- Um Norsel, Um Trenó e Um Punhal -
Derion deu os primeiros passos ainda olhando fixamente naqueles olhos amarelos. O norsel permaneceu parado encarando-o e apreensivo para saber o que aquele humano estaria prestes a lhe fazer. Joron afastou-se para que o animal focasse somente no asmabeliano e Virmon e Enerius observavam num canto.
— Como vai, garoto? Relaxa, eu não quero te fazer nenhum mal. — Derion não demonstrava medo mas sim respeito. Esperava profundamente que a criatura estivesse compreendendo o que ele lhe falava e estendeu a mão para tentar tocá-lo. — E aí? Será que dá para confiar em mim agora?
O rapaz demonstrou determinação e ousou tocar no pescoço do animal. Este, por sua vez, ficou imóvel e por um momento pareceu não compreender o que aquele rapaz estava fazendo. Virou sua cabeça para a frente e viu os três observadores, entre eles o mesmo que havia lhe atacado momentos antes.
Reconhecendo o perigo, o norsel decidiu por não baixar sua guarda e soltou um berro para o andor de pele negra em sua frente. Derion imediatamente se afastou em passos assustados. O animal ergueu-se nas patas traseiras e abriu as asas, tentou bater os cascos no rapaz mas este deu um pulo para trás escapando de ser atingido.
— Woow... parece que ele não foi com a sua cara, hein?! — Enerius não segurou seus exagerados risos.
Derion olhou para Joron que o observava com um sorriso de deboche. O rapaz preferiu não comentar nada, apenas ajeitou seu pijama e se recompôs do susto.
— Bom, já que você não teve sorte, deixa eu tentar, né?
Joron esperou alguns minutos para se aproximar do norsel. Andou para o outro lado do trenó a fim de impedir que o animal visse os demais andors, o que poderia frustar sua tentativa. Ele mostrou-se paciente e de certo modo gentil pois mantinha sempre uma postura de respeito e reverência diante do animal. Virmon e Enerius não prestaram atenção em suas tentativas mas ficaram em silêncio para não interromper. Derion, por outro lado, estava com a atenção fixa em todos os movimentos e palavras que o rapaz utilizava para domar a desconfiada criatura.
Após alguns minutos de espera, eles enfim tiveram o resultado, Joron não somente o tocou como também acariciou sua cabeça e pescoço. O animal revelou um comportamento dócil e permitiu que Joron esfregasse carinhosamente sua pele coberta de minúsculas penas brancas.
— Acho que já podemos dar uma volta nele.
Derion analisava em seus pensamentos tudo o que Joron fez em sua comunicação com a criatura. O que teria ele feito de errado em sua tentativa? Não conseguia encontrar uma resposta.
— Relaxa, Derion — disse Joron. — Você viu como que se faz, vai conseguir domar o norsel na hora do teste.
— É... eu espero que sim.
— E aí? Já podemos ir? Quero ver como é a vila lá embaixo. — Virmon aproximou-se do trenó e teve que parar seus passos quando o animal virou-se para ele em ameaça.
— Ei! Ei! Tá tranquilo, ninguém aqui vai te fazer mal. — Joron interviu para que o norsel não o atacasse.
Demonstrando certa apreensão pela aproximação dos outros andors, o animal permitiu que todos subissem no trenó e já tinha o entendimento que deveria conduzí-los nos próximos instantes. Virmon subiu e sentou no banco da frente. O veículo era de madeira lisa e possuía duas pequenas portas nas laterais e uma barra de aço para os passageiros segurarem.
— Esses mestres podiam fazer um banco mais confortável, viu — disse Virmon.
Derion subiu em seguida. O rapaz estava quieto e reflexivo. Sua frustração por não ter tido êxito em domar o norsel estava evidente em seu comportamento. Sentou no banco traseiro ficando atrás de Virmon e afundou-se em sua mente.
— Antes ou depois que a gente chegar na vila? — perguntou Enerius em sussurros.
— Antes, para a gente se livrar do corpo lá mesmo — respondeu Joron sem olhar em seu rosto.
Enerius adiantou-se em subir no trenó e sentou-se ao lado de Derion no banco de trás. O rapaz afastou-se levemente para o lado a fim de não precisar estar encostado a ele por todo o tempo.
— O que é que foi? — indagou Enerius rispidamente. — Estou fedendo por acaso?
Joron enfim entrou no trenó e sentou-se ao lado de Virmon fechando assim a pequena porta lateral.
— Me diga que você sabe conduzir o norsel também? — quis saber Derion inclinando-se para frente.
— Relaxa, sabichão. As coisas se aprendem fazendo.
Joron tentou puxar as rédeas levemente para que o animal se colocasse na posição correta de partida. Este obedeceu ao comando e se posicionou na frente do trenó. Em seguida, um silêncio pairou sobre os quatro.
— Vai! — O animal permaneceu imóvel após o grito do rapaz. — Corre! Voe! Ande! Ande!!!
Os repetidos movimentos agressivos que o andor aplicava com as rédeas se mostraram inúteis.
— Deve ter uma palavra especial que ele obedeça, sei lá — Virmon opinou.
— Que ótimo! Alguma sugestão?
— O Mestre Armoren, nosso professor de Criaturas — iniciou Derion. — , ensinou uma vez que a ordem que os norséis reconhecem como comando de partida é uma palavra do idioma antigo escrita em símbolos.
— E que palavra é essa?
— Enteor, se não me engano.
— Enteor — repetiu Joron para o animal, mas este permaneceu quieto. — Não funcionou.
— Tente falar com mais firmeza, e bata as rédeas.
— Enteor!!! — O andor gritou e bateu as rédeas violentamente.
E eis que o norsel reconheceu o comando. O animal soltou um berro e iniciou seus passos em um repentino solavanco. Joron, que estava de pé no trenó, foi jogado para trás e caiu sobre o banco ao lado de Virmon. A criatura estava a toda velocidade e corria em linha reta para o fim daquela área quadrangular. Os quatro jovens viram-se prestes a deixar o chão pois o animal já preparava a abertura de suas asas. Os quatro seguraram firmemente nas barras de aço e olhavam com apreensão o caminho a frente. Ou melhor, o fim do caminho.
O norsel finalmente abriu suas longas e belas asas brancas revelando uma envergadura muito maior do que quando estavam dobradas. Com um salto rumo ao abismo, o animal mergulhou levando consigo o trenó e fazendo os quatro jovens soltarem gritos de temor. Mas a queda não se prolongou por muito tempo pois com o bater de suas asas ele elevou o trenó aos ares e emergiu do vazio. Todos foram empurrados para trás e tiveram que manter as mãos firmes nas barras.
O norsel bateu suas asas repetidas vezes para tomar impulso fazendo com que o vento atingisse fortemente os quatro passageiros. Seus cabelos esvoaçavam e seus olhos se fechavam por si só. Joron ainda segurava as rédeas mas não sabia se teria que dar algum comando específico para conduzí-lo nos ares. Derion inclinou-se na portinha ao seu lado e olhou para baixo, pôde ver toda a imensidão do glorioso Templo de Nerendor visto de cima. Grandes salões com abóbadas esculpidas, pátios cuja extensão era impossível precisar e pequenas estátuas dos majestosos Ejions que deixaram de existir. Devido à altura e a direção que a carruagem tomava, não pôde vizualizar o local onde os guardas aliais estavam e torcia para que eles não os avistassem também.
— A vila é lá embaixo! — gritou Virmon pois via que o norsel elevava-se ainda mais na altura que os guiava.
— Eu sei, idiota! Acontece que eu não sei como fazer ele mudar de direção!
— Tente puxar as rédeas para o lado — Derion o aconselhou.
Joron fez sua tentativa, o que inesperadamente trouxe o resultado que esperava. O norsel curvou para a direita fazendo o trenó mudar repentinamente de direção. Ambos os quatro foram jogados para o lado e logo viram a criatura imergir com o veículo para baixo. Assim eles foram diminuindo a altura em que voavam e o animal por uns momentos parou de bater as asas a fim de fazê-los perder altitude.
O Templo de Nerendor foi construído no topo de um monte na Cordilheira Rubente no extremo norte de Gandalar. A área é composta por um conjunto de montanhas de coloração avermelhada devido à natureza semiárida do reino dos gandalianos. O monte não era íngreme e possuía uma escadaria que permitia o acesso à pequena vila destinada às funcionárias e aos comerciantes que traziam suas entregas solicitadas e administradas pelos mestres andors. Escadaria essa que era transitada somente pelas funcionárias e pelos comerciantes já que os andors utilizavam o transporte de norséis poupando-se assim do extremo cansaço físico.
O norsel descia gradativamente e dava voltas no monte permitindo a vista da pequena vila por vários ângulos. Derion observava o horizonte escuro e via poucas luzes vindas da vila, julgou que as habitantes já haviam se retirado para dormir ou simplesmente o local era desprovido de iluminação noturna. Pensou consigo mesmo o quanto a vida pessoal das mulheres do templo era desconhecida por todos os estudantes. Não que isso fosse de seu interesse, mas as funcionárias serem proibidas de trocar muitas palavras com os jovens era algo no mínimo a ser observado.
Por um segundo o mundo parou. O forte vento parou de bater em sua face. Seu estômago foi consumido por uma sensação fria e seu ouvido esquerdo percebeu o que estava prestes a lhe acontecer.
Derion foi rápido em seu movimento de defesa e segurou o punho de Enerius que tentou lhe cravar um punhal. O agressivo rapaz se inclinou sobre seu rival forçando a descida de seu braço mas, mesmo estando prensado contra a porta do trenó, Derion manteve-se firme segurando o punho do inimigo à poucos centímetros de sua face. Enerius bufava pela força que empregava na descida de seu braço mas até então mostrou-se inútil. Sendo assim, recuou com seu punhal e em uma fração de segundos estendeu a outra mão para o rosto de Derion. O potente feixe de luz que disparou teria explodido a cabeça do rapaz se este não tivesse se movido para a esquerda.
O norsel espantou-se pela repentina luz que surgiu atrás de si, a mesma luz branca que quase lhe atingiu quando enfrentou aquele jovem andor inconsequente. O animal soltou um berro e mudou subitamente de direção a fim de se afastar do local que a luz apareceu, a ação foi tão inesperada que empurrou Joron e Virmon para o lado fazendo este soltar as rédeas de sua mão. Enerius foi jogado agressivamente para trás dando a oportunidade de Derion enfim se libertar e se recompor. O rapaz mostrou-se extremamente atônito e confuso.
— Mas que merda é essa?!
Desta vez Enerius não veio sozinho, Virmon atravessou para o banco traseiro e atacou o asmabeliano na tentativa de enforcá-lo, segurou firmemente em seu pescoço com uma mão a abriu espaço para Enerius fazer o mesmo, este aparentemente perdera seu punhal na repentina mudança de direção do trenó.
Derion mais uma vez estava prensado contra a baixa porta do veículo e tentava se desvencilhar a todo custo. A fúria nos rostos de seus dois agressores revelavam a definitiva intenção de matá-lo. O rapaz involuntariamente colocou a mão direita no rosto de Enerius na tentativa de afastá-lo mas isso não foi capaz de lhe ajudar. Sua respiração já estava falhando, sua testa exibia veias pela força que empregava em sua defesa e seus dentes rangiam pela fúria que lhe consumia.
Ainda com a mão direita no rosto de seu agressor que esforçava-se na tentativa de lhe enforcar, Derion soltou um grito de fúria e em questão de segundos a cabeça de Enerius foi explodida por uma rajada de energia disparada de sua mão.
A atenção dos três andors foi tomada pelo o que acabara de acontecer. Virmon foi coberto pelo sangue de seu colega, afrouxou as mãos do pescoço do rapaz e virou-se para o lado, a única coisa que viu foi um corpo com a coluna cervical à mostra e sem uma cabeça. O corpo caiu para trás e dobrou-se na baixa porta do trenó, pouco depois despencou e desapareceu na escuridão.
Derion teria partido para cima de Virmon mas o horror pelo o que acabara de fazer estava estampado em sua face. Seu rosto estava coberto por gotas vermelhas e sua mão ainda fervia pelo calor de sua ação. Jamais imaginou que um dia faria tal ato e lamentava profundamente por isso.
— Desgraçado...
A maldição de Virmon teria se prolongado se não fosse o impacto que o trenó levou ao se chocar no telhado de uma casa na vila. A colisão destruiu telhas e abriu um grande buraco no teto. Os três andors tiveram que se segurar firmemente e Joron adiantou-se em retomar a direção do norsel, puxou as rédeas e tentou desviar de mais casas que apareceram em seu caminho. O animal batia suas asas e inclinava-se para a direita e para a esquerda desviando assim das humildes moradias.
A vila era composta apenas de algumas casas simples constituídas de madeira e pedra com aspecto terroso. Havia dois enormes armazéns trancados onde os mantimentos e as mercadorias dos comerciantes era inicialmente armazenada. Em um lugar pouco mais afastado das casas, estava a área destinada ao embarque e desembarque dos norséis que transitavam do templo à vila. Uma área quadrangular cercada por um baixo muro de pedra onde caixotes eram amontoados. Nesta área e ao redor havia alguns postes negros com esferas luminosas a fim de chamar a atenção dos norséis em meio a noite, e foi isso o que levou o animal a voar em direção ao local. Este cessou as batidas de suas asas e as usou para perder velocidade. Aproximou-se do chão e logo viu-se usando suas patas para chegar na área de sua parada.
Em poucos minutos o trenó já era arrastado pelo chão e perdia velocidade gradativamente. O norsel demonstrou experiência em realizar tal tipo de viagem pois entrou na área quadrangular e lentamente arrastou o trenó até este estar no centro do local pronto para o desembarque.
Derion mal esperou a parada do veículo e pulou pela baixa porta para enfim sair. Não disse nada, apenas caminhou olhando para o chão com os punhos semicerrados e os pensamentos de horror tomando sua mente.
— Ei! Aonde você pensa que vai?! Volte aqui, seu infeliz!
Os gritos de Virmon foram ignorados. Derion estava pensativo demais para discutir ou enfrentar alguém.
— Se você voltar para o templo subindo a escada aqueles guardas vão descobrir tudo o que rolou e vão contar para o Grimbor! — Joron esbravejou saindo do trenó.
— Tentou me matar, Joron! Por que?! — Derion virou-se para encarar o rapaz a poucos metros em sua frente. – Está com medo de ser derrotado por mim na competição?! O Grimbor vai ter que saber disso sim.
— Você vai ferrar com você e com a gente se contar isso para ele, seu imbecil!
— Eu acho que eu mereço um castigo por ter sido tão burro. E vocês dois merecem mais ainda.
Derion virou-se novamente e seguiu em direção à vila.
— Ei! Você não pode fazer isso! Volte! — Virmon estendeu a mão para atacá-lo com algum feitiço mas Joron abaixou seu braço.
— Deixe ele ir. Se a gente lutar aqui alguém que mora nessa vila pode se machucar, aí sim a gente estaria mais ferrado.
— A gente já tá ferrado, Joron. O Grimbor talvez não possa te expulsar, mas e quanto a mim? — Com um brusco movimento ele se desvencilhou da mão de seu colega e deu-lhe as costas, caminhou até o trenó e sentou-se no banco dianteiro. — Você vai vir ou não?! Eu não quero subir essas escadas!
Não lhe restando outra opção, Joron suspirou e deu meia volta. Voltou para o veículo e, lembrando-se do comando de partida, fez o norsel iniciar a corrida para retornar ao templo.
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