- Pães, Bolos e Tortas -
A tão aguardada manhã havia chegado. Embora tivesse dormido apenas metade das horas que costumava dormir, Eugus acordou cedo e logo vestiu-se da forma que mais lhe agradava vestir-se. A exagerada limpeza de seu avental branco lhe causava agonia e uma gravata borboleta rosada era o que o identificava como proprietário da padaria; além de lhe dar certo respeito aos olhos dos demais senhores.
Assim como todos os dias estavam sendo, Eurene dirigiu-se para o trabalho com os vorgos mas desta vez Devin não a acompanhou pois sua mãe pediu que ele levasse as tortas uma a uma para a padaria à medida que estas eram esquentadas no forno. Enquanto isso, Eugus organizava-as cuidadosamente na vitrine para ficarem o mais chamativo possível.
Eurene realizou seu trabalho normalmente como sempre. Mas, por alguma razão que não sabia dizer o motivo, ela sentia-se sozinha. O vilarejo estava à alguns metros de distância, os moradores estavam contentes e gentis como sempre, os vorgos estavam silenciosos e calmos no curral e ela caminhou os mesmos passos que caminhava todas as manhãs. Ora, o que há de diferente dessa vez?
— Devin, pegue o balde que...
Ela logo interrompeu suas palavras ao se dar conta que seu irmão irritante não estava ali.
Devin não desempenhava um papel importante durante o trabalho com os animais, passava a maior parte do tempo brincando e correndo por todos os lados. Na verdade, Eurene nunca lhe cobrou esforço nenhum durante a atividade, nem se importava em ter que fazer a maior parte do serviço por conta própria. De certa forma, ela podia dizer que lhe agradava rebaixá-lo a um pequeno menino de nove anos, embora era exatamente isso o que ele era. Irritá-lo lhe divertia, o que também era recíproco por parte do irmão. Mas, após alguns minutos de reflexão, mesmo tendo certa dificuldade em admitir para si mesma, Eurene podia dizer que sentia a falta dele ali.
O trabalho levou mais tempo para ser realizado e consequentemente mais esforço também. Eurene colocou os baldes de leite em suas posições na carroça e logo seguiu seu caminho de volta para casa. Sem interrupções desta vez, ela logo chegou em frente ao pequeno portão que delimitava sua propriedade e bateu a argola da porta para chamar sua mãe. O leite foi entregue, e logo ela seguiu para devolver a carroça ao Estábulo de Enorius. Em silêncio ela foi e em silêncio retornou. Embora o trabalho desta manhã lhe exigisse um esforço a mais, Eurene não estava nem um pouco cansada e ao invés de voltar para casa, preferiu ir ver como estavam indo as coisas na padaria.
A fila não estava extensa, talvez fosse por que nem todos sabiam do inesperado retorno de Eugus. Além do mais, a Senhora Lolene ainda não havia desistido de sua recém inaugurada padaria e, felizmente ou não, já gabava-se de possuir alguns clientes fiéis. Quase todas as mesas redondas do local estavam ocupadas por uma ou duas pessoas que sentavam-se para saborear as prometidas e bem faladas tortas.
Os asmabelianos, pelo menos os pertencentes ao Vilarejo Erban, costumavam comer educadamente. Sempre usavam os talheres corretos e limpavam a boca com os panos adequados.
À medida que adentrava o estabelecimento, Eurene pedia licença aos senhores e senhoras que aguardavam na fila com suas bengalas e sombrinhas. Ela passou pelo balcão e deparou-se com um apressado Eugus que fazia o possível para atender todos os fregueses. O homem estava frenético; cortava os pedaços de cada torta solicitada ao mesmo tempo que preparava um chá para os clientes iniciarem seu dia. Esse era um dos costumes de Asmabel.
— Está tudo certo por aqui, pai? — perguntou a menina que o observava.
— Ah, olá, Eu. Está sim. Só estou com uns pedidos atrasados mas nada que deva se preocupar. — O confeiteiro não possuía tempo nem para virar-se para a menina. — Aqui está, Senhora Velona.
A idosa rabugenta analisou o pedaço de torta colocado em cima do balcão e não expressou boa reação.
— Eu pedi recheio de ameixa, não de mirtilos! Por acaso você não sabe a diferença entre ameixa e mirtilo?!
— Nós não temos torta de ameixa no momento, Senhora Velona. Mas tenho certeza que o gosto desta não deve estar muito diferente de...
— Basta! — interrompeu-o. — Não serei obrigada a comer algo que não quero. Tenha um bom dia.
A idosa deu o "bom dia" mais áspero que Eurene já tinha ouvido e virou-se para sair do lugar que, segundo ela, havia lhe tratado com tamanho desrespeito.
— Segunda cliente insatisfeita do dia. — comentou o confeiteiro.
— Quem foi o primeiro?
— O Senhor Helino, ele queria comprar alguns pães. Eu insisti para ele experimentar alguma torta mas nenhuma lhe interessou.
— Acho que alguns dos moradores daqui nunca provaram uma torta na vida, talvez seja por isso que devem ter esse medo de prová-las.
— Medo de uma torta... olha o quanto somos covardes.
— Eu gostaria de ser atendida, sim?
A atenção dos dois imediatamente foi direcionada para o balcão onde a Senhora Molline aguardava sorridente com seu chapéu de cor roxo.
— Peço desculpas pela minha falta de atenção, Senhora Molline. Em o que posso serví-la?
— Ah, acalme-se, querido. Antes me diga como você está de saúde? As ervas que lhe mandei lhe fizeram bem?
— Claro, claro, fizeram sim. Meu pé já está normal. Acho que em dois ou três dias não haverá mais nenhuma evidência de que...
— Ótimo — ela interrompeu-o. — Aqui está o valor que peço pelas ervas que cultivei e que cortei à pedido de sua gentil esposa.
O homem estendeu a mão para pegar o pedaço de papel contendo os números anotados e surpreendeu-se com o valor total.
— Mas... esse valor é o mesmo que um balde de leite de vorgo.
— Leite de vorgo? Que bom que pensa assim, sofro com a tarefa de ter que disputar todas as manhãs um pouco de leite que aqueles malditos vendedores trazem. Eles cobram preços absurdos, sabe? Mas já que você prefere me pagar em leite, então eu aceito de bom grado. Por acaso você não teria aí torta de limão, teria?
Eugus se viu impossibilitado de contradizer as palavras da mulher a respeito do pagamento. Os clientes estavam esperando na fila e a tagarela senhora o olhava com um largo sorriso.
— Pai? — Eurene o chamou. — Ainda tem torta de limão?
— Han... sim, tem sim.
Eugus rapidamente apanhou uma pedaço da aromática torta e colocou num pratinho para serví-la.
— Mmm, minha favorita. — Ela fez questão de aproximar o pedaço até seu fino nariz. — Não tenho dúvida que o gosto está tão agradável quanto o cheiro. Uma moeda?
— Duas. — Eugus corrigiu-a do jeito mais simpático possível.
— Oh, que inusitado. A minha querida amiga Lolene cobra uma moeda por unidade de qualquer produto em sua padaria. Que diferença pode haver entre lá e aqui?
— A diferença é que ela não vende tortas. Nós vendemos. — Foi a resposta de Eurene.
O largo sorriso da mulher levemente se desfez à resposta lhe dada por Eurene. Esta via-se observada por seu pai e por algumas pessoas que ouviram sua resposta grosseira.
— É claro — a cliente concordou.
Sem mais nenhuma contestação ela colocou duas moedas de ouro sobre o balcão e apanhou seu pedaço de torta.
— Tenha um ótimo dia, Eugus. Diga à Nirene que lhe mando um abraço.
Ambos pai e filha ficaram observando a sorridente mulher deixar o local.
— Você foi grosseira — ele a repreendeu.
— Ela é uma falsa.
— Não importa. Trate bem se quiser ser tratada bem.
— Também acho que ela tentou te envenenar.
— Eu estava brincando com você. Não foi ela quem me envenenou, foi a Lolene com aqueles pães chamativos.
— Por acaso vocês têm pães para vender?
Novamente a conversa dos dois foi interrompida por um senhor que aguardava ser atendido.
— Infelizmente não, Senhor Dorelo. Mas talvez possa se interessar por alguma torta.
Enquanto seu pai tentava vender sua mercadoria, Eurene avistou Devin entrando no estabelecimento carregando uma grande cesta com um pano cobrindo o que for que houvesse em seu interior.
— Ah, vejam só! Bem na hora! — O confeiteiro apanhou a cesta das mãos do menino e jogou os pães dentro de um espaço retangular no interior da vitrine. — Quantos pães vai querer, Senhor Dorelo?
Assim se seguiu o resto da manhã. Eurene ajudou-o a fazer mais chá à medida que era solicitado, Devin transitava entre a padaria e sua casa carregando cestas e Nirene apressava-se em assar mais pães para Devin levá-los. O dia nunca estivera tão atarefado.
O fim da tarde, foi quando Eurene viu-se livre desde quando tinha acordado naquele dia. Para não ser atarefada com mais alguma coisa, ela preferiu ir para qualquer lugar onde pudesse ter um pouco de paz. Pensou no curral dos vorgos mas o Senhor Borges poderia avistá-la e pensar que ela poderia estar ordenhando algum animal que pertencia à outro morador. Pensou no telhado de sua casa mas sua mãe poderia avistá-la e dar-lhe alguma tarefa. Sendo assim, optou por voltar à padaria já que seu pai não estava mais por lá. Eugus estava contando os lucros das vendas deste dia e Devin provavelmente estava correndo por aí.
A mudança da tarde para a noite, era quando o vilarejo se encontrava em paz pois os moradores recolhiam-se para suas casas. Assim, não precisou cumprimentar quase ninguém durante seu percurso. A padaria estava com as portas fechadas, mas não era seu interior que lhe atraía, mas sim o teto. Um barril era o suficiente para fazer com que ela alcançasse o telhado. Barril este que armazenava água para os afazeres no estabelecimento. Assim, apoiando-se na chaminé do forno, ela rapidamente alcançou o tão desejado lugar.
O telhado da padaria não apresentava nada em especial. Apenas telhas vermelhas como todos os outros estabelecimentos e moradias, e uma vista para o mundo à frente. Ela sentou-se muito próximo à beira das últimas telhas e cruzou os braços sobre os joelhos. O vento batia em seu rosto e balançava seus cabelos ondulados. O sol estava se pondo e causava o comum tom rosado que distinguia o céu de Asmabel dos demais reinos.
Será que essas são as coisas que terei que fazer por toda minha vida? Ou há coisas mais interessantes que uma menina poderia viver? Não é possível que o mundo se limite aqui. E se de fato haver mais coisas lá fora, o que eu terei que fazer para descobrir? Acho que pela primeira vez devo estar usando mais a imaginação do que Devin costuma usar, pensou consigo mesma.
— Se perdeu nos seus miolos?
A reação da menina foi rápida em se virar para trás. Mas logo aliviou-se ao ver que não era ninguém com quem tivesse que se esclarecer.
— Não. Só estou... pensando.
Devin aproximou-se dela e sentou-se ao seu lado da mesma maneira que ela estava. Ele trazia sua espada de brinquedo como sempre.
— Me seguiu? — ela o perguntou.
— Sim. Te vi passando em silêncio agora a pouco. Achei que ia roubar alguma coisa.
— Por que achou isso?
— Mamãe me disse que só os ladrões andam escondidos e em silêncio.
— Os ladrões e os que gostam de ficar um pouco sozinhos para pensar.
— Por que está pensando?
— Han... porque sim, ora. Todo mundo tem que pensar. Você não pode controlar sua mente em só o que você quer pensar... Quer dizer... pode se tiver um lugar calmo ou quieto, eu acho.
— Aqui é um bom lugar para pensar, não é?
— Sim. Foi o único que consegui achar.
— Eu sei disso. É aqui que eu venho quando me escondo para a mamãe não me dar alguma coisa para fazer.
— Então você já subia aqui antes?
— Claro, já sei até quais são as melhores telhas para pisar sem fazer barulho. Não viu que subi sem você nem perceber? Poderia ter de derrubado com um só golpe. — O menino movimentou avidamente a espada de brinquedo.
— Você iria precisar de mais do que isso para me derrubar daqui, seu fedelho.
Devin parou seus movimentos ao ouvir a declaração da irmã.
— Então... — Ela tentou continuar para que ele não se chateasse. — Achou melhor o dia de hoje? As tarefas?
— Sim, sim. Só levei as tortas e os pães que mamãe preparava.
— Com certeza deve ter se divertido.
— Sim. Você não se divertiu?
— Como eu iria me divertir tirando leite de vorgos?
— Ah, você poderia montar neles. Ou... fingir que eles são um enorme valonfin que quer atacar o vilarejo!
— Um enorme o quê?
— Valonfin! Aqueles das histórias do livro que mamãe lê.
Eurene finalmente percebeu que tudo o que o menino se referia não passava de uma história de fantasia.
— Olha — disse Devin apontando para o céu. —, elas estão aqui.
E lá estavam elas, o fenômeno natural que por tantas vezes havia tomado os pensamentos de Eurene e seu irmão. Era quase incontável a quantidade de esferas luminosas que subitamente surgiram à alguns metros de altura do solo. Cada uma flutuava e movia-se levemente e suas cores eram unicamente amarela em contraste com o rosado do céu.
Eram todas belíssimas e brilhavam como estrelas certamente palpáveis a quem for que tivesse a altura de uma enorme árvore. Muitas eram as explicações que os moradores do humilde vilarejo buscavam dar àquele fenômeno; em sua maioria eram as crianças que gastavam horas de suas noites observando-as e imaginando o que seriam.
— O que acha que elas são? — perguntou o menino maravilhado.
— Sempre acreditei que elas eram estrelas que caíam do céu. Quando eu tinha a sua idade, eu costumava correr por todo esse campo tentando pegar qualquer uma que estivesse ao meu alcance. Só parei de perseguí-las quando entendi que por mais alto que eu pulasse, eu nunca seria alta o suficiente para pegá-las.
— Mas estrelas podem cair do céu?
— Não, por isso não acredito mais nisso.
— Pois eu acho que são almas.
— E por que seriam almas?
— Talvez as pessoas que já morreram estejam tentando encontrar suas crianças que estão aqui.
A sugestão parecia complexa demais aos ouvidos de Eurene. Na verdade, perguntou a si mesma onde o menino teria tirado tal criatividade para formular uma resposta completa como aquela. De qualquer forma, ainda preferia evitar de acreditar em tal sugestão. Assumiu a si mesma que pensaria em uma resposta mais simples e realista.
— Você veio aqui para pensar em quê? — perguntou o menino.
— Em nada.
— Então veio até aqui para pensar em nada?
— Só estava... tentando imaginar o que há lá fora.
— Onde? Lá fora no pasto? — A mente do pequeno limitava-se apenas ao que seus olhos alcançavam.
— Lá fora no mundo. Muito além deste humilde vilarejo.
— Mamãe diz que além do vilarejo tem os outros vilarejos. E a cidade do reino onde mora o rei.
— Sim, mas como eles são? Os outros vilarejos? — O menino não compreendia o que a irmã estava tentando lhe expressar. — Já imaginou a grandeza que deve ser ver uma cidade por perto?
— E se a cidade for feia?
— Bom, mesmo que ela seja feia, pelo menos poderíamos dizer que já estivemos na capital do reino, a Cidade Rosada.
— Será que tem esse nome porque os tijolos dela são cor-de-rosa?
— Não, com certeza não existem tijolos dessa cor.
— Mas é para lá que você quer ir?
— Não, claro que... — O menino por um momento ficou observando-a aguardando a irmã completar sua resposta. — Digo, talvez sim. Quem sabe? Uma cidade é um bom lugar para ir conhecer.
— Eu queria ir conhecer Edaron.
— Onde?
— Edaron, o lugar de treinamento dos Cavaleiros.
— Ah, deixe-me adivinhar, nossa mãe leu isso em um dos livros de histórias?
— Foi. Mas não são histórias inventadas, aconteceram de verdade.
— Não duvido delas.
— Eu ainda vou viajar para lá — disse Devin olhando para as esferas luminosas.
— Para onde?
— Edaron! Quero ser um cavaleiro.
— Ah, sim.
— Você não quer viajar para outros lugares?
— Claro que eu quero. Não posso dizer que nossa vida neste lugar é ruim. Mas não sei se quero passar o resto dos meus dias fazendo as mesmas coisas.
— O resto de seus dias? Você está morrendo?!
— Não, não estou morrendo.
— Bom, então não passe o resto dos seus dias fazendo as mesmas coisas. Vá para outro lugar.
— Não é simples assim. Imagine o que a mãe ou o pai acharia se eu dissesse que não quero mais morar aqui no vilarejo. Além do mais, para onde eu iria? Não conheço nada além desses campos.
— O Senhor Efino deve conhecer.
A introdução do nome do famoso mercador charlatão na conversa por parte de Devin foi muito inesperada.
— Han... sim, ele deve conhecer muitos lugares sim.
— Devia viajar com ele então, já que quer tanto visitar a cidade do reino.
— Com o Efino? Não mesmo. E eu ainda assim precisaria de uma boa desculpa para dar aos nossos pais para deixar o vilarejo.
— Quer que eu invente uma desculpa para você ter que ir embora?
A oferta de certa forma a espantou. Não sabia dizer se o irmão estava realmente oferecendo-lhe ajuda ou se estava mais uma vez caçoando-a. Se é que fosse possível chamar tal oferta de ajuda.
— Você quer que eu vá embora?
— Não. Mas se você quiser ir, eu é quem não vou atrapalhar.
— Pensei que você também quisesse partir para conhecer outros lugares.
— Eu quero — respondeu o irmão. — , mas não com você.
A irmã virou-se para ele e quando percebeu que um leve sorriso de canto de boca surgiu na face do menino, ambos sorriram.
— Não sei se as coisas aqui vão mudar ou se vão continuar as mesmas para sempre — Eurene continuou. —, mas seja lá como for, posso dizer que eu estou bem aqui.
— Sim, mas nada tem que ser chato, coisas chatas são ruins. Além disso, eu Devin, o Destemido — O menino levantou-se e ergueu sua espada de madeira para o céu. —, sou o menino mais legal que você pode encontrar nesse lugar.
— Ah, sem dúvida é. — Ela concordou com um tom de sarcasmo. — Mas você está certo, nada precisa ser chato. Na verdade, sinto que as coisas serão bem diferentes a partir de agora.
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