A princesa enfeitiçada
A professora acompanhava com atenção os exercícios de barra praticados por suas bailarinas. Como rígida mestra, exasperou-se com algumas das garotas que erraram passos que deveriam já dominar, motivo pelo qual pediu várias vezes à um velho pianista para que interrompesse a música, a fim de que fossem feitas as correções.
As dançarinas se acostumaram desde tenra idade a serem exigidas daquela forma, com dureza e rispidez, por isso não se assustavam mais com os palavrões em russo esbravejados pela mulher.
A aula recomeçou e Danielle, a linda bailarina loura, de olhos azuis e sardas, arrancou elogios de Yevgenia Petrovna pela excelente técnica mostrada. Nos quase dois anos em que estudou na Rússia, nunca se intimidou com a pressão e a cobrança que a dança clássica exige, porque seu amor pelo balé e sua vontade implacável de vencer foram sempre mais fortes do que tudo.
Ao impressionar sua mestra com pirouettes perfeitas e adágios singelos, além de uma sensibilidade artística envolvente, foi escolhida para dançar o papel do Cisne Branco no espetáculo Lago dos Cisnes. A apresentação encerraria a temporada do Teatro Bolshoi.
A garota sorriu, sem acreditar no que estava acontecendo. Enquanto recebia abraços das amigas e colegas, suas lágrimas desciam abundantemente pelo seu rosto de princesa, mostrando que estava feliz e emocionada.
Seu sonho se tornou realidade.
Agora era a Primeira Bailarina da mais importante companhia de balé do mundo e ninguém lhe tiraria isso.
Danny percorreu um longo caminho até conquistar o papel sonhado por todas as bailarinas. Desde os dois anos de idade dançava. Venceu um câncer aos nove anos. Perdeu a mãe com apenas dez. Enfrentou lesões musculares. Conquistou vitórias em todos os festivais de dança antes de se profissionalizar.
Foi um caminho árduo, com suor, lágrimas e superação. Mas valeu a pena.
A garota, ainda em lágrimas e sorrisos, pediu à sua mestra alguns minutos a mais na sala para poder treinar a Coda da suíte, e foi atendida.
— Eu te adoro. — Danny deu um abraço na mulher. — Obrigada por tudo o que tem feito por mim.
Um meio sorriso se formou no rosto habitualmente rígido de Yevgenia, agora contente.
Danielle fez uma preparação de quarta, mirando um ponto fixo diante de seus olhos. Conseguiu se imaginar no palco dali a algumas semanas, antes do Natal, dançando no Teatro Bolshoi e sendo ovacianada pelo público que sempre a amou.
Vai ser o dia mais feliz da minha vida, ela prometeu.
Sorrindo, mentalizou uma contagem de sete e oito. Girou.
Não foi um treino prolongado, já que a aula puxada a esgotou.
Uma mulher idosa, com lenço branco na cabeça, esfregava o chão do corredor com um pano, e Danny sorriu para ela, apesar de nunca tê-la visto antes. Os traços da velha eram tártaros, com linhas de expressão e muitas rugas. Imaginou que fosse uma nova funcionária do teatro.
Danielle tirou o collant preto, a meia calça e as sapatilhas cor de rosa, e tomou um banho demorado. A faxineira não estava mais quando saiu
Faltava pouco para meia noite quando ela chegou na datcha. Uma linda lua cheia iluminava o céu estrelado, se refletindo no imenso lago ladeado de pinheiros e abetos. Ali era seu refúgio, o lugar mais gostoso para se viver nos arredores de Moscou.
Assim que entrou na datcha, toda feita de madeira vermelha, tocou o ícone da Theotokos, fez o sinal da cruz e foi recebida carinhosamente por um gato cinzento, que se esfregou em suas pernas e miou.
— Oi, Micha. Tudo bem? Está com fome?
O felino só parou de miar quando a bailarina tirou um pacote de ração da copa e despejou uma porção generosa num pote. Danny esperou ele comer tudo e o carregou até seu quarto, jogando-se na cama com ele, segurando-o como um bichinho de pelúcia.
— Eu tô super feliz, Micha. Fui escolhida para ser o Cisne Branco.
Danny sabia que seu gatinho não entendia uma única palavra do que dizia, mas o via como um amigo, e se sentia bem quando se abria com ele. Fosse em noites de calor ou em noites de frio, quando a menina voltava do teatro alegre, ou triste e chorosa por causa de uma aula ruim, era para ele que ela abria seu coração.
— Você é muito importante pra mim, porque me escuta com toda a paciência do mundo.
Assim dizendo, Danielle segurou seu amigo felpudo e esfregou seu nariz no focinho dele.
A noite estava fria.
Depois de jantar, Danielle saiu e se sentou num tronco diante do lago com a lua pálida refletida em sua superfície calma. Abraçando seu corpo para se aquecer contra o frio, elevou o olhar para o alto e viu todas aquelas estrelas brilhando e dando beleza ao céu escuro. Pareciam sorrir para ela e chamá-la para brincarem.
O rosto da garota se revestiu de gravidade, um suspiro fugiu por entre seus lábios carnudos e bem desenhados, enquanto seus olhos se fechavam e abriam.
— Acho que essa vida de muita dança e disciplina fez de mim uma pessoa distante. Vocês, aí de cima, devem achar que sou louca por conversar com um gato. Mas não ligo. Do meu jeito, sou feliz.
Uma lágrima brotou do olho esquerdo da jovem, caindo na relva como gota de orvalho.
— Um dia, vou chegar perto de vocês.
Nesse instante, ela viu uma estrela cadente e esse vislumbre fez um sorriso surgir em seu rosto.
O tempo de Danielle ficou mais reduzido nas semanas seguintes. Por causa dos ensaios de oito horas diárias, ela quase não tinha mais tempo para fazer o que gostava, como passear com o namorado, tomar chá com as amigas e tirar fotos com elas em frente ao Kremlin e a Catedral de São Basílio.
Seu corpo foi exigido, quase levando-a à exaustão. O pior eram os ensaios de pas de deux, ministrados por um professor rígido e detalhista que tinha fama de mau.
Como qualquer garota sensível, Danny pensou em pedir um papel menor. Mas o sangue de uma primeira bailarina corria em suas veias, motivando-a a nunca desistir.
Em meio às lágrimas, sentada sozinha no chão da sala vazia, ela se sobressaltou ao se virar para a porta e ver a mulher idosa sob o batente, fitando-a. A presença dessa mulher de rosto sofrido perturbou a jovem. Ela nunca dizia nada. Nenhum dos bailarinos a conhecia.
— Por que a senhora está me olhando? — Danielle temeu que sua voz tivesse soado ríspida.
Mas a idosa não respondeu.
Danielle suspirou, enxugando uma lágrima, virou-se por um instante para seu reflexo na parede de espelhos. Quando voltou-se para a porta, a velha já não estava mais ali.
Os ensaios se intensificaram e aos poucos Danielle perdia a timidez, incorporando a doce Odette e a sedutora Odile. O clima de pressão deu lugar à um ambiente alegre, em que as meninas faziam brincadeiras após os ensaios. Não se via mais choro.
Danielle não conseguia ocultar sua felicidade pelo espetáculo estar ganhando vida em cada pequeno detalhe de tudo aquilo. Sorria encantadoramente assistindo aos ensaios de suas colegas que dançariam o Pas de Quatre, vibrava com a energia do amigo que interpretaria o bufão da corte. E o que dizer do Príncipe Siegfried? Era lindo.
O ensaio daquela noite terminou com a dançarina morrendo nos braços de seu príncipe.
Danielle saiu toda radiante da sala, girando piqués, ansiosa para tirar o collant molhado de suor e tomar um banho relaxante, para voltar para a datcha e ter uma deliciosa noite de sexo com o namorado.
Ignorou a velha que passava um rodo no chão, passando altivamente por ela. Mas um arrepio estranho percorreu seu corpo e a fez parar.
— Você está feliz?
A dançarina se surpreendeu que uma voz rouca e firme saísse daquela boca murcha e virou-se com cautela.
— É da sua conta? — Danny perguntou, já impaciente com o estranho assédio da faxineira.
Esperou que suas palavras não tivessem soado mais atrevidas do que queria, uma vez que se dirigia a uma pessoa de idade.
— Você sonha em chegar perto das estrelas.
Essas palavras causaram abalo na loura e fizeram-na sentir um frio percorrer por todo seu corpo. Assustada, tornou a olhar para frente e deu dois passos apressados para sair, até que a voz rouca a fez parar:
— Você é uma bailarina linda. Vai realizar seu sonho. Mas todo sonho tem seu preço.
O rosto de Danielle empalideceu, e virando-se para trás, viu a velha torcendo o pano molhado, fazendo a água suja cair num balde.
— Pois eu estou disposta a pagar.
Sem olhar para a garota, a velha delineou um sorriso indecifrável. Segurou o balde numa das mãos e o rodo na outra e seguiu para a direção contrária a que Danielle ia.
A moça revirou os olhos em atitude de irritação. Quis ir atrás da mulher e perguntar quem ela era, porém o cheiro de seu suor a incomodava, e a menina se fechou num dos boxes, tomando um banho quente e relaxante.
Já no aconchego da datcha, enquanto afagava a cabeça de seu gato, debruçada na cama, olhou para o calendário pendurado na parede ao lado de um quadro de bailarinas.
Só faltava uma semana. Sete dias que pareciam uma eternidade.
Mas a tão sonhada noite de Gala chegou.
O Teatro Bolshoi ficou lotado, como nas tantas vezes em que apresentou aquele balé.
Danielle, sem conter sua empolgação, se aqueceu atrás das cortinas antes de vestir seu figurino de Cisne Branco. Seu coração parecia querer sair de seu peito, de tanto que batia, sentindo a energia das pessoas que vieram para vê-la. Se sentia feliz.
Vestindo seu figurino todo branco, como as penas de um cisne, se maquiou, calçou suas sapatilhas de ponta e foi ao palco para brilhar.
A platéia se comoveu diante de seu talento e sua beleza, soltando gritos de bravo, de linda e todos os elogios possíveis que toda bailarina ama ouvir. Os olhos azuis da garota derramaram lágrimas de felicidade que se misturaram às pétalas das flores que recebeu após a reverance.
É o dia mais feliz da minha vida, ela disse para si mesma.
— Você estava linda, Danny. — quase todas as bailarinas do elenco repetiam essas palavras ao abraçarem-na.
Danielle e seu namorado comemoraram num restaurante. A garota tomou vários copos de vodca, se tornando dócil aos desejos carnais mais selvagens do rapaz. Fizeram amor e se deitaram para dormir.
A lua cheia se refletia no lago, um espelho perfeito. Estrelas brilhantes enfeitavam o céu com tons entre azul escuro e púrpura, como se tudo fosse um lindo quadro.
Subitamente um vento frio agitou as águas do lago. Danielle acordou, sentindo que algo a chamava para fora, uma espécie de canto. Levantou-se, nua, e vestiu apenas uma blusa preta de manga comprida que não cobria sua nudez.
Abriu a porta, ignorando o enrosco de Micha em suas pernas, como que implorando para sua amiga não sair. Mas a garota andou em direção ao lago. Sentiu o vento frio de final de outono bater em seu rosto, junto com a sensação de estar sob um feitiço.
A mulher do teatro estava ali, de costas para o imenso reflexo da lua no lago. Seus olhos eram cheios de malícia e um sorriso se formou em sua boca enrugada.
O coração da Danny batia como louco, mas seu aspecto era sereno. Não sentia medo.
— Todo sonho tem seu preço. Lembra que eu te disse isso? — a estranha perguntou.
— Lembro…
— Eu te concedo uma última lembrança. Ela viverá em seu coração por toda a eternidade.
Danielle se lembrou da noite em que sua falecida mãe a abraçou após sua primeira dança com sapatilhas de pontas. As lágrimas rolaram abundantemente de seus olhos azuis ao reve-la linda, carinhosa e terna.
Então, a velha soltou uma risada e soprou partículas douradas que envolveram o corpo da jovem. A respiração da moça começou a sumir, seu coração acelerou, o corpo sentiu uma onda de calor insuportável.
Soltando um grito e implorando para que a mulher parasse, ela caiu no chão e tirou a blusa, ficando completamente nua.
Começou a tremer e a passar por uma transformação impressionante. Seus pés delicados se alargaram e ficaram achatados como os de um pato. Os braços ganharam formas de asas compridas e penas nasceram por todo o corpo nu, que encolheu, até que a garota outrora chamada Danielle foi transformada num lindo cisne branco.
A ave aproximou-se da água e ao ver seu reflexo, soltou um grasnado de desespero. Dizem que animais não sentem tristeza. Porém, uma lágrima cristalizada rolou do olho do cisne, caindo no lago, formando círculos crescentes.
O cisne se entregou ao seu triste destino. Abrindo suas imensas e lindas asas, levantou vôo e voou em direção às estrelas. Por toda a eternidade.
…
Muitos anos se passaram. Décadas.
Em noites de lua cheia, as pessoas ouvem uma ave grasnar e saem de suas casas para ver o lindo cisne branco descer do céu e pousar nas águas geladas do lago.
A ave se alimenta de peixes e dança um lindo balé sobre o reflexo da lua. Mas é um balé triste, também, porque dentro do cisne, vive a alma de uma garota que um dia teve sonhos e de quem tudo foi tirado.
Em seguida, voa novamente para a vastidão do céu estrelado, para voltar na próxima lua, e encher novamente de alegria as pessoas que se emocionam ao ver tão singelo espetáculo.
Fim
* Datcha= em russo, casa de campo.
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