Prólogo
Argentina, Província de Corrientes, final do século XIX.
No amanhecer de mais um dia frio de inverno, o minuano soprava gelado, quase o uivo de um animal se queixando, dolorido, mordaz e amedrontador. Juan colocou mais lenha no fogão de ferro e barro e, depois de despejar água quente na xícara, foi até o quarto da mãe para tentar confortá-la. Seus pulmões estavam fracos e o médico o alertara que não teria mais do que um mês de vida. Florencia Gonzalez terminaria seus dias e não havia o que ser feito a não ser ficar ao seu lado até o último suspiro.
— Não fale – disse Juan quando Florencia tentou se apoiar nos cotovelos para falar com o filho. — Tente descansar.
— Preciso falar – resmungou a mulher de olhos negros, contornados por um arroxeado que nem sempre estivera ali, era a tuberculose lhe sugando a vida aos poucos. Contavam os mais velhos que Florencia fora uma mulher bonita na juventude, desejada e muito cortejada pela voz melodiosa; ela cantava como uma sereia. Juan ainda conseguia fechar os olhos e ver a mãe escovando os cabelos longos e lisos, tão negros quanto o pedaço de seda negra que ela guardava em sua caixinha de recordações, um presente do único homem que amou na vida e que lhe deu um filho. — Precisa me prometer que irá ao encontro de teu pai, Juanito – pediu ela, agarrando a mão do filho. O suor lhe escorria pela testa e mal conseguia manter os olhos abertos. Florencia estava mais magra, os ossos pontudos marcavam o rosto para esconder a beleza que um dia teve.
— Mamá, nada sabemos de meu pai – tentou não decepcioná-la —, mas prometo que assim que a senhora estiver boa, iremos encontrá-lo.
— Não tenho mais tempo para ir ao seu encontro, querido. José Carlos vive do outro lado do rio e é lá que está seu futuro, ao lado de tu padre – explicou ela, esforçando-se para conseguir falar sem tossir e acabar engasgada com o próprio catarro. Juan a ajudou a se sentar, colocando mais travesseiros para melhor apoiá-la e levou a xícara até a sua boca. O chá com mel derretido sempre a ajudava, amenizando as crises de tosse. — Ele é um homem importante, um herói de guerra e vai recebê-lo com orgulho. Ele me prometeu que voltaria e cuidaria de nós – garantiu a mulher.
Juan se esforçava para acreditar no que a mãe contava sobre o pai, mas já não era uma criança e há muito tempo deixara de esperar pelo pai. Doía saber que a mãe morreria chamando por uma lembrança. Se ao menos ela tivesse aceitado um dos inúmeros pedidos de casamento que recebera, poderia ter tido uma vida diferente, ao lado de um homem que a protegeria e que poderia ter lhe dado filhos. E ele, bem, ele poderia contar com um pai, mesmo que por consideração, ter irmãos e não ficar esperando que uma promessa vazia de alguém que sequer havia lhe dado um sobrenome fosse cumprida. Só sabia que se chamava José Carlos Junqueira e que era um dos soldados do Império do Brasil na Guerra do Paraguai.
— Quando o encontrar, porque sei que irá encontrá-lo, Juan – prosseguiu Florencia —, diga a ele o quanto eu o amei e que o esperei como prometi.
— E se ele estiver casado? – perguntou, arrependendo-se ao ver a decepção gravada nos olhos da mãe.
— Peça à mulher que o aceite como um filho e se tiver irmãos, ame-os porque são seu sangue – prosseguiu. — Eu aceitaria os filhos de outra como meus se ele tivesse voltado para mim.
— Porque a senhora sempre foi uma mulher generosa. – Juan secou uma lágrima que escorreu ao pensar que muitos sentiriam falta de Florencia Gonzalez, a castelhana que deixava de comer para alimentar uma criança que chorava de fome.
— Os filhos não pedem para vir ao mundo, Juan! – apertou a mão do filho. — E eles não devem ser responsabilizados por nossos erros. Um dia também amará uma mulher e será pai de um filho dela e compreenderá sua mãe.
— A senhora fala como se pudesse prever meu futuro. – Juan beijou a testa da mãe.
— Estou morrendo, mi hijo! – falou ela com dificuldade. — Estou a um passo de me despedir deste mundo, posso sentir e ver coisas que você não pode – garantiu. — Seu futuro não está aqui, deve atravessar a fronteira e viajar rumo ao sol nascente para ir ao encontro de seu pai. É lá seu lugar. É lá onde encontrará o amor e a felicidade.
— Ao lado de um homem que mal sabe que existo – reclamou Juan, já não conseguindo controlar a emoção por estar se despedindo da única pessoa que amava no mundo, revoltado por ela mesmo estando no leito de morte ainda acreditar que aquele homem pudesse amá-la incondicionalmente.
— Ele não sabe que você existe, Juan. Mas ele acreditará em você. Antes de ir embora e me deixar em Corrientes, ele prometeu voltar. – Juan sabia daquela história de cor e salteado, de como a mãe fora cortejada pelo jovem soldado brasileiro e como viveram dois anos amasiados, mudando de lugar conforme o destacamento do pai era enviado para novas frentes durante os anos sangrentos da Guerra do Paraguai. — Ele vai recebê-lo, isso eu posso garantir. Diga a ele que o amei até a última batida do meu coração.
— Eu... – Juan não queria prometer algo que mal conseguia acreditar, mas decepcioná-la no leito de morte não o agradava e acabou cedendo. — Eu prometo que irei ao encontro de José Carlos Junqueira.
— É seu pai, não esqueça disso! Você se parece com ele, mi querido! É lá que encontrará uma linda mulher que virá do outro lado do mundo para se apaixonar por você. – Juan soltou um longo suspiro. — Ninguém consegue fugir do amor, Juan! Ninguém! – insistiu ela com os olhos fechados, sentindo-se cansada. — Sei que sofreu ao crescer sem a presença do pai e vivendo das memórias que compartilhei com você, meu querido!
— Seu sofrimento sempre foi o meu, mamá – confessou Juan.
— Não trocaria meus anos de abandono pelos anos que passei ao lado dele – respondeu ela. — Foram poucos anos, mas foram anos felizes e isso me bastou. Foram as lembranças desse amor e você, Juan, o filho que ele me deu, que me deram forças para seguir em frente. Você é um filho maravilhoso e chegou a hora de ficar ao lado de seu pai. Eu sinto que José Carlos precisará de você mais do que você precisou um dia dele.
— Mãe...
— Escute-me, por favor! – pediu Florencia. — Nem sempre nascemos para sermos amados como esperamos, e sim para amar a quem o destino nos confiou. Cuide de seu pai, é apenas isso que lhe peço. Jamais esqueça que eu o amo, Juan! – fez sinal para que o filho se aproximasse e o beijou na bochecha, pedindo para que a deixasse sozinha. — Não precisa ficar ao meu lado. Posso partir sem você, não tenho medo e sei que terei um bom lugar lá do outro lado. Seus avôs estão aqui comigo, posso senti-los. – Juan não duvidava da sensibilidade que a mãe tinha para o inexplicável, talvez fosse seu sangue meio cigano que a fazia enfrentar o desconhecido com tanta coragem.
— Eu a amo e vou cuidar do meu pai – prometeu Juan antes de deixar a mãe para que morresse sozinha de acordo com sua vontade, com os olhos marejados e um nó na garganta, a dor atravessando o peito para perfurar o coração, fazendo-o lembrar que a partir dali seria somente ele e uma promessa.
***
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