forte que a porcelana na mesa tremeu, como se o mundo ao nosso redor também estivesse à beira de ruir.
As palavras que Nestha lançou sobre mim não eram novas. Eu as conhecia bem, tão bem quanto as marcas que o tempo havia deixado em meu corpo. Elas estavam em sua boca, repetidas como uma canção amarga, porque da primeira vez, eu me encolhi sob o peso delas. E foi doloroso. Cortava-me de dentro para fora. Mas, com uma calma que me era familiar, tomei um gole da xícara lascada, o líquido amargo queimando minha garganta, e com um gesto simples, sinalizei para Feyre que se mantivesse distante. Ela me observava com uma cautela silenciosa, como se soubesse que aquele momento não era o seu lugar. Inteligente, soubera se afastar antes que eu fosse provocada demais. O banco de madeira sob Vittório rangia quando ele se moveu, como uma lembrança da fragilidade daquele lugar. Tomei outro gole, os olhos fixos na mesa, e então, com a voz firme, falei:
— Deveria dar juízo a ela.
Ele fitou, em silêncio, uma pequena marca de queimadura na mesa.
— O que posso fazer? Se é amor…
— Não pode ser amor, não da parte dele. Não com aquela família, com aquela linhagem suja. Vi-o passar pelas ruas da aldeia, observei o brilho em seus olhos. Ele quer algo de Nestha, mas não é seu coração que busca…
Ele me interrompeu, com uma expressão rara de vida nos olhos, quase como se um feixe de sol tivesse rompido a escuridão que o envolvia.
— Precisamos de esperança tanto quanto precisamos de pão e carne — disse ele, a voz grave e cheia de uma urgência que eu raramente via nele. — Precisamos de esperança, ou pereceremos. Deixe que ela tenha sua esperança, Elle. Deixe que ela sonhe com um mundo melhor. Um mundo onde talvez o amor, e não o desespero, seja o que a sustenta.
A xícara vazia tremeu contra a mesa, e, sem pensar, a golpeei de volta. Levantei-me abruptamente, os punhos cerrados, minha respiração pesada. Fechei os olhos, buscando um refúgio em minha mente — um lugar tranquilo, longe deste chalé, onde a caça fosse o único peso sobre os meus ombros e a paz reinasse como a noite sem fim. Mas, ao abrir os olhos, nada havia mudado. O chalé de dois quartos ainda estava ali, com suas paredes finas e ar gelado.
Olhei para Vittório, e embora meu olhar fosse sempre frio, vazio, como uma lâmina que jamais havia sido forjada, as palavras que saíram de minha boca cortaram o silêncio como um aço afiado. Não era ódio que me movia, mas algo mais profundo — uma verdade amarga e sem perdão:
— Um mundo melhor não existe. Não enquanto homens como ele, ou homens como você andarem por aqui.
═════════ ◈ ═════════
Se você leu até aqui, muito obrigada!
Curta e comente se gostou, isso significa o mundo para mim ♡
Gostaria de convidá-los a ler minha história original que estou publicando aos poucos aqui na plataforma wattpad, significaria muito para mim que a obra O Amuleto de Neva pudesse receber o mesmo amor das minhas outras fanfics. Obrigada !
𝗰ontınuα...
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro