- Um Trabalho Muito Honesto -
As palavras de alguém naquele insignificante vilarejo nunca haviam atingido Talion de tal forma como os recentes comentários da desagradável Senhora Lerina. Por mais que tivesse aprendido a passar a maior parte do tempo ignorando as sórdidas críticas dos moradores que não apreciavam a presença de sua família, Talion não podia evitar de sentir a repulsa naquelas palavras.
Não era novidade que os moradores do movimentado Vilarejo Ossoris não apreciavam a presença de estrangeiros em seu precioso lar. Ora, se vários andarilhos e estranhos de até mesmo outros reinos vagavam pelo vilarejo todos os dias e todas as noites, por qual motivo haveriam os aldeões de repudiar tanto a presença de uma pequena família asmabeliana entre eles?
Quando indagou a si mesmo essa questão, a resposta fluiu em sua mente. De fato, asmabelianos nunca admiraram a presença de estranhos entre eles, pessoas cuja identidade e intenções eram desconhecidas. Os frequentadores da taverna em sua maioria eram comerciantes e andarilhos que paravam no local para comerem e partirem no dia seguinte sem deixar rastros nem incômodos de sua visita. Laurelia chegou com seus dois filhos em Ossoris anos atrás se mostrando entusiasmada e disposta a trabalhar para manter uma ótima relação com os gentis moradores. No entanto, seu fracasso em manter uma vida social compatível com os demais despertou certo desprezo e sentimento de superioridade no coração de cada homem e mulher naquele lugar.
Não somente por si, mas seus dois filhos de certa forma também contribuíram para esse descaso. Adilan sempre tivera dificuldades em desenvolver boas relações com os adolescentes de sua idade. Por outro lado, a disponibilidade exagerada de Talion em realizar serviços pesados por pouco pagamento gerou a desafeição em muitas pessoas. O motivo? Ora, qual asmabeliano presta árduos serviços braçais por uma miserável moeda? Esses trabalhos eram destinados aos burros de carga, não aos rapazes. Logo, não era surpresa que o pensamento de superioridade surgisse entre os moradores do Vilarejo Ossoris sobre a família de Laurelia; a família que morava em um velho moinho.
Mas esta tinha sido a gota d'água. Em uma única noite sua mãe havia sofrido uma tentativa de abuso em seu trabalho, seu irmão havia tentado defendê-la e quase perdeu o próprio emprego, e ele, acabara de receber pessoalmente o repúdio dos seus vizinhos mais uma vez.
Talion sabia que sozinho não seria capaz de mudar a opinião dos moradores a respeito de sua mãe e de seu irmão, mas certamente podia mudar a opinião de todos a respeito de si mesmo. Sendo assim, a única forma de deixar de ser tratado como um serviçal disposto a fazer qualquer coisa por uma moeda, era trabalhando permanentemente em um serviço que lhe garantisse pagamento mensal e honesto. Disposição para tal não lhe faltava de forma alguma e todos que o conheciam sabiam disso. Porém, a memória da desafeição que eles sentiam por si surgiu em sua mente e ofuscou seu entusiasmo.
Havia muitos estabelecimentos naquele vilarejo mas qual bondoso proprietário estaria disposto a dar-lhe uma oportunidade de trabalho? Após passar pela desagradável visita na casa da Senhora Lerina, Talion percebeu que sua simples identidade já seria motivo para muitos ou quase todos os donos lhe negarem serviço. A desculpa da perda de clientes por conta de sua presença sem dúvida seria o principal motivo para lhe negarem contratação.
Dessa forma, quem seria o bendito senhor ou senhora que lhe aceitaria de bom grado?
A porta estava fechada e as luzes no interior da casa estavam apagadas. Mesmo assim, Talion pôs-se a bater. A única iluminação presente era o brilho da lua que reinava majestosa no céu. Nem mesmo as esferas luminosas contribuíam para uma visão melhor naquele local em particular. A casa era formosa assim como a maioria das outras e estava alinhada com as demais que constituíam aquela rua escura.
Talion bateu na porta novamente pois viu que não houve nenhuma alteração de som ou de luz no interior da moradia. Por vezes ele virava a cabeça para olhar ou redor; não pelo medo de lhe acontecer algo ruim mas sim por possivelmente estar incomodando alguém que não pertencia à suas intenções.
Bateu uma última vez na porta e esperou mais alguns segundos e, como já esperava, ninguém veio lhe atender. Concluiu que o que estava fazendo seria inútil. Deu meia volta e seguiu pelo caminho de cascalho que levava até a pequena porta de madeira na cerca.
— Ei! — Talion imediatamente virou-se para trás ao ouvir uma rouca e grossa voz chamá-lo. Logo identificou o vultuoso Senhor Gordel que veio averiguar quem lhe incomodava com batidas na sua porta. — Por que está batendo na minha porta, imbecil?!
— Han... boa noite, me chamo Talion — O rapaz demonstrava-se totalmente desajeitado em tal situação. — Sou o filho de Laurelia, a sua funcionária. Quer dizer, sou o filho mais velho dela.
Talion começou a dar lentos passos para se aproximar enquanto se identificava. Gordel esticou o braço para o lado a fim de pegar alguma coisa e logo voltou com uma lamparina. A luz do recipiente revelou uma feição sonolenta e desgrenhada. O gordo homem usava um folgado pijama e Talion não pôde deixar de notar as confortáveis pantufas que ele usava em seus pés.
— Ah, você é Talion, aquele rapaz que trabalha igual um burro de carga para qualquer idiota daqui.
— Isso... — Contradizer as palavras do homem que ele pertubara aquela hora da madrugada de forma alguma era uma boa opção. — Esse sou eu.
— E por que está batendo na minha porta a essa hora da madrugada? Daqui uma ou duas horas o dia vai amanhecer. Você não dorme, moleque?
— Não quis te perturbar, Gor... Senhor Gordel.
— Então o que quer? Veio dormir aqui na minha casa?
— É que eu soube que o meu irmão causou uma confusão na sua taverna essa noite. E... caso o senhor esteja querendo despedí-lo, eu vim oferecer os meus serviços.
Gordel o observou por alguns segundos com os olhos semicerrados. A desconfiança foi a primeira coisa que lhe tomou.
— Vai embora daqui, moleque. Já tenho que suportar as besteiras daquele seu irmão esquisito. Não quero mais um imbecil na minha taverna.
O homem deu um passo para trás e começou a fechar a porta para terminar aquele assunto fastidioso.
— Espere! — O rapaz impulsivamente estendeu o braço para impedir que a porta fosse fechada na sua cara.
— Eu já disse para você ir embora!
— Olha, eu sei que não gosta dos serviços do meu irmão. Também sei que você só aceitou ele lá porque minha mãe te implorou isso. Não sei em qual função ele trabalha para você mas eu garanto que posso ser mais útil do que ele.
— Despreza seu irmão tanto assim, moleque?
— Não. Não o desprezo de jeito nenhum. Não estou te pedindo que demita ele para me aceitar, mas sim que também me dê uma oportunidade de trabalhar assim como deu à ele.
O homem fungou o nariz após ouvir a declaração do incômodo rapaz em sua frente. Olhou para o céu e viu as horas de descanso que estava sendo lhe tomado.
— Seu irmão já atende os clientes — disse Gordel. —, enche os copos e cobra os pagamentos. Sua mãe serve cada mesa e recolhe tudo depois. Eu sei que você já fez todo tipo de trabalho pesado neste vilarejo. Não desprezo seu serviço, moleque, mas os trabalhos braçais que você seria responsável de fazer na minha taverna me custaria altos pagamentos.
— Na verdade, pagamento alto não me interessa.
— Então por que quer tanto trabalhar para mim? Está com inveja do seu irmão?
— As pessoas deste lugar me vêem como um burro de carga. Não quero ficar aceitando qualquer trabalho para ganhar só uma ou duas moedas.
— Então não aceite. Por acaso alguém aqui te obriga a trabalhar?!
— O pagamento da minha mãe não é o suficiente para comprar a comida do almoço e da janta todos os dias. Fora que ainda estamos consertando o moinho por causa daquelas chuvas. Então eu preciso ajudar de alguma forma e não vou conseguir isso ganhando uma moeda de vez em quando.
Gordel deu um abafado suspiro.
— Mmm... então está mesmo disposto a trabalhar todos os dias por um pagamento mensal mesmo que não seja por muitas moedas?
— Sim, estou sim. A única coisa que quero é um trabalho honesto por pagamento garantido.
— Tem algumas rachaduras nas paredes da taverna, buracos no telhado, cadeiras frouxas, e a pintura do lado de fora está desgastada. No fim do mês o seu pagamento será o equivalente a de uma moeda por dia de serviço. Você terá trinta moedas se não gastá-las com besteiras. Já é mais do que alguns ajudantes ganham nessas lojas por aí.
— Não — disse Talion involuntariamente. — Digo, eu prefiro que me pague uma moeda a cada noite. Pretendo ficar até a última hora para ir embora com minha mãe e meu irmão. Não deixarei o trabalho mais cedo, então é justo que eu receba uma moeda por um dia completo de trabalho.
O homem analisou desconfiadamente o pedido do rapaz.
— Parece que você não despreza tanto seu irmão como pensei. Seja como você achar melhor. Mas com certeza você vai ter menos lucro porque vai gastar a moeda do dia com vagabundagem.
Talion permaneceu quieto ao ouvir a fala do homem. O alívio de ter enfim conseguido o que parecia quase impossível obter de tal homem naquela hora da madrugada fez com que qualquer insulto passasse despercebido aos seus ouvidos.
— Chegue amanhã e dê uma olhada na taverna. Se quiser começar algum serviço amanhã mesmo, receberá seu pagamento do dia. Tenha um bom fim de noite e não bata de novo na minha porta.
Com o barulho de trancas sendo seladas a negociação foi encerrada. Talion não teve a oportunidade de dar um simples "boa madrugada" para seu futuro patrão pois a porta se fechou mais rápido do que sua boca se moveu para falar.
Em sua mente ele sabia que a negociação com o ganancioso Gordel não poderia ser de nenhuma outra forma mais agradável. A vitória em ter conseguido uma contratação das mãos de tal homem era motivo de alegria tendo em vista as baixas chances que ele possuía de obter tal emprego. Sendo assim, a ansiedade pelo dia de amanhã acendeu em seu interior novamente.
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