𝐎𝟖 ; 𝗰αpítulo 𝗼ıto
Não tenho muitas lembranças daquele dia. Lembro-me de estar deitada na neve fria e imunda, que queimava minha pele, e de sentir alguém me carregar para dentro. As mãos delicadas de Nestha se agarraram em minhas costas, com certa dificuldade, mas fez. Nunca imaginei que Nestha faria algo por mim. Achei que, se pudesse, ela me deixaria morrer ali, na frente do chalé, como um dia ela disse. Eu morreria, e ninguém mais se lembraria do meu nome.
Mas, de algum modo, ela conseguiu me carregar para dentro, seu próprio temor da besta se entrelaçando com sua coragem. Após isso, minha memória se desfaz na névoa da escuridão.
Os pensamentos que se seguiram se entrelaçaram em um emaranhado de confusão, e mal sabia eu distinguir o que era real. Vi Feyre diante de mim, gelada como a morte, a pele pálida e marcada, a promessa ainda ecoando em minha mente, envolta em dúvidas, responsabilidades que se agigantavam. Eu vi a vida e vi a morte, mas o que realmente via, eu não sabia mais.
As memórias se dissipavam como névoa, vagas e desconexas. Lembro-me de mãos tentando retirar minhas vestes, a água fria que fazia meu corpo estremecer, os panos úmidos que se apegavam à minha pele febril. Remédios amargos invadiam minha boca, trazendo consigo uma amargura insuportável. As convulsões eram como ondas violentas, seguidas de tremores incontroláveis, e a tosse, que me rasgava a garganta, fazia o sangue pingar sobre o lençol. A dor, incessante, difamava minha perna, e o fogo que queimava meu quadril se espalhava, dia após dia, como se eu estivesse sendo consumida por dentro, devorada lentamente.
Às vezes, o choro suave de Elain chegava aos meus ouvidos, um som doce, mas carregado de desespero. Outras vezes, via o rosto de Nestha, seu semblante endurecido pela preocupação, a frieza escondendo o que ela não queria mostrar.
E então, finalmente, abro meus olhos. O tempo parece um véu em minha mente, indefinido e emaranhado, não sabendo quantos dias se passaram desde que sucumbi à dor. Minha língua se move, áspera e seca, mal conseguindo articular qualquer pensamento. Minha visão, outrora clara e atenta, agora se encontra turva, lutando para se ajustar, piscando em tentativas frustradas de clarear o mundo à minha frente. Mesmo assim, havia algo familiar, algo que eu podia perceber, apesar da névoa em minha mente. A textura suave do lençol contra minha pele, a maciez do colchão que me sustentava, o aroma de um ambiente recém-arrumado — tudo isso se misturava em meu ser. Apoiei-me nos braços, um chiado vindo de minha boca ao tentar mover-me, o som das minhas costelas estalando, e então percebi que não mais vestia as roupas rasgadas e sujas de antes, mas uma camisola branca, leve e suave. Algo que eu jamais teria escolhido, algo que não era meu.
Sentei-me com dificuldade, observando tudo ao meu redor. À distância, parecia um lugar completamente distinto. O quarto era grande, e o ar nele parecia denso com uma mistura de cores claras e escuras — preto e branco, como se a luz e a sombra dançassem de forma intencional. Móveis novos, elegantemente dispostos nos cantos, adornando o espaço com uma sofisticação que não conhecia. Tudo ali, desde a mobília até o ambiente em si, exalava riqueza, um luxo que se opunha à simplicidade do chalé.
A porta se abriu com um suspiro, e logo minha irmã entrou, passando por ela com uma leveza que eu mal reconheci. Elain não usava mais os trapos e vestidos desbotados de antes, mas sim uma peça que refletia uma elegância refinada. Observei cada detalhe, cada costura. O tecido que formava o busto era de um azul claro, tão suave ao toque quanto ao olhar, e as mangas caíam soltas sobre seus braços finos, deixando à vista a pele delicada de seus ombros. A saia se estendia até seus pés, feita de tule leve, onde flores eram bordadas com uma minúcia que só se encontra naquilo que é mais precioso. Uma visão de graça e riqueza que eu mal poderia acreditar, como se Elain fosse uma visão de outro mundo.
Ela carregava uma bacia de água nas mãos, e ao me ver sentada, um sobressalto percorreu seu corpo. Em um instante, Elain sorriu com alívio e gritou por Nestha, sua voz alta e urgente, fazendo-me questionar, por um momento, se não estava ainda perdida em um sonho febril. Mas então, a realidade se impôs, e eu percebi com clareza, pela forma como os sons se tornaram nítidos e pela pressão do peso no meu corpo, que estava acordada.
Nestha apareceu logo em seguida, com a calma habitual, mas de uma maneira que parecia distinta. Ela usava um vestido simples, sim, mas em sua simplicidade, era inegavelmente elegante. O azul escuro do tecido parecia feito para combinar com a intensidade de seus olhos. A saia reta moldava sua cintura estreita, descendendo até suas longas pernas com uma fluidez que parecia acompanhar cada movimento. As mangas longas cobriam seus braços, chegando aos pulsos, e os ombros permaneciam cobertos, deixando apenas um decote discreto, que realçava seu pescoço adornado por uma singela joia. Uma rainha sem trono, sem coroa, mas com a presença que poderia facilmente conquistar ambos.
A inquietação tomou conta de mim, e, ainda sentada, murmurei:
— O que está acontecendo?
Nenhuma das duas respondeu de imediato. Elas me observavam, mas seus olhares estavam mais fixos em minha perna, um gesto silencioso que denotava preocupação. Sem entender, segui a direção de seus olhos. Minhas mãos tremeram quando toquei a camisola e a ergui, na tentativa de ver o que havia acontecido, mas antes que pudesse olhar com clareza, Elain puxou meu braço, impedindo que eu visse.
— Por que não nos contou que estava machucada? — Elain perguntou, visivelmente exasperada, sua voz carregada de frustração.
— O quê? — Franzi a testa, atônita, sem entender.
— Você! — Elain cruzou os braços de maneira impositiva. — Caiu sobre lascas de madeira enquanto cortava lenha, parecia prestes a desmaiar de exaustão. E mesmo assim, no dia seguinte, tentou sair para caçar.
Olhei para Nestha, que permanecia em silêncio, sua expressão congelada em um semblante impassível. Mas algo nos seus olhos me disse que havia mais em jogo ali. Algo que ela não dizia, algo que eu ainda não compreendia.
— Onde está Feyre? — Perguntei, a voz quase falhando, minha mente ainda nublada pela confusão e dor.
— Oh, Elle, Feyre foi tão sortuda... — Elain respondeu, com um sorriso leve. — Ela foi morar com uma tia distante, para cuidar dela. Lembra-se dela? Tia Ripleigh.
Fiquei em silêncio, encarando Elain, minha mente tentando processar suas palavras. Ela não estava brincando, não havia a leveza da ironia ou uma piada oculta. O sorriso em seus lábios não era falso, mas havia algo errado. Algo naquelas palavras soava distante e distante demais para ser real.
Eu esperava que ela fosse se retratar, que dissesse que tudo não passava de uma brincadeira cruel. Mas Elain não recuou. Ela continuou falando sobre a suposta tia Ripleigh, com detalhes, como se fosse uma história simples e rotineira. Cada palavra fazia minha cabeça doer ainda mais, como se um peso crescente estivesse se acumulando dentro de mim.
— É melhor deixá-la agora, Elain — Foi a voz de Nestha que cortou o fluxo de palavras de Elain, finalmente quebrando o silêncio prolongado. — Vá. Eu ficarei com ela por um momento.
Elain saiu com a mesma naturalidade de sempre, como se a atitude de Nestha fosse algo completamente comum, acenando com a cabeça e oferecendo um sorriso suave antes de deixar a bacia com água no pequeno armário ao lado da enorme cama. A porta se fechou atrás dela com um som abafado, e o ambiente voltou a se encher do silêncio pesado.
— Você também se lembra, não é mesmo? — Nestha disse, sua voz mais baixa, quase como um sussurro, como se estivesse testando a profundidade daquilo que compartilhávamos.
Assenti, e parecia que, ao ver minha confirmação, um peso invisível havia sido retirado de seus ombros. Sua postura se relaxou ligeiramente, mas não havia alegria, apenas uma compreensão mútua, silenciosa, que se estabelecia entre nós.
— O que aconteceu com Elain? — Perguntei, apertando o lençol entre meus dedos, como se isso pudesse ajudar a segurar as respostas que ainda me escapavam. — E a casa? Tudo isso... esses vestidos, tecidos... Me diga como.
Era uma ordem clara, e pela primeira vez, Nestha não se opôs. Sem hesitar, ela me contou tudo, cada pedaço de uma história dolorosa e incrivelmente distante do que eu lembrava. Com uma calma quase sombria, ela revelou como Vittório e Elain, que antes estavam desolados e perdidos, de repente se viraram para uma realidade que nem parecia a mesma. Como, com o tempo, se convenceram de que Feyre havia recebido uma chance única — uma chance que os tiraria da miséria. Ela moraria com uma tia rica o suficiente para que a fome jamais fosse uma preocupação. Contou como a ausência de lembranças de todos os outros ao seu redor a fizera duvidar de sua própria sanidade, e, em meio à sua angústia, como revirou a casa em busca das minhas economias, desesperada para comprar os remédios necessários.
Nestha explicou que fiquei desacordada por um mês inteiro, e os curandeiros, ao examinarem meu estado, disseram que as chances eram mínimas devido à gravidade da febre e do ferimento que não queria sarar. No entanto, foi quando um desconhecido apareceu à porta, com uma proposta que Vittório hesitou em aceitar — uma oferta boa demais para ser verdade, mas o estranho insistiu. Ao fim, Vittório cedeu, e logo eles estavam com um baú cheio de ouro, o suficiente para finalmente se mudarem e começarem uma nova vida. Claro, o dinheiro ainda era pouco e a riqueza não chegou de uma vez, mas estava sendo o suficiente para mantê-los fora da miséria.
Ouvi tudo isso sem conseguir respirar completamente, como se cada palavra fosse uma lâmina fria cortando minhas próprias lembranças.
Levantei-me com dificuldade, tropeçando nas minhas próprias pernas enquanto mancava até o armário. Não sabia se ali havia roupas adequadas para mim, nem se Nestha se importaria em me ajudar, mas, ainda assim, abri a porta. Ao olhar para dentro, meus olhos foram tomados por vestidos, mas, no meio de tantos tecidos delicados, estavam as roupas que um dia eu usaria como caçadora: camisetas de linho, suaves e leves, casacos e túnicas resistentes, cintos e botas, todas novas, intocadas pelo desgaste do tempo. Nada ali parecia velho, nada parecia usado. Nestha se importou, e isso me fez parar por um momento, absorvendo a enormidade do gesto.
Ela não sabia, pensei. Não sabia se eu voltaria a acordar, se ainda respiraria no próximo mês. E, mesmo assim, deixou tudo preparado para quando eu voltasse... Como se esperasse, como se soubesse, de alguma forma, que eu retornaria. Mas não havia garantias. Eu não havia pedido, nem prometido nada, mas ela estava ali, tão certa de que eu voltaria, que preparou tudo para o momento em que meus olhos se abrissem de novo.
— Onde está meu arco? — Perguntei, apoiando-me na porta aberta, a voz rouca.
Ela ficou em silêncio por um instante antes de responder, como se já soubesse o que viria.
— Não adianta, Elle, eu já tentei.
— Tentou?
— Contratei aquela mercenária para me levar até a muralha, mas não achei a passagem... É impossível.
Puxei uma camiseta de linho, sentindo as mãos trêmulas enquanto tentava tirar a camisola. Mas, antes que pudesse continuar, Nestha me deteve, tocando meu braço com uma suavidade que contrastava com sua firmeza.
— Você ficou deitada por um mês. Não vai conseguir andar se for agora.
Cobri os olhos com a mão, respirando fundo. A realidade se impôs de maneira cruel, e a dor nas minhas pernas, embora ausente por um momento, logo se anunciaria. Se tentasse andar agora, elas cederiam. Meus braços, sem treino, não aguentariam o esforço. E, se fosse à floresta naquele estado, qualquer coisa ali me derrubaria com facilidade.
— Vou partir em breve.
Ela assentiu lentamente, com um olhar que transparecia compreensão, mas também uma tristeza que eu não queria ver.
— Eu sei.
Aquelas palavras flutuaram no ar, e então me aproximei dela, olhei em seus olhos com uma intensidade que parecia buscar algo mais profundo. Sem hesitar, fiz algo que não fazia há anos. Ela arquejou com meu toque, surpresa pela aproximação, mas não se afastou. Eu a abracei com força, sentindo seu cheiro familiar e o calor de uma conexão que transcendeu o sangue. Não éramos irmãs de sangue, mas éramos irmãs de alma. Família.
— Obrigada — sussurrei, o som suave e carregado de significado. Quando ela relaxou em meus braços, continuei, a voz mais suave: — Por ter cuidado de mim.
Nos próximos dias, partiria com uma nova promessa, uma sede que havia despertado dentro de mim. Eu enfrentaria a floresta novamente, não mais por obrigação, mas por uma chama selvagem e insaciável que queimava dentro da minha alma.
Eu encontraria Feyre.
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Gostaria de convidá-los a ler minha história original que estou publicando aos poucos aqui na plataforma wattpad, significaria muito para mim que a obra O Amuleto de Neva pudesse receber o mesmo amor das minhas outras fanfics. Obrigada !
𝗰ontınuα...
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