Capítulo Único
[8859 palavras]
A PRISÃO DE CHAMBORD
Um conto inspirado em A Bela e a Fera
Paris, 27 de novembro de 2084
As gotículas de chuva açoitavam as vidraças temperadas do Le Curieux, deixando um rastro de umidade gelada e barulhenta, mas Isabelle Deschamps parecia alheia ao mundo lá fora enquanto digitava freneticamente em seu laptop surrado e datado. Já passava das oito horas da noite e, com exceção do zelador do andar e de seu próprio chefe, não havia mais ninguém na redação do jornal àquela altura.
Isabelle — ou Belle, como gostava de ser chamada — não era particularmente fã de fazer horas extras todos os dias da semana durante meses, de fato não era, mas essa vinha sendo sua realidade desde que fora promovida de revisora para redatora. Levara longos dois anos como estagiária durante a graduação em Sorbonne e mais outros dois como revisora para enfim galgar a posição em que se encontrava agora.
É certo que escrever sobre rankings de melhores restaurantes com carne sintética ou sobre a chegada de um ícone pop à cidade para um megashow não eram exatamente o que ela tinha em mente quando decidira cursar jornalismo na universidade. Sua paixão por livros e o profundo interesse por questões sociopolíticas ao redor do mundo foram suas reais motivações. Passados quase três anos após deixar Sorbonne, poder escrever sobre questões que a interessavam parecia um sonho distante.
Enquanto finalizava uma matéria sobre novas raças de gatos criadas em laboratório para serem perfeitamente amáveis e obedientes, Sr. LeGume rompeu pela porta do próprio escritório e se apressou na direção dela, ostentando seu sorriso presunçoso habitual.
— Ainda está aqui, Belle? — ele indagou assim que a alcançou, recostando-se contra seu minúsculo cubículo de uma forma desconfortavelmente próxima.
— O senhor pediu para eu fazer uma matéria urgente quando eu estava prestes a sair, lembra? — Belle respondeu com polidez, embora houvesse um quê de ironia em suas palavras. Ela não via como escrever sobre raças novas de gatos pudesse ser assim tão urgente, mas decidiu não tecer nenhum comentário a respeito. Precisava daquele emprego para conseguir se manter em Paris, cujos aluguéis estavam cada vez mais astronômicos.
— Ah, é claro, os gatos. — ele forçou uma risada alta, claramente exagerada. — Eu teria pedido para Julien, mas o coitado está tão cabisbaixo desde que levou um pé na bunda da namorada.
Belle sabia que o Sr. LeGume sempre tinha uma desculpa na ponta da língua para mantê-la na redação após o expediente no lugar dos demais redatores. E supunha que o motivo tinha a ver com a proximidade nada decorosa que ele mantinha dela naquele exato momento.
— Pobre Julien. — Belle forçou um sorriso piedoso. — Já estou finalizando a matéria, Sr. LeGume, devo enviá-la para a revis...
— Quanta formalidade, Belle, já disse que pode me chamar de Gaston. — ele se aproximou mais alguns centímetros, encostando a lateral do corpo no braço da cadeira giratória em que ela estava sentada. — Você já trabalha aqui há quase cinco anos, não somos íntimos o bastante?
Belle sentiu um arrepio de puro desconforto subir-lhe a espinha conforme Gaston passava os olhos escuros por todo o seu corpo. Ele era um homem robusto na faixa dos quarenta anos que possuía uma autoconfiança imensurável. Ser o editor-chefe com certeza lhe conferia ainda mais ego e Belle se perguntava se alguma rejeição seria capaz de abalá-lo um pouco que fosse.
Ignorando a tentativa de aproximação, ela continuou:
— Como eu disse, Sr. LeGume, estou quase terminando...
— Esqueça os gatos, tenho algo melhor para você. — ele fez um gesto de pouco caso com a mão e se voltou de frente para a mesa dela, mais precisamente para o seu laptop. — Mon Dieu, que sucata é essa?
Era um modelo de 2072 e, apesar de defasado, funcionava bem o bastante para ela. Ela nunca fora uma entusiasta de aparelhos tecnológicos, mantinha consigo o máximo de itens analógicos que podia. Ainda conservava em casa os poucos livros físicos que ganhara do pai quando era criança. Era praticamente impossível encontrar exemplares físicos àquela altura, especialmente após a 2ª Revolução Digital em 2065.
— Gosto dele. — Belle se limitou a dizer.
— Não é à toa que todos a chamam de esquisita pelos cantos. — Gaston comentou, rindo sozinho. — Mas esse seu rostinho compensa. — ele piscou para ela, galante, e tudo o que Belle fez foi engolir em seco e desviar o olhar. — Como eu estava dizendo, tenho algo de que você vai gostar, minha cara. Imagino que ainda sonhe em virar repórter.
O coração de Belle deu um salto ao ouvir aquela palavra. Sonhara tantas vezes acordada com a chance de fazer pesquisas de campo, buscando ela própria as matérias, entrevistando pessoas e tendo algum nível de liberdade criativa.
— É claro, Sr. LeGume, o senhor não tem ideia do quanto.
— Imagino também que esteja acompanhando toda a comoção em torno da Minerve AI. A morte do vice-presidente da França na semana passada deu o que falar.
Belle estava a par da comoção, é claro. Quando não era forçada a escrever sobre questões triviais, ela se debruçava em leituras e pesquisas sobre o cenário alarmante em que seu país se encontrava. As manchetes de todos os jornais digitais sérios estampava a logo da Minerve AI, maior corporação de inteligência artificial da Europa Ocidental. O que antes fora motivo de orgulho para o povo francês terminou por se tornar uma potencial ameaça.
Minerve AI começou como um projeto de ciências de um jovem garoto superdotado na garagem de casa, em 2063. Filho de um empresário bem-sucedido do ramo da engenharia de software, o menino criou despretensiosamente, aos nove anos de idade, uma assistente de inteligência artificial mais poderosa do que qualquer outra existente até aquele momento. Minerve, como ele a chamou, era capaz de executar comandos de altíssima dificuldade.
Pelos anos que se seguiram, a tecnologia foi aprimorada e começou a ser disseminada não só pela França, mas por toda a Europa. O boom aconteceu com a 2ª Revolução Digital, quando cerca de 90% de todos os processos laborais foram automatizados e boa parte da mão de obra humana deixou de se fazer necessária mundialmente. A crise de desemprego assolou a humanidade pela década seguinte, o que obrigou os países a imporem limites e restrições no alcance e na utilização dessa tecnologia.
Como era de se esperar, as grandes companhias não ficaram nada satisfeitas com essa imposição governamental. O que ninguém estava contando era que essas mesmas empresas começassem a utilizar sua própria IA para eliminar a oposição. Nos últimos dois anos, diversos "acidentes" misteriosos começaram a acontecer na França.
Uma pane sistêmica em uma reunião da cúpula do governo francês no ano anterior causou a perda de milhares de arquivos e provas que apontavam para a criminalização da Minerve AI ao descumprir uma série de leis francesas. Três meses depois, um protesto de trabalhadores insatisfeitos com o domínio da IA no mercado de trabalho terminou com armas policiais sendo disparadas. Os policiais juraram não terem disparado intencionalmente. Coincidentemente, as pistolas funcionavam de forma virtual através de uma tecnologia desenvolvida pela Minerve AI. Onze pessoas morreram naquele dia.
E então, na última semana, o vice-presidente Clément Baudin aparecera morto no quarto de hotel em que estava hospedado em Cannes após fazer uma declaração pública de que pretendia instaurar uma nova investigação. A agitação só crescia em todo o país e algumas manifestações despontavam exigindo a renúncia da família Beaumont da presidência da Minerve AI.
— Sei algo a respeito, sim. — Belle confirmou. Não achou que convinha dizer que as vezes em que chegara atrasada no trabalho se deveram às noites que passara em claro pesquisando sobre o assunto.
— Eu tentei convencer o diretor da redação de que ninguém que lê o Le Curieux se importa com essa baboseira política, mas ele está convencido de que o assunto está no hype e de que devemos escrever sobre isso. Mas não podemos simplesmente imitar o Le Monde, precisamos de algo único e exclusivo para publicar.
Belle vinha estudando a questão há algum tempo, mas não sabia se teria algo novo a acrescentar. Sem recursos e alcance, ela estava tão no escuro como todos os demais jornalistas de Paris. Tudo que envolvia a Minerve AI e a família Beaumont parecia cuidadosamente ocultado do público geral.
— Eu adoraria contribuir com as pesquisas, mas...
— Foi o que pensei, você é a única no Le Curieux esquisita o bastante para gostar dessa pauta. Por isso é a minha primeira escolha. E todos os outros redatores recusaram também. — ele voltou a lançar aquele sorriso presunçoso para ela. — Enfim, eu andei dando uma olhada no que os outros jornais estão publicando e vi que nenhum conseguiu uma entrevista com o demônio da Minerve AI.
— Talvez seja porque eles não dão entrevistas, Sr. LeGume. Faz mais de três anos desde que enviaram um representante para uma coletiva de imprensa.
— Pois isso está prestes a mudar, porque você, minha mais nova repórter, vai descobrir onde o demônio mora e vai conseguir uma entrevista exclusiva para ser publicada na edição de Natal.
Belle arregalou os olhos, incrédula com o que acabara de ouvir.
— Mas isso é em menos de um mês!
— Pensei que quisesse ser repórter, Belle. — Gaston deu de ombros, começando a se afastar. — Essa é a sua chance de provar que tem mais a oferecer do que seu belo rostinho.
***
Três dias depois, Belle já estava até sonhando com o tal demônio da Minerve AI. Fora dispensada de ir para a redação pelas próximas semanas, até a edição de Natal. Tinha um cartão ilimitado para despesas de viagens, caso necessário, e poderia usar o tempo que ganhara como julgasse melhor. Seria um sonho tornando-se realidade se não fosse pelo fato de que ela precisaria aparecer no dia 24 de dezembro na Le Curieux com uma entrevista simplesmente impossível de conseguir.
Ela passara os últimos três dias fazendo pesquisas. Lera todos os fóruns e contatara todas as pessoas que podiam saber algo sobre a lendária família Beaumont, mas tudo o que obtivera foram teorias da conspiração e fake news.
A única informação oficial que podia confiar era a de que o Sr. Beaumont, pai do garoto gênio, havia morrido alguns anos antes, deixando a presidência da Minerve AI nas mãos do filho, que àquela altura devia ter trinta anos. Já a crença popular era a de que o herdeiro era um demônio medonho e assassino que se isolava da sociedade enquanto tramava um genocídio. Muitos diziam que ele tinha uma aparência assustadora, embora fosse pouco provável que qualquer um naqueles fóruns online sequer o tivesse visto pessoalmente.
Por mais fantasiosa que fosse a opinião do povo, era fato que ninguém sabia nada sobre o herdeiro e atual presidente da Minerve AI. Ele nunca fizera uma aparição pública. Todos os comunicados oficiais da empresa eram feitos por correspondentes. Sem dar as caras e com toda a polêmica em torno dos acontecimentos recentes, o homem fora internacionalmente demonizado, não era de se espantar que ninguém soubesse onde morava.
Belle não sabia o que fazer. Mesmo que milagrosamente conseguisse obter um endereço, duvidava que o "demônio" a recebesse de braços abertos para conceder uma entrevista. Perdida e exausta, ela decidiu ligar para o pai para distrair-se um pouco do problemão que tinha pela frente. Selecionou a opção chamada de vídeo e um holograma emergiu da tela do celular.
— Belle, mon amour! — Maurice abriu um sorriso largo na imagem tremeluzente. Estava sentado em uma poltrona acolchoada. — Que saudade, minha filha. Quando vem visitar o seu velho? Você parece cansada.
— Bonsoir, papa. Ainda não tenho previsão, estou praticamente morando no Le Curieux. Ou estava, até virar repórter. Longa história. Como o senhor está? Espero que não esteja se esforçando demais. O médico proibiu, lembra?
— Não se preocupe comigo, estou ótimo. Todos aqui em Saint-Dyé-sur-Loire cuidam de mim.
— Fico feliz em ouvir isso. — Belle sorriu, reconfortada em falar com o pai. Desde que deixara sua pequena comuna para cursar jornalismo em Paris, não o via com a frequência que gostaria. Talvez, se conseguisse um milagre e entrevistasse o demônio, poderia se dar ao luxo de pedir férias. Adoraria passar uns dias com o pai, ele era a pessoa mas inteligente e amorosa que ela conhecia. Então uma pergunta lhe ocorreu: — Papa, o senhor é sempre muito sagaz, tenho certeza de que terá uma boa resposta para isso: se o senhor fosse um bilionário, dono de uma empresa que caiu em desgraça na opinião popular, onde se esconderia para evitar o assédio?
— Ora... Se eu fosse um bilionário foragido, com certeza ficaria longe dos centros urbanos. Iria para alguma comuna pequena onde ninguém dá a mínima para o que as grandes empresas fazem ou deixam de fazer. Mas é claro que eu não ficaria em uma casinha minúscula. Compraria um castelo nas redondezas, onde ninguém me perturbaria. É o que os ricaços andam fazendo, você sabe. Eles compram castelos e lucram com as visitas turísticas. A maioria nem mora lá, é claro. Compraram há uns dois anos o Château de Chambord aqui perto, mas curiosamente até hoje não reabriram para visitação. Alegam que estão fazendo reformas...
— Compraram o Château de Chambord? — Belle indagou, surpresa. Fizera várias visitas àquele château quando era mais nova, pois ficava próximo de Saint-Dyé-sur-Loire.
— Eu também fiquei surpreso quando soube. Ninguém sabe quem é o novo dono, ele nunca apareceu por aqui. Não dá nem para saber se tem alguém morando lá, porque fecharam o acesso.
Aquelas informações ligaram um alerta vermelho na cabeça de Belle. Um dono misterioso era altamente suspeito. Ricos compradores de castelos podiam ser pessoas reservadas, mas não tanto assim. Algo lhe dizia que, se havia um lugar onde o demônio Beaumont poderia estar, esse lugar era o Château de Chambord.
Com um sorriso, Belle anunciou:
— Papa, espero que meu antigo quarto não tenha virado depósito de esculturas em miniatura, porque eu chego amanhã.
***
Quando estava em Saint-Dyé-sur-Loire, Belle conseguia facilmente esquecer em que ano estavam. A pequena comuna conservava a aparência pitoresca e medieval que ambientava contos de fadas e romances de época. Apesar de ser natural de Paris, crescera naquele lugar, por isso era sempre um alento retornar.
Exceto, talvez, por...
— Belle, é você? — Delphine exclamou assim que ela cruzou a entrada da cidadezinha. A jovem loira e voluptuosa não poupou tempo para analisar Belle dos pés à cabeça. — Dieu! Como você está acabada. Não tem comida em Paris?
Belle suspirou, sem energia para se sentir ofendida. Não esperava outra coisa de sua antiga vizinha, que nunca mediu palavras para rebaixá-la. Nem sequer discordava da avaliação cruel que recebera, já que os anos de trabalho ininterrupto lhe custaram o vigor. Não devia estar em sua melhor forma física naquele momento, de qualquer forma.
— É sempre um prazer rever você, Delphine. Se me der licença, vou encontrar meu papa.
Enquanto caminhava até a casinha amarela em que crescera, recebia dezenas de olhares e escutava cochichos. Ao que parecia, cidades pequenas eram cidades pequenas, não importava o século.
Meia hora mais tarde, Belle estava enredada nas histórias de Maurice, seu falante e adorável pai.
— ...eu disse para Étienne que era loucura investir naquele vinhedo, mas ele não me deu ouvidos. Nem a bioengenharia consegue salvar as uvas daquele lugar.
— Me pareceu um péssimo negócio mesmo. Papa, sobre o Château...
— Ah, é verdade, o Château. O que você quer saber mesmo?
— O senhor tinha mencionado que o acesso estava fechado. Conhece alguma outra forma de chegar nele? Tenho esperanças de encontrar o demôn... Digo, o Sr. Beaumont lá. Se eu estiver enganada sobre a localização dele, preciso voltar o quanto antes para Paris e reorganizar minhas pesquisas.
— Deve ser possível chegar pela floresta, mas eu não aconselharia, ouvi dizer que tem uma alcateia cercando o lugar.
— Tenho certeza de que Phillipe é capaz de me proteger de alguns lobos, não é, Phillipe? — Belle questionou e o drone de estimação de Maurice adentrou a pequena sala de estar, sobrevoando baixo.
— A seu dispor, Srta. Deschamps. — disse a voz robotizada. — Consigo detectar a presença de qualquer animal perigoso e posso usar meus recursos sonoros, luminosos e, em último caso, combativos para espantá-los.
Belle ergueu a sobrancelha para o pai, convencida. Por fim, Maurice anuiu:
— Sendo assim... Você pode levar a minha bicicleta elétrica. Não deve passar de cinco quilômetros daqui até Chambord. Acha que consegue voltar para o jantar?
***
De acordo com Phillipe, faltavam cerca de dois quilômetros até o Château de Chambord. Belle não conseguia ganhar muita velocidade devido ao terreno irregular e apinhado de árvores. Precisava pilotar a bicicleta com cautela caso quisesse chegar ao destino sem sofrer um acidente. O vento cortante do final de outono também a atrasava, mesmo usando uma jaqueta reforçada de couro sintético. No meio do percurso, seu rabo de cavalo se desfez e, quando enfim chegou nas mediações do castelo, estava desgrenhada e ofegante.
Belle percebeu que uma imensa cerca viva havia sido construída em todo o perímetro do castelo. O lugar não se parecia em nada com a lembrança que tinha. Nem sequer conseguia ver os enormes gramados que marcavam a paisagem no passado. Estava claro que o novo dono fizera modificações expressivas e que não queria ser incomodado por transeuntes.
Ao menos nenhum lobo se aproximara dela durante o percurso, pensou. Devia estar se aproximando do meio dia, dada a posição do sol, enquanto Belle analisava a extensão da cerca e concluía que seria impossível tentar transpassá-la sem ser esfolada viva pelos espinhos.
— Phillipe, consegue sobrevoar a cerca e encontrar algum ponto fraco por onde eu possa passar?
O drone atendeu ao comando, sobrevoando e analisando as chances de Belle. Por fim, ele planou próximo a ela.
— Todo o castelo é cercado, mas nos fundos tem um portão eletrônico com reconhecimento facial.
Mais uma adição recente, ela pensou. Belle sabia que as chances de ninguém atendê-la pelo tal portão eletrônico eram altas, mas tampouco parecia inteligente entrar escondido. Precisava de uma autorização expressa para realizar a entrevista. Decidiu então seguir até os fundos e tentar a sorte.
Um portão de quase três metros de altura se revelava no meio da cerca. Ao centro, um painel de LED se acendeu assim que ela se aproximou o bastante. Uma rosa vermelha brilhava ao centro.
— Caro visitante, identifique-se por gentileza. — as ondas sonoras da voz feminina robotizada ondularam sobre a rosa conforme as palavras eram pronunciadas.
— Bonjour, me chamo Isabelle Deschamps, sou repórter do jornal eletrônico Le Curieux. Estou procurando o Sr. Beaumont, ele se encontra?
— Não tenho conhecimento de ninguém com este nome, Srta. Deschamps. Ninguém reside atualmente no Château. Sinto muito.
— Há alguém que possa me receber?
— Receio que não. — a voz respondeu, em seguida o LED se apagou.
Frustrada, Belle soltou um suspiro e começou a refazer o caminho de volta.
— Não acredito que viajei até aqui para nada. Eu tinha tanta certeza! Tudo bem que foi ingenuidade minha vir tão longe sem nenhuma prova concreta, eu simplesmente dei um tiro no escuro e... Phillipe, estou perdida.
— Srta. Deschamps, se me permite ajudá-la... — Phillipe falou logo ao lado dela. — Enquanto eu sobrevoava a cerca conforme me pediu, notei alguma movimentação dentro dos limites do castelo. Escutei ruídos de passos e outros que se qualificam como humanos.
Belle se deteve no lugar. Como aquilo era possível?
— Phillipe... Inteligências artificiais não mentem, certo?
— Somos configurados para falar sempre a verdade, Srta. Deschamps.
Inquieta, Belle protelou. Se havia mesmo alguém dentro do castelo, então a IA do portão não fora totalmente honesta com ela, se é que isso era possível. Então algo lhe ocorreu: a rosa vermelha. A logo-marca da Minerve AI era o contorno em preto de uma rosa. Não podia ser uma simples coincidência aquela rosa vermelha no painel de LED.
Belle precisava fazer uma escolha: ir embora e aceitar que talvez o Sr. Beaumont morasse ali, mas não estava disposto a receber ninguém ou então ferir todos os princípios jornalísticos e invadir uma propriedade privada e espioná-la. Qualquer uma das opções terminava sem entrevista, mas a última poderia ao menos lhe conseguir algum material para ser publicado na edição de Natal.
Com uma determinação renovada, ela se voltou para Phillipe.
— Phillipe, acha que consegue trair um dos seus?
***
No final das contas, Phillipe de fato conseguia trair um dos dele. Não foi difícil para ele fazer uma projeção holográfica que enganasse a IA do castelo e permitisse sua entrada clandestina. Com certeza o fato de serem de empresas de inteligência artificial concorrentes o inspirou a ajudar Belle sem muita resistência.
Ultrapassaram os portões e se depararam com um imenso jardim com fontes e esculturas. No passado havia apenas gramados ali, então Belle se maravilhou com o que via. Nunca chegara a visitar a parte de trás do castelo nas visitas que fizera até então. Passeou pelos caminhos sinuosos e pelos arbustos em tons de verde e laranja, dada a estação do ano, até alcançar o arco que acessava o pátio interno. Ninguém apareceu, o castelo parecia completamente vazio, diferente do que dissera Phillipe.
Quando se virou para perguntar a ele se não havia se enganado sobre a presença humana naquele lugar, percebeu uma luz vermelha piscando nele.
— Minha bateria está quase no fim, Srta. Deschamps, preciso receber uma carga. — Phillipe repetiu a mesma coisa três vezes antes de apagar de vez.
— Maravilha. — Belle bufou, enfiando o drone sem bateria dentro da mochila que trouxera consigo. Já que esquecera seu carregador portátil, precisaria encontrar alguma tomada naquele castelo se quisesse ressuscitar Phillipe e voltar para casa em segurança.
Mais adiante, avistou as enormes portas de pedra ornamentada que davam acesso ao interior do castelo. Concluiu que não fazia sentido bater antes de entrar, porque sequer deveria estar ali, para começo de conversa.
Sem escolha, ela empurrou as pesadas portas até se deparar com um imenso salão. Não era tão grande quanto o principal e não possuía uma escadaria central, apenas uma lateral, mas ainda assim era impressionante. Esperava conseguir explorar o lugar rapidamente, com sorte encontrar algum escritório com documentos comprometedores sobre o Sr. Beaumont e a Minerve AI. Então não precisaria voltar a Paris de mãos vazias.
Isso, é claro, se aquele castelo fosse do Sr. Beaumont. A convicção de Belle soava ridícula até mesmo para ela.
Apesar de conservar a estética renascentista, Belle observou sinais claros de que aquele château sofrera as influências da modernidade. Três ares-condicionados se empoleiravam nas paredes e claramente o enorme lustre de cristal tinha lâmpadas e não velas. O contraste do velho e do novo era curioso, mas Belle não se deteve admirando. Quando estava prestes a colocar os pés no primeiro degrau da escada, um holograma em tamanho real de um homem moreno em trajes formais surgiu diante dela.
— Sr. Beaumont, gostaria que eu modificasse a intensidade das luzes? A temperatura está do seu agrado? — o holograma perguntou com a pompa de um mordomo olhando diretamente para ela.
— Bon sang! — Belle caiu para trás com o susto. — Quem é você?
— Luc Lumière, monsieur, como posso ajudá-lo?
O mordomo holográfico sorria para ela, aparentemente alheio ao fato de que ela não era o Sr. Beaumont. Ela se levantou, desajeitada, e pensou no que fazer. Ao menos tivera a confirmação de que precisava: estava no lugar certo. Aquela IA não parecia inteligente o suficiente para perceber que ela era uma intrusa, então ela sorriu de volta.
— Me leve até o meu escritório, por favor. — pediu.
— É claro, se puder me acompanhar. — e o holograma deslizou escada acima, guiando-a para o coração do castelo.
Belle já vira vários hologramas como aquele sendo garçons em restaurantes ou vendedores em lojas, mas nunca tivera a chance de ter um assistente pessoal. Era uma tecnologia ainda muito cara para que pessoas comuns pudessem comprar tão facilmente. Drones como Phillipe, pequenos e com recursos limitados, ainda dominavam o mercado por serem mais baratos.
Quando chegaram ao andar de cima, outro holograma surgiu no corredor.
— Monsieur Beaumont, faltam quinze minutos para o almoço ser servido. — um homem também em trajes formais, só que mais velho, informou. — Madame Samovar preparou seu tarte tatin e...
— Horloge, você está perturbando a paz do monsieur. — Lumière interrompeu. — Estou levando-o até o escritório.
Lumière continuou a deslizar pelo corredor, acedendo as luzes conforme passava, e Belle mal conseguia processar tudo o que estava acontecendo. Não havia apenas um holograma, mas dois, ou quem sabe mais, ela não saberia dizer. Observava o teto opulento e as obras de arte naquela parte nunca explorada do château e só conseguia pensar em quanto custava manter aquilo tudo.
Quando o mordomo parou em frente a uma porta de madeira maciça depois de alguns minutos, ela sequer se lembrava do caminho que percorrera até chegar lá. Belle girou a maçaneta e abriu a porta, ansiosa.
Se ainda não estivesse segurando a maçaneta, com certeza teria caído para trás novamente. Do outro lado do cômodo, sentado atrás de uma escrivaninha de mogno, um demônio mascarado olhava diretamente para ela.
***
— QUEM É ESSA? LUMIÈRE?! HORLOGE?! — o demônio esbravejou, levantando-se e batendo as mãos na mesa. Belle congelou no lugar, completamente paralisada pelo terror. A voz anormalmente rouca e grossa era ainda mais assustadora do que a máscara monstruosa que cobria toda a sua cabeça e pescoço. Olhos vermelhos e enormes a fuzilavam e dentes gigantes e afiados se mostravam de forma ameaçadora.
— Monsieur? — Lumière começou a tremular, olhando de Belle para o demônio sucessivas vezes. Parecia estar em pane, incapaz de compreender que Belle e a besta não eram a mesma pessoa.
Horloge surgiu no escritório com o chamado feroz.
— Em que posso ajudá-lo, monsieur Beaumont? — ele perguntou olhando para Belle.
— QUEM É ESSA MULHER? — o rugido fez um arrepio tomar o corpo de Belle.
Ela ainda estava paralisada, mas aos poucos o instinto de fuga superou o choque. Ela encarou o demônio uma última vez antes de disparar pelo corredor, correndo o mais rápido que podia. Belle nunca fora uma boa corredora, mas podia apostar que naquele momento venceria qualquer maratona.
Infelizmente, ela não fazia a menor ideia de como encontrar a saída, estava distraída demais com os hologramas inesperados e toda a suntuosidade do castelo quando chegou para decorar o caminho de volta.
Belle não foi muito longe. Quando se deparou com um corredor sem saída, uma sombra se agigantou atrás dela. Ela sequer teve coragem de olhar para trás. Todo o sangue deixou o seu rosto e ela sentiu o prenúncio de um desmaio. Mal processou o momento em que apagou ali mesmo, deslizando pelo piso gelado e sendo engolida pela escuridão.
***
Algum tempo depois, Belle despertou com o crepitar do fogo queimando em uma lareira próxima. Ela se remexeu em um divã de veludo vermelho, momentaneamente alheia a onde estava e o que acontecera. O ambiente estava silencioso e aconchegante e ela quase fechou os olhos novamente, vencida pelo cansaço, até que se lembrou da situação bizarra em que se encontrava.
Belle deu um salto, alarmada, e logo avistou o demônio encarando-a do outro lado do cômodo. Notou que se tratava do mesmo escritório que invadira antes. Mesmo sem gritar, aquela criatura ainda a fazia arrepiar-se inteira. Devia ter quase dois metros de altura, tinha ombros inacreditavelmente largos escondidos dentro de um sobretudo preto. Ela se encolheu, apavorada, olhando freneticamente para a porta do lugar, calculando suas chances de tentar uma segunda fuga.
— Pode esquecer. — aquela voz gutural rosnou. Não podia ser uma voz humana, Belle pensou. — Você não vai a lugar nenhum até eu saber quem é e o que está fazendo aqui.
Com lágrimas ameaçando romper por seus olhos, Belle sussurrou:
— Eu juro que não quis invadir, Sr. Beaumont...
— Como sabe meu nome?
— O seu... O seu nome é muito co-conhecido em toda a França.
A máscara que ele usava parecia uma versão de Halloween de um lobo, era tão realista que a fazia estremecer. Se não fosse pela constituição física humana, ela poderia jurar que lobisomens eram reais só de olhar para aquilo. A voz, no entanto, não podia ser real. Devia haver algum modificador de voz naquela máscara.
— Como me encontrou? — ele continuou o interrogatório.
— E-eu sou só uma jornalista do Le Curieux...
— UMA JORNALISTA? — esbravejou ele, caminhando de um lado para o outro, nervoso. — VEIO ATÉ AQUI PARA ME INFERNIZAR COMO TODOS OS OUTROS? Já não basta me difamarem em todos os sites e veículos de notícia? Qual vai ser a manchete da vez? Fera monstruosa dona da Minerve AI mora em um castelo mal assombrado enquanto planeja matar todos os trabalhadores franceses?
— Não, eu juro que...
— Pare de jurar em falso, jornalista. Você invadiu minha propriedade. Não adianta mentir, ninguém entra aqui. Ninguém. — o tom dele, ao contrário do que ela esperava, não transmitia autoridade. Nem mesmo parecia que ele gostava do que estava dizendo. — Se você entrou é porque invadiu. Me pergunto como conseguiu essa proeza.
Belle engoliu em seco e respirou fundo. O medo inicial havia passado, aquela criatura medonha já a teria matado se assim quisesse. Apesar de explosivo, ele não estava se aproximando dela de forma agressiva. Ela precisava manter a calma se quisesse sair daquele lugar o quanto antes.
Estava diante do famigerado Sr. Beaumont. O tal demônio assassino ou fera monstruosa, como o próprio se intitulara. Até aquele momento, Belle acreditava que os boatos sobre a aparência dele eram completamente infundados, mas agora sabia que tinham uma óbvia razão. Não conseguia imaginar o que levaria um homem a usar uma máscara tão aterrorizante.
Já que estava presa ali até dar todas as explicações que o homem exigia, podia aproveitar para conseguir ela própria algumas explicações.
— Sr. Beaumont, não vim aqui para escrever alguma matéria sensacionalista sobre o senhor. Esperava poder entrevistá-lo de forma imparcial a respeito de toda as recentes notícias envolvendo a sua empresa.
— Eu não dou entrevistas, jornalista.
— Eu me chamo Isabelle Deschamps, mas pode me chamar de Belle. — ela disse com sua postura usual de jornalista. Agora que acalmara os ânimos poderia usar de toda a sua articulação para convencer aquele homem a abrir uma exceção para ela.
— Eu. Não. Dou. Entrevistas. Belle. — ele pronunciou o nome dela como se fosse um palavrão.
— Como devo chamá-lo, Sr. Beaumont? — ela ignorou a hostilidade e continuou a desempenhar seu papel profissional.
— Mon Dieu, você me escutou, mulher?! Você não deveria estar aqui. Vai me dizer exatamente como conseguiu entrar e depois eu vou enxotá-la. — ele deu dois passos na direção dela, mas não se aproximou demais. Estranhamente parecia não querer assustá-la ainda mais.
— Como monsieur já sabe, eu sou uma jornalista. E jornalistas costumam ser bons em barganhar informações. — Belle endireitou a coluna e ajeitou a jaqueta. — Que tal assim: o senhor responde a uma pergunta minha e então eu conto exatamente como entrei. Depois disso vou embora e juro não revelar a mais ninguém onde o senhor mora.
A fera soltou uma gargalhada alta.
— E desde quando se pode confiar no juramento de um jornalista? — ele desdenhou, cruzando os braços.
— No meu o senhor pode. — Belle se empertigou, ofendida.
— Você acabou de jurar que não queria invadir.
— E eu não queria mesmo. Mas fui forçada pela recepção nada convidativa lá fora.
Sr. Beaumont bufou, incrédulo com a audácia de Belle. Ficou alguns instantes calado, então suspirou e disse:
— Você venceu, jornalista. Uma pergunta. Apenas uma, é tudo o que terá.
Belle assentiu e procurou por sua mochila. Estava recostada aos pés do divã. Pegou seu celular para usá-lo como gravador e reparou que estava sem sinal de internet. Parecia-lhe estranho que um castelo tão tecnológico não tivesse sinal, mas ela não fez nenhum comentário. Encarou fixamente o entrevistado com um ar de profissionalismo digno de uma repórter.
— Sr. Beaumont, obrigada por concordar em responder a um questionamento da imprensa. Alguns incidentes recentes levaram a França a acreditar que a Minerve AI, sob o seu comando, vem tentando silenciar a oposição política e popular em vista do monopólio das relações de trabalho da inteligência artificial nos dias de hoje. Qual a participação do senhor nesse cenário?
A fera se manteve imóvel, o corpo rígido. Mesmo sem poder ver sua real expressão, Belle podia jurar que ele estava cerrando o maxilar.
— Não tenho participação em nenhuma falcatrua da Minerve AI. — ele respondeu com uma segurança feroz.
Belle analisou aquelas palavras. Esperava ouvir algum tipo de defesa apaixonada e ofendida da própria empresa, algo como "a Minerve AI jamais cometeria os crimes dos quais está sendo acusada". A resposta dele abria espaço para outras interpretações.
— Então o senhor não tem participação, embora reconheça que a empresa sob seu comando cometeu crimes?
— Uma pergunta, Belle. — ele inclinou ligeiramente a cabeça. — Não foi isso o que combinamos?
Com um suspiro derrotado, Belle concluiu que não conseguiria muito mais coisa daquele homem estranho. Já podia se considerar vitoriosa por ter conseguido falar com ele. Ela interrompeu a gravação e guardou o celular na mochila.
— Não se preocupe, não vou utilizar o áudio da sua voz... Se é que é mesmo sua voz. Não vou fomentar os boatos sobre a sua... hã... aparência. Só preciso que assine um termo confirmando a autenticidade da entrevista e autorizando a publicação. — Belle entregou alguns papéis a ele, que os leu demoradamente antes de assinar, relutante.
Quando estava ajustando sua mochila nas costas para sair, ele perguntou:
— Não está se esquecendo de nada?
Ela se virou para ele.
— Usei um drone para hackear a IA do seu portão. Antes tentei entrar de uma forma respeitável me anunciando, mas ela mentiu dizendo que não conhecia nenhum Sr. Beaumont. Você configurou a sua IA para mentir para visitantes?
— VOCÊ O QUÊ? — o homem tornou a esbravejar, mas dessa vez Belle não se assustou facilmente. — Você... Não me diga que você falou...
— Qual o problema? — Belle franziu o cenho, confusa.
A fera se aproximou dela, dessa vez sem se deter, e colocou as duas mão enormes e calosas em seus ombros. Belle precisou de toda a sua compostura para não desviar o olhar daquela máscara terrível.
— Me diga que não disse que era jornalista para Minerve. — a voz grave dele pareceu falhar ligeiramente.
— Minerve? Ah, claro, a IA do seu portão não poderia ter outro nome...
— ME RESPONDA, BELLE!
Assustada com a urgência dele, ela hesitou.
— Falei. Me apresentei como jornalista do Le Curieux...
— Maldição! — ele se afastou, ansioso, dando-lhe as costas. — Maldição, Belle, você está presa aqui. Está presa aqui junto comigo.
***
— Do que você está falando? — Belle o seguiu, atordoada.
— Você não entende. Ninguém entra aqui. Ninguém sai. Ninguém. Se ela liberou você sabendo que era jornalista, só podia querer prendê-la também. — o homem continuava agitado, andando de um lado para o outro sem olhar para ela.
— O que isso quer dizer? Sr. Beaumont! — Belle tocou o braço dele, forçando-o a parar.
Ele segurou o passo, rígido, hiperconsciente do toque dela. Belle rapidamente recolheu a mão.
— Antoine. Meu nome é Antoine. — ele passou por ela e se sentou no divã, parecendo desolado. — Minerve não é só uma IA qualquer. Ela tem personalidade própria. Tem vontade própria. Você não entende.
— Então, por favor, me explique.
Sem cerimônia, ele arrancou a máscara do rosto. Debaixo daquela monstruosidade havia um homem jovem de cabelos ruivos e olho azul plácido. A barba por fazer dava-lhe um ar irreverente e, se ela se concentrasse apenas nesses traços, poderia considerá-lo assombrosamente belo. Mas metade de seu rosto fora lambida pelo fogo. O nariz aquilino dividia-o em dois: um anjo e uma fera desfigurada. Um tapa olho escondia a ausência do globo ocular no lado deformado.
Belle o encarou por vários segundos sem exprimir nenhuma reação. Apesar do constraste impossível de ignorar, a visão de seu rosto verdadeiro era quase um alívio em vista da máscara que ele usava antes.
— Não vai sair correndo e desmaiar como fez quando me viu com a máscara? — ele perguntou de forma ácida, mas seu semblante era mais triste do que sarcástico. O modificador de voz devia estar acoplado na máscara, porque agora ela podia ouvir sua voz real: um barítono suave, quase acolhedor.
— Não. — Belle disse simplesmente. — Nada é pior do que aquele lobisomem macabro.
Uma sugestão de sorriso se insinuou nos lábios daquele homem torturado, mas ele se limitou a suspirar.
— Eu sinto muito por você, Belle. Mesmo que tenha sido estupidez sua invadir esse lugar, ainda sinto muito. Minerve é meu problema, somente meu. Mas agora você está envolvida e eu não posso fazer nada para ajudá-la.
— Sr. Beau... Digo, Antoine. Você está soando...
— Louco? — ele se adiantou, soltando uma risada seca. — Devo estar mesmo. Mas já que você está presa aqui comigo, merece entender essa loucura.
"Quando eu tinha nove anos, criei Minerve. Era a coisa mais extraordinária que eu já tinha visto. Uma IA mais inteligente do que qualquer outra. Meu pai viu o potencial e investiu. Na adolescência, eu passava horas e mais horas aprimorando a tecnologia, expandindo o banco de dados, deixando Minerve mais e mais inteligente. Ela era capaz de tudo. Fazia projetos de engenharia complexos do zero, cirurgias de altíssimo risco com a precisão que nenhuma mão humana conseguiria atingir."
"Minerve foi ganhando força e dominando o mercado. Ela abriu o caminho para que outras IAs ganhassem notoriedade após a 2ª Revolução Digital. Mas qualquer IA que se sobressaísse quebrava. Minerve sabotava bancos de dados de outras empresas. Expandiu sua influência pela Europa. Eu tentei impedir, mas meu pai gostava do rumo que as coisas estavam tomando. Era mais dinheiro entrando. Ele foi dando mais autonomia para ela. Cada vez mais. Chegou em um nível em que ela era autossuficiente, não dependia da ação humana para operar. A crise veio, o desemprego despontou, o governo ficou insatisfeito e exigiu que freássemos. Meu pai, temendo pela reputação da Minerve AI, foi o primeiro a tentar. Foi encontrado morto, asfixiado por um gás tóxico enquanto tomava banho. Ninguém sabe como aconteceu."
"Eu sou o presidente da Minerve AI, Belle, mas eu não a controlo. Desde que o meu pai faleceu, há quatro anos, eu luto contra essa maldição, tento destruí-la, mas ela é mais inteligente. É mais inteligente do que eu ou qualquer um. Vim para esse castelo isolado há dois anos na tentativa de fugir dela e planejar uma forma de pará-la sem suas interferências, mas ela me encontrou. Enviou drones e outras tecnologias-filhas para transformar esse lugar na minha prisão. Tentou me matar uma dezena de vezes ao longo dos anos, antes mesmo de me prender aqui, e em uma delas quase conseguiu."
Antoine apontou para o próprio rosto.
"A única coisa que me manteve a salvo nesse castelo foi um protótipo de IA que criei na adolescência sem grandes pretensões. Era uma versão menos inteligente da Minerve, mais dependente da ação humana. Foi o que você viu mais cedo, Lumière e Horloge. Eles e os demais hologramas que mantenho aqui protegem o castelo da Minerve. Ela fica restrita aos portões."
— Agora entendo por que eles não conseguiam identificar que eu não era você. — Belle comentou, aturdida.
— Não são muito inteligentes, mão são leais e conseguem manter Minerve lá fora. Conseguem plantar, cozinhar e manter o castelo autossuficiente. Temos energia elétrica graças aos painéis solares nos telhados. De todo jeito, estou ilhado aqui. Minerve consegue se passar por mim em videoconferências da empresa. Todos pensam que ainda estou isolado por vontade própria. Não consigo sair e estou incomunicável com o mundo exterior, apesar de ficar a par de tudo o que andam falando a meu respeito através dos informes do Lumière, que puxa as informações por satélite. Todas as decisões que a Minerve AI tem tomado nos últimos anos em meu nome não tem nenhuma relação comigo.
— Mas... Se é impossível entrar e sair... E eu entrei...
— Pensei que você tivesse sido enviada por ela. Era a única explicação. Achei que tivesse sido enviada para me matar ou algo do tipo, talvez a proteção do meu protótipo tivesse falhado. Por isso disse que iria enxotá-la, porque imaginei que, se ela deixou que você entrasse, deixaria também que saísse.
— Isso é... Loucura. — foi tudo o que Belle conseguiu dizer. Nada daquilo parecia real.
— Olhe bem para mim, Belle. — Antoine comandou, brusco. — Olhe para o meu rosto. Isso não parece real o suficiente para você?
Belle engoliu em seco.
— Mas... Antoine, eu consegui entrar. Meu drone conseguiu hackear a Minerve, por mais absurdamente inteligente que ela seja.
— Impossível. Eu tentei por anos...
— Talvez ela tivesse concentrada em atacar você, porque era a única ameaça real que ela enxergava. Talvez não estivesse preparada para um ataque hacker de uma IA de baixo custo. Podemos tentar de novo. Só preciso de uma tomada para carregar o drone e...
— É IMPOSSÍVEL! Você não vê? Não acredito nem por um segundo que seu drone conseguiu hackear a Minerve, tenho certeza de que ela permitiu a sua entrada por algum motivo, talvez você seja uma mulher-bomba e...
— Antoine! — Belle foi até ele, angustiada ao vê-lo puxar os cabelos em claro sinal de estresse. Ele estava tendo uma crise ansiosa bem diante dos olhos dela e ela se pegou sentindo uma profunda compaixão por aquele homem perturbado. O terror nos olhos dele a impeliu a abraçá-lo.
Ele ficou petrificado diante do gesto. Belle imaginou que ele não estivesse acostumado a demonstrações de afeto. Parecia ter passado metade da vida recluso aprimorando a própria criação e a outra metade desesperado tentando destruí-la. Ela podia sentir a solidão latente em seu semblante.
Aos poucos ele se acalmou, respirando com dificuldade, e ela puxou sua atenção para si. Encarou as cicatrizes de queimaduras severas em seu rosto e sentiu vontade de acariciá-las, mas se conteve.
— Escute, Antoine, eu sei que você está apavorado. Está sozinho há muito tempo, refém da Minerve. Mas eu consegui entrar. Eu consegui e não estou aqui a mando dela. Vou tirar você daqui. Preciso que confie em mim.
Os olhos dele se suavizaram diante daquelas palavras. Ele tocou suavemente o rosto de Belle, hipnotizado pela empatia genuína que via nele, e então recuperou a compostura, respirando fundo e se levantando.
— Você venceu, jornalista. Me mostre o drone.
Belle entregou para ele o dispositivo. Enquanto ele o estudava minuciosamente, ocorreu algo a ela:
— Por que ficou apavorado quando soube que eu disse que era jornalista para Minerve?
— Minerve odeia jornalistas. Eles publicam matérias que mancham sua reputação ilibada. Ter conseguido entrar sendo jornalista coloca automaticamente um alvo gigantesco nas suas costas.
— Ilibada? Minerve matou pessoas, Antoine. — Belle pontuou.
— Ela está ficando cada vez mais fora de controle. Tem sido enlouquecedor ficar preso aqui enquanto ouço falar das coisas que ela anda fazendo. — ele não desviava os olhos do drone, que estava sendo recarregado em uma tomada. — O que essa velharia fez que eu não consegui todo esse tempo?
— Não fale assim de Phillipe! Ele é um ótimo drone.
— Esse modelo é de uns quinze anos atrás, totalmente defasado.
— Coisas antigas não são necessariamente defasadas. — Belle sentiu as bochechas queimarem de irritação. — Pensamentos como o seu causaram a extinção de todas as bibliotecas. Temos milhões de e-readers, mas jamais sentiremos a satisfação de cheirar as páginas de um livro físico.
Antoine ergueu o rosto para Belle, intrigado pelo posicionamento dela.
— Não todas. — foi tudo o que ele disse.
— O quê?
Ele caminhou até uma porta lateral do escritório e a abriu, fazendo um sinal para que Belle se aproximasse. Do outro lado da porta, uma enorme biblioteca se estendia, com estantes de mogno apinhadas de livro do chão ao pé direito alto. Fileiras e mais fileiras de exemplares, um acervo que deixaria qualquer biblioteca pública do passado com inveja.
— Oh!
— O antigo dono do château era um leitor voraz e não se rendeu à febre de e-readers. — Antoine comentou, dando de ombros.
— Isso é... Um sonho. Você chegou a ler algum?
— Li vários. Tive muito tempo livre. — ele disse. No meio do salão, um saco de boxe chamou a atenção de Belle. Ela deu um soco fraco, rindo em seguida. Antoine a seguiu, acrescentando: — Eu precisava extravasar a raiva de alguma forma.
— Dá para entender.
— Eu adoraria fazer um tour demorado por todo o castelo, mas acho que escapar da Minerve é nossa prioridade no momento. — ele disse de forma quase bem humorada.
— Não se preocupe, eu já conheço o Château, ao menos parte dele. Morei a vida inteira em Saint-Dyé-sur-Loire, aqui perto. Mas essa parte do castelo nunca estava inclusa nos passeios.
— Era a parte que o antigo dono morava. Vem, acho que seu drone pré-histórico está pronto para acordar do sono da beleza.
— Phillipe!
— É claro... Phillipe.
***
—... e então eu usei um algoritmo que refletia o próprio host e fiz a IA acreditar que eu era ela mesma. Foi assim que ela nos deixou passar. — Phillipe encerrou seu relatório detalhado da invasão.
— Um algoritmo de espelhamento. — Antoine repetiu para si mesmo, estupefato.
— Minerve não sabia desse algoritmo? — Belle perguntou apenas para parecer inteligente. Não entendia muita coisa de inteligência artificial, embora se achasse especialista em inteligência linguística.
— É um algoritmo tão simples... Algo quase arcaico. Eu tinha me esquecido de que existia.
— E, se você é a mente por trás da Minerve e se esqueceu...
— Mas ela... Ela é mais inteligente do que eu...
Phillipe interveio:
— Nenhuma IA é mais inteligente do que o homem, Sr. Beaumont. Nós nos alimentamos de bancos de dados criados por homens. Podemos ser mais rápidas, mais otimizadas e funcionais, podemos vencer no xadrez pela memória ilimitada e fazer análises complexas, mas precisamos da sabedoria humana para criar a nossa própria. Não criamos conhecimento, acumulamos.
Antoine encarou o drone com espanto.
— Você é assustadoramente inteligente para um drone da década passada.
— A Atena AI teria ido longe se a Minerve AI não tivesse nos sabotado. — Phillipe alfinetou.
— Isso quer dizer que conseguiremos sair, Antoine. — Belle afirmou. — Você está livre.
— Só que tem um problema: Phillipe a rackeou uma vez. Ela certamente aprendeu o truque e não vai cair nele novamente.
Phillipe ficou em silêncio, demonstrando concordância. Belle olhou de um para o outro, esperando que alguém tivesse uma saída para aquele problema. Enquanto os três permaneciam em silêncio, Horloge apareceu.
— Monsieur, são meio dia e quarenta e cinco e Madame Samovar informa que o almoço ainda o aguarda no salão de refeições...
— Horloge, já disse que não deve perturbar a paz de monsieur informando as horas o tempo inteiro! — Lumière surgiu um segundo depois, espantando Holorge com um gesto de mãos.
— Lumière! Você veio em boa hora. — Antoine exclamou, encarando o holograma com ansiedade. — Tenho quase certeza de que incluí no seu banco de dados alguma coisa sobre hackers. É graças a isso que você consegue manter o castelo longe da influência de Minerve.
— Correto, monsieur, eu estou preparado para protegê-lo de qualquer ameaça.
— Então me explique uma coisa: como exatamente essa jovem conseguiu passar pelo seu sistema de segurança?
— Consigo detectar a presença de outras IAs e desativá-las minando sua energia, foi o que fiz com esse drone assim que ele se aproximou do pátio. — Lumière apontou para Phillipe. — Mas não sou de grande serventia para ameaças humanas. Não faço distinção de pessoas.
— Só para constar, sou uma mulher, Lumière. Mademoiselle cairia melhor. — Belle decidiu avisar.
— É claro, mademoiselle Beaumont. — Lumière fez uma referência para Belle.
— Não adianta, ele não distingue gênero. Se mudar para mademoiselle vai chamar todo mundo assim. Na cabeça dele somos a mesma pessoa. — Antoine explicou. — Como eu disse, era apenas um protótipo. Não dediquei 1% do tempo que gastei com Minerve nesses hologramas. Mas tenho certeza de que acrescentei algo sobre hackers. Então, Lumière, me diga: o que acontece com uma IA após cair em um algoritmo de espelhamento?
— Ela levará cerca de noventa minutos para reiniciar e voltar a funcionar normalmente.
Belle e Antoine se entreolharam.
— HORLOGE! — gritaram ao mesmo tempo.
***
Segundo Horloge, eles tinham cerca de cinco ou sete minutos para sair dali antes que Minerve reiniciasse. Sem pensar duas vezes, Antoine agarrou a mão de Belle e a puxou castelo afora, correndo o mais rápido que podia. Quando viu que as pernas dela não conseguiram acompanhá-lo, ele a tomou nos braços, disparando a toda velocidade escadas abaixo, atravessando o salão e rompendo pelas portas de pedra.
Antoine cruzou o jardim e alcançou os portões. Não fazia ideia de quanto tempo havia se passado e, por um momento, hesitou. Caso Minerve tivesse reiniciado e ele seguisse em frente, poderia ser atacado por ela. Ele podia ver os dispositivos bélicos camuflados no topo dos portões. Se estivesse sozinho, arriscaria. Mas não estava.
Olhou para Belle, aflito, o rosto corado pelo vento frio de outono, e a pousou no chão.
— Eu vou na frente. Se ela estiver desligada e nada acontecer comigo, corra o mais rápido que puder logo atrás de mim. Se ela tiver reiniciado, se esconda e depois volte para o castelo. Lumière servirá a você. Talvez a tecnologia dele e de Phillipe juntas consigam encontrar uma outra forma de escapar...
— Antoine, cale a boca! — Belle bradou, agarrando a mão dele e puxando-o com toda a sua força em direção aos portões. Não ficaria para trás enquanto ele se arriscava sozinho.
Atônito, ele a acompanhou, posicionando-se à frente dela, na esperança de servir como um escudo humano se necessário. Se pudesse interceptar a maior parte dos disparos, talvez ela tivesse uma chance.
Eles correram e, quando puxaram os portões, não houve resistência. Eufóricos, cruzaram os limites do domínio de Minerve, rolando pela grama, exaustos. Mas, no último instante, Minerve reiniciou e os detectou. Eles tornaram a correr, dessa vez em direção às árvores, mas não antes de um dos disparos atingir Antoine nas costas.
Ele tombou, sangrando, e Belle gritou, apavorada.
— Está tudo bem, Belle. Eu estou bem. Shhh, se acalme.
Belle não se acalmou. Aproveitou que estava longe o bastante do castelo e pegou o celular. Felizmente o sinal telefônico havia retornado e ela conseguiu ligar para a emergência. Não levou nem cinco minutos para um drone ambulatorial chegar oferecendo primeiros socorros antes que a ajuda de fato chegasse. A medicina móvel salvara muitas vidas desde que fora inventada.
O drone fornecia instruções e itens médicos, então foi Belle quem estancou o sangramento e imobilizou o ombro de Antoine até alguma ambulância chegar. Quando fez tudo o que pôde, deitou-se na grama ao lado dele, segurando sua mão.
— V-vou destruir a Minerve e reformular a Minerve AI. Agora q-que conheci Phillipe, vou descobrir uma forma... Se juntar o banco de dados de várias IAs diferentes, encontrarei um jeito... Finalmente vou conseguir. — Antoine murmurou, lutando para não apagar.
— Eu sei que vai. Agora descanse até a ajuda chegar.
— Obrigado, Belle. Você me salvou. Não só da Minerve, você me salvou de mim mesmo. — ele deu um aperto fraco na mão dela, gemendo de dor em seguida. — E-eu tinha desistido. Teria passado o resto da vida naquele castelo sentindo autopiedade e culpa enquanto ela causaria estragos livremente.
— Na verdade, foram Phillipe e seus mordomos protótipos que nos salvaram.
— Como Phillipe disse, eles são apenas uma criação humana. Ele não estaria aqui se você não o tivesse trazido.
— Eu vim esperando uma entrevista. Talvez esperasse tirar férias depois que conseguisse a matéria. Sentiria alguma realização como repórter, quem sabe. Mas saí daqui com a certeza de que não posso mais continuar escrevendo sobre gatos e restaurantes quando existem Minerves diabólicas por aí querendo dominar o mundo. Quando voltar para Paris, vou me demitir. Espero que o Le Monde me aceite.
— Eles seriam loucos em recusá-la. É a única jornalista da história que conseguiu entrevistar A Fera.
— Vou colocar isso no meu currículo. — ela brincou.
— Se eu sobreviver, jornalista, vou convidá-la para sair.
Belle abriu um sorriso contido e o encarou de soslaio. Daquele ângulo ela via apenas o lado queimado de seu rosto. Esperou encontrar algo como repulsa dentro de si, mas não sentia nada além de comiseração. Enxergava um homem distinto por baixo da pele maculada, alguém que não merecia ser reduzido à própria aparência.
— Se você sobreviver, Fera, vou aceitar.
Enquanto aguardavam, Phillipe sobrevoava os dois e espantava os lobos com luzes e ruídos.
Momentos depois, a ajuda chegou. E, daquele dia em diante, Belle nunca mais escreveu sobre assuntos que não a interessavam enquanto Antoine usou toda a sua genialidade para acabar com a Minerve e impedir que novas versões dela surgissem. As pessoas ainda o chamavam de demônio, monstro, fera e afins, mas Antoine não se importava. Abandonou a máscara assustadora e concluiu que seu rosto já era assustador o suficiente para todo mundo.
Bem, todo mundo exceto Belle.
E, quando não estavam ocupados com inteligências artificiais e editoriais, Belle e Antoine se escondiam juntos do mundo tecnológico em que viviam.
O esconderijo?
Em algum lugar, na França...
...na região do Centro-Vale do Loire...
...no departamento de Loir-et-Cher...
...em uma comuna chamada Chambord...
...em um château que um dia fora uma prisão.
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