𝟏𝐎 ; 𝗰αpítulo 𝗱ez
Inclinei meu corpo para trás, minha mão se movendo até a bolsa presa à sela de Deimos enquanto ele seguia seu caminho, afundando os cascos escuros na neve. Era um contraste interessante entre nós, como se minha alma sombria se misturasse à dele, uma criatura que parecia tão serena, tão imperturbável.
Minhas mãos vasculharam a bolsa até que encontrei uma maçã, parte das provisões que havia levado. Dei uma mordida generosa, buscando acalmar o desconforto no meu estômago. O sabor doce explodiu em minha boca, e eu abri os lábios novamente, pronta para mais, quando Deimos parou de repente, bufando e me encarando pelo canto dos olhos.
- O que foi? - perguntei, sem realmente esperar uma resposta.
Ele resmungou, exalando uma bruma branca que se espalhou pelo ar. Deimos, então, relinchou, claramente insatisfeito.
- Você quer a maçã? - balancei a fruta no ar, rindo baixinho ao ver seus olhos acompanhando o movimento. - Nos conhecemos há poucas horas e já está sendo exigente.
Curvada, deixei que ele tomasse a maçã das minhas mãos, com a paciência de quem já tinha tomado posse da situação. Enquanto ele saboreava a fruta, voltei meu olhar para trás, observando o corpo de Tomas com um sentimento de satisfação sombria.
Os braços, amarrados e arroxeados, estavam esticados como se os ossos estivessem prestes a se partir. A pele, antes viva e cheia de cor, agora estava pálida, marcada pela morte iminente. Seus olhos, abertos e vazios, fixavam o vazio, revelando a dor de uma agonia que se estendeu por horas. O frio implacável havia consumido seu corpo, corrompendo a carne e queimando a pele com o toque gelado da morte. Por uma eternidade, seus pulmões teriam sentido o corte do gelo, enquanto o sentimento de impotência e fraqueza se espalhava, arrancando-lhe a última força para lutar pela própria vida.
O restante do seu corpo não era mais do que um reflexo de sua desconstrução. O que antes fora uma forma reconhecível agora se perdia na imensidão do frio e da escuridão, uma memória desvanecendo-se na neve.
Uma minúscula parte de minha mente se contorcia com isso. Fui eu. Eu causei aquele sofrimento. Tomei a vida de Tomas Mandrey, não de forma rápida, não sem dor. Foi demorado, calculado, uma dor que se estendeu por cada segundo, cada movimento, cada instante planejado.
Desviei o olhar, apoiando-me em Deimos para descer. Um gemido baixo escapou de mim quando minha perna tocou o chão, mas logo me reergui, caminhando até o corpo imóvel. Abaixei-me, cortando a corda que ainda segurava suas pernas, permitindo que caíssem pesadamente no chão.
O tempo parecia suspenso. Um segundo... talvez um minuto. Observei o corpo com um olhar insensível, observando a marca do que causei. O sangue, vermelhíssimo, tomava a pele dele, como se fosse tinta, e deixava um rastro de sua agonia.
- Se houver um lugar de paz depois da morte... - murmurei, os olhos fixos nos olhos vazios de Tomas. Respirei profundamente, sentindo o peso da minha própria sentença, e continuei, a voz quase um sussurro: - Espero que você nunca o alcance.
Enrolei a corda em torno do braço, puxando Deimos para uma distância segura daquele cenário grotesco. Ainda um pouco distante, me senti mais aliviada, mas a dor na minha perna não se dissipada. O cavalo parou ao meu lado, atento, seus olhos fixos em algo à distância. Eu também voltei minha atenção para aquele ponto, ouvidos aguçados, esperando o que viria a seguir.
Eram risadas. Escandalosas. Fortes. Deimos relinchou, balançando a cabeça, e eu me aproximei dele. Como se ele já soubesse o que estava por vir, facilitou minha subida com um movimento tranquilo. Tomei a bolsa de couro maior com as mãos e puxei a capa que havia guardado para noites mais frias. Ao me envolver nela e cobrir a cabeça, sabia que qualquer um que me visse agora acreditaria estar diante de um homem.
O cavalo balançou o pescoço, movendo a crina ao vento, bufando de forma quase humana, como se pudesse falar comigo. O vendedor me dissera que ele era inteligente, astuto, rápido e forte. Tinha sido comprado e devolvido tantas vezes que, no final, o vendedor desistiu de vendê-lo e o isolou, afastando-o dos outros. Mas agora, Deimos parecia ser minha única companhia, e, enquanto ele me olhava, esperando um comando ou reação, eu soubera, sem dúvidas, que ele seria meu - e nunca mais precisaria ser devolvido.
Bati o pé em sua lombar, e Deimos começou a se mover, avançando devagar e silenciosamente sobre a neve macia, com a cabeça erguida entre as árvores. Puxei as rédeas, fazendo-o parar a uma distância segura.
Eram três homens, não pareciam uma ameaça, mas algo estava errado. Estavam tão profundamente na floresta, bêbados demais e desatentos, comendo coelho assado na fogueira, sem perceber minha presença. Tolos, provavelmente pedindo pela morte.
Balancei a cabeça e apertei as rédeas, preparando Deimos para nos afastarmos sem problemas, mas antes que eu pudesse seguir, vi algo à distância. Uma criança se aproximava dos homens. Não devia ter mais de oito ou nove anos. O encarei pela escuridão das árvores, envolta pelas sombras que me cercavam, como um demônio observando pecadores.
Não é problema meu, repeti para mim mesma, forçando as palavras a se enraizarem em minha mente.
Ainda assim, não desviei os olhos. Não quando um dos homens passou o cantil de bebida para a criança, que, com um brilho faminto nos olhos, aceitou sem hesitar. Eu podia ver aquilo, aquele mesmo brilho agonizante que via nos olhos delas, minhas irmãs. Era como um reflexo das minhas frustrações, das minhas dores, dos meus esforços.
O que essa criança estaria fazendo aqui, no meio de tudo isso? Escondida na neve, tão longe da vila e tão perto de problemas.
- Vamos, Deimos - murmurei, e deixei que o cavalo seguisse.
Vagarosamente, nos aproximamos, uma sombra emergindo da claridade da neve.
- Senhores - minha voz soou baixa e fria, cortante como gelo. - Não imaginava que ainda existissem homens interessados em crianças.
No início, vi o terror nos olhos deles, fascinados pela minha figura encapuzada na escuridão da floresta, talvez imaginando se eu fosse a própria morte. O garoto, por outro lado, tremia, mas não parecia tão assustado quanto os homens adultos.
- Ah... - Um deles se levantou, sorrindo. - Junte-se, você vai se interessar tanto quanto nós.
Ele falava com uma seriedade quase convincente. Minha boca se contorceu, exibindo os dentes em um rosnado baixo. O impulso foi imediato: minha mão encontrou a empunhadura da espada, o toque gélido das pedras vermelhas enviando um arrepio pelo meu corpo.
- As únicas coisas que me interessam agora são que você solte o garoto.
Bêbados e inconscientes do que estavam fazendo, os homens riram.
- E se não o fizer? O que vai fazer, nobre senhor?
Desci de Deimos com agilidade, permitindo que minha capa cobrisse meu corpo por completo. Enquanto acariciava a aljava presa ao cavalo, minha outra mão foi à cintura, onde as facas de caça e a espada estavam visíveis, desafiando-os com a minha presença.
Há muito, minha mente exausta lutava para manter algo bom dentro de mim. Rosnava e se debatendo contra o que estava bem diante de meus olhos. Por isso, permiti que algo terrível acontecesse comigo, deixei o perigo invadir minha casa, tocasse minhas irmãs. Eu poderia estar afundada na mais profunda depressão, já quase perdida, e ainda assim me negava a me tornar uma assassina. Eu não queria, não queria perder o que restava de humanidade em mim. Mas, já era tarde. A morte de Tomas ainda revirava algo dentro de mim, e esses homens despertavam algo ainda mais sombrio.
Criaturas boas não vivem o suficiente para espalhar sua bondade. A maldade chega, os ataca, toma sua liberdade, sua vida, suas forças. A maldade chega e mata, destruindo tudo - desde a raiz que tenta se manter intacta até as maçãs vermelhas que, aos poucos, apodrecem.
Pessoas boas não vivem o bastante, e pessoas más tampouco. Pois, em algum lugar do mundo, há alguém maior que terminará com tudo isso. E em algumas situações, sou eu que devo ser maior que tudo.
- Se não o fizerem, não temerei dizer que morrerão.
Um dos homens arrancou o cantil das mãos do pequeno garoto, que, apesar de tudo, encarava a cena com uma insatisfação silenciosa.
Eu, por outro lado, nada sentia. Apenas observava o homem bêbado, que tentava mais um gole da bebida barata. Seus olhos, carregados de uma fome insaciável e de uma maldade crua, eram fixos e vazios. O corpo estava coberto por roupas de couro gasto, e suas facas, enferrujadas, pareciam mais inúteis do que ameaçadoras. O rosto, embora esquelético, transparecia uma gordura repulsiva - não física, mas emocional, como se sua alma fosse tão dilacerada quanto sua aparência. Esse olhar faminto, eu bem o conhecia. Não era fome de comida, não era o estômago que rugia, era algo mais profundo, mais escuro: a maldade impregnada, refletida nos olhos, uma ânsia insaciável que não se saciaria nunca.
O vento oscilou ao nosso redor, fazendo a capa que me envolvia ondular no ar. O exterior de tecido grosso era negro como a noite, enquanto o forro de veludo vermelho parecia marcar o ar branco como sangue, cortando a neve com sua presença ameaçadora.
Os homens sorriram ao ver o movimento de minha capa, revelando meu corpo adornado pelas vestes de couro, que se ajustavam, evidenciando cada linha e contorno. Já não era mais a menina magricela de outrora; havia um poder sutil em minha postura, algo que, talvez, fosse mais tentador para eles do que o garoto.
- Isso vai ser divertido - murmurou um deles, dando um passo à frente.
Deimos, ao meu lado, bateu os cascos no chão com um estrondo, como se pudesse sentir a maldade que vinha em nossa direção.
Eu sorri.
Era um sorriso perigoso, algo que nunca me permitira exibir antes. Uma emoção escura e excitante que eu sempre tentara reprimir, mas que agora não conseguia mais conter. Passei a faca de caça de uma mão para a outra, sentindo o peso da lâmina com uma naturalidade que me surpreendeu. O cabo deslizou entre meus dedos, um reflexo, enquanto o segundo homem avançava, e o terceiro se apressava em segurar o garoto.
Uma lâmina enferrujada e desalinhada cortou o ar quando um dos homens tentou me atingir, mas me esquivei com facilidade. Bêbados e lentos, eles não possuíam a agilidade necessária para me pegar. Deslizei pelos pés no chão, balançando a capa ao meu redor, criando uma cortina de movimento que me ocultava por um instante. Em segundos, uma brecha se abriu, e o pescoço de um deles ficou exposto demais.
A pele ainda pulsava, viva, tremendo com a pressão da ameaça.
Minha faca se cravou com precisão, atravessando sua carne. O sangue explodiu no meu rosto, quente e espesso, quando a lâmina cortou de um lado ao outro, degolando-o. Ele engasgou com o líquido vermelho e borbulhante, antes de cair no chão, morto. Em um piscar de olhos, seu amigo se viu em uma situação semelhante, e logo o seguiu no destino sombrio.
Vermelho. A cor estava diante dos meus olhos, quente, escorrendo pelas minhas mãos.
Um murmúrio baixo, seguido por um fôlego ofegante, e logo o grito do garoto cortou o silêncio, quando foi jogado ao chão, perto dos corpos ainda quentes que se afundavam na neve. O homem restante, desesperado, correu para uma fuga impossível e tola. Com calma, tomei o arco em minhas mãos, guardando a faca de caça. Uma única flecha. Me demorei nos movimentos, estática, lenta, como se cada segundo tivesse se estendido em uma eternidade vazia. A pena da flecha roçou contra minha bochecha ao posicioná-la, e meus olhos focaram no alvo, que, a cada instante, diminuía até ser apenas um ponto negro na neblina.
Vermelho. Uma gota de sangue escorreu dos meus olhos, descendo até meu nariz e tocando meu lábio inferior. Quente. Ainda vivo. A sensação me trouxe de volta à realidade. A flecha disparou, cortando o ar com uma precisão mortal, ceifando mais uma vida. Uma vida que o mundo já não precisava.
Quando abaixei a arma e relaxei os músculos, aquela parte de mim se inquietou. Aquela minúscula parte que se revirava, formigava e sofria. Minha humanidade havia se esvaído, e agora restava apenas o vazio gelado da ausência dela.
Meu olhar se dirigiu ao garoto, que parecia tão pequeno diante de mim. Seus olhos, antes desinteressados, agora tremiam de medo. Pelo menos ele começava a entender o que o vermelho representava, a tinta que marcava meu corpo e me desenhava por completo: sangue e sombras. Agora, eu poderia finalmente compreender o que Feyre havia tentado me mostrar ao redor dos puxadores da minha gaveta.
- O que estava pensando quando se aproximou deles? - Minha voz saiu como um rosnado, baixa e perigosa.
Ele se encolheu, os ombros curvando-se para dentro como se tentasse se fazer desaparecer. Segurei seu braço com força, sacudindo-o, e repeti com mais força:
- O que estava pensando?!
- Nada... Eu só estava com fome - ele respondeu, ainda petrificado, os olhos fixos no sangue. O sangue que eu derramei.
O silêncio se estendeu entre nós, opressor. Até que um galho se partiu sob leves pés. Eu me virei rapidamente, os olhos se fixando no movimento. Uma figura desajeitada surgiu, apontando uma flecha diretamente para o meu rosto.
Sorri, sentindo o sangue ainda fresco em minhas bochechas.
- O dia está ficando cada vez melhor, certo?
═════════ ◈ ═════════
Se você leu até aqui, muito obrigada!
Curta e comente se gostou, isso significa o mundo para mim ♡
Gostaria de convidá-los a ler minha história original que estou publicando aos poucos aqui na plataforma wattpad, significaria muito para mim que a obra O Amuleto de Neva pudesse receber o mesmo amor das minhas outras fanfics. Obrigada !
𝗰ontınuα...
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro