- O Jantar Real -
Penúltimo Capítulo
O jantar real não poderia ser mais esplêndido e requintado, as cozinheiras realmente deram o melhor de si na preparação dos pratos dessa noite. O rei e a rainha desfrutavam de uma diversidade de alimentos que faziam seus olhos arregalarem-se. Na verdade, dificilmente o nobre casal se mostraria surpreso com o que é que lhes fossem apresentados, mas para os olhos dos mais pobres, aquela mesa estava repleta de maravilhas de outro mundo.
A sala de jantar era um cômodo fechado e reservado unicamente à presença dos membros da corte e seus convidados. Uma lareira ornamentada fornecia a maior parte da luz por ali, as chamas crepitavam de forma muito audível. Havia também uma armadura vazia que decorava a parede nos fundos, uma armadura altiva e silenciosa. O tapete era formoso, macio e repleto de decorações florais. O ambiente daquela sala só não estava mais agradável do que o gosto da comida.
E que comida. As bandejas metálicas estavam espalhadas simetricamente pela mesa de madeira polida. Uma delas exibia um atrativo assado de cisne, carne pertencente unicamente aos nobres. Aves como cisnes e pavões jamais estariam no cardápio dos moradores da cidade, por menos pobres que eles fossem. Também tinha uma torta de pêssegos cozidos. Pela maciez das frutas, seu gosto deveria estar esplêndido. Ovos de codorna serviam de decoração ao redor das carnes e uma jarra de vinho tinto era o suficiente para satisfazer o casal real.
Mesmo que essa noite não fosse nenhuma em especial, os dois trajavam suas nobres vestes extravagantes, aquelas que agradavam seus olhos. Grival estava completamente branco, lembrava muito a lã das ovelhas. Sua longa roupa espalhava-se pelos pés da cadeira em que estava sentado. Havia pequenos detalhes dourados bordados em suas mangas e a parte frontal de seu peito. De fato, um deslumbre de traje.
A rainha permanecia sentada no lado oposto da mesa retangular. Ela saboreava requintadamente um pedaço da torta de pêssegos. Eline usava um vestido bege inclinado para o carmesim, também possuía detalhes dourados em forma de pequenas folhas e flores. Estava bela como sempre e sua tiara cintilava no meio de seu coque castanho.
O casal comia de forma silenciosa e monótona. Poucas vezes trocaram olhares ou palavras desde que sentaram-se na mesa. Grival cortava seu pedaço de carne com toda a atenção possível, comportava-se como se não houvesse mais ninguém por ali. E isso incomodava a rainha enormemente.
— Está quieto hoje — Eline quebrou o silêncio. — Há algum motivo para isso?
Grival não respondeu de imediato. Continuou cortando o peito de cisne provocando um incômodo ruído com seus talheres.
— Não é adequado falar enquanto se come. — Após isso, enfim levou a carne à sua boca.
— Hunf, sei.
Assim o silêncio caiu no ambiente mais uma vez. Eline estava visivelmente incomodada. Nem mesmo a comida lhe agradava mais. Tentou buscar outros meios de arrancar as palavras da boca do marido.
— Soube que aqueles cavaleiros deixaram a cidade hoje mais cedo — disse ela. — Imagino que eles ficaram descontentes pelo rei não ter ido se despedir em pessoa.
— Mandei minhas saudações à eles, por que eu deveria ter ido até lá? — Grival teve quase certeza de notar um ar de má intenção na fala da esposa.
— Ora, é tradição que os aliados de guerra se despessam com cumprimentos antes de partirem para a guerra.
— Eles não foram para guerra nenhuma. Será necessário negociar com Gandalar primeiro antes de marchar para Vordia.
— E você fala isso com toda a despreocupação...
O rei falava sem olhar diretamente para ela até então. Mas agora viu-se obrigado a encará-la diretamente.
— Se Gandalar se mostrar disposta, então nós lutaremos contra Vordia — o rei afirmou, o que acabou despertando uma reação ruim em Eline.
— Grival, nenhum tratado oficial foi assinado. Nenhuma promessa foi feita. Ainda há tempo para desfazer essa loucura!
— Você considera loucura a decisão de protegermos nossas terras?
— Não existe ameaça nenhuma, Grival. Valandir não está mobilizando um exército para nos atacar agora, como você pensa. Os três reinos estão em paz. Mas você está prestes a acabar com isso por causa da petulância de sua filha.
— Fenuella não me induziu a nada. Eu reconheço a necessidade de tomarmos uma posição. Se eu fosse um tolo, teria disponibilizado livremente meu exército aos cavaleiros para a guerra, mas estabeleci que só lutarei se Gandalar também lutar. Dois exércitos podem perfeitamente derrotar as defesas de Vordia.
— Hender não é um homem de confiança — Eline retrucou. — É um porco ganancioso e cruel. No momento que nossos homens deixarem a cidade, os gandalianos estarão em nossos portões prontos para nos entregar nas mãos de Valandir. Não pode esperar que aquele rei traiçoeiro venha a cumprir com sua palavra.
— Hender também deseja sobressair-se sobre Valandir. Nossa aliança será benéfica para ambos os reinos.
— Você perdeu todo o senso de realidade. Está acreditando em fantasias. Deseja tanto se vingar de Valandir que está aceitando assinar qualquer acordo que te apresentarem.
— Já tomei minha decisão. Asmabel lutará contra Vordia. — E voltou sua atenção para a saborosa refeição.
— Não seja estúpido! — Eline bateu seu talher na mesa. — Perderemos milhares de soldados nessa guerra! Não teremos defesas para resistir a um ataque direto à cidade! Toda a população seria massacrada!
— Já tomei minha decisão. — Foi a resposta que ele a deu.
Eline suspirou. A falta de consideração de seu marido em escutá-la lhe causava grande desgaste.
— Essa é a sua última palavra, Grival? Assumirá o legado de ser o responsável por levar Asmabel à outra derrota para os vordianos?
— Terei que assinar um decreto para você respeitar a minha autoridade?! — o rei exaltou-se. — Asmabel lutará contra Vordia. Assim diz o rei.
O homem tornou a concentrar-se em sua refeição. Eline assumiu que não havia mais nada que ela poderia dizer a fim de mudar a opinião do marido. Ele estava tomado por uma absurda convicção.
— Eledon. — A rainha direcionou o chamado à porta da sala de jantar.
A maçaneta ornamentada foi girada e um acanhado militar entrou, ele esforçava-se para causar o menor barulho possível. Grival virou-se em sua cadeira para ver a figura, estranhou o motivo daquele homem surgir em tal hora da noite.
— Saudações, Majestade — disse Eledon assumindo uma postura de guarda diante da mesa. Ele trajava um gibão castanho ao invés de uma armadura, levando em conta que ainda não havia sido investido comandante de forma oficial.
— Por que ele está aqui? — Grival indagou Eline. — O banquete da cerimônia de posse não é hoje.
— Eledon, a sua rainha lhe ordena que execute o rei.
Os dois, militar e monarca viraram-se para ela no outro lado da mesa. Grival franziu o cenho de incompreensão, assim como Eledon. O militar quase deu um passo para trás pela desagradável surpresa.
— Hunf, eu devo estar ficando surdo — Grival debochou.
— Desculpe-me, mas creio que não escutei direito, Majestade. — O homem mostrava-se desorientado.
— Você me escutou muito bem — disse a rainha. — Fez um juramento à mim, se lembra? Eu estou lhe dando uma ordem agora. Cumpra-a.
Eledon engoliu um seco.
— Mas...
— Jurou sua espada à ela? — Grival, ainda sentado em sua cadeira, virou-se para ele com enorme repúdio em seu rosto.
— Jurei, Majestade.
— Você é um militar ou uma dama de companhia? A lealdade do Comandante do Exército pertence unicamente ao rei, não à rainha. Por acaso não sabia disso quando cogitou disputar o seu cargo?
— Sabia, sim. — O homem parecia um cachorro cabisbaixo recebendo uma bronca de seu dono.
— Eledon, jurou pela sua honra me obedecer. Um líder militar que quebra a sua palavra não é digno de seu título. — Tomando uma postura contrária ao marido, Eline demonstrava cautela nas palavras direcionadas ao oficial.
Em seu momento de indecisão, o homem involuntariamente movimentou a mão direita para alcançar o punho da espada em sua bainha. Percebia-se que ele travava uma disputa moral dentro de si. Mas esse pequeno ato não passou despercebido aos olhos de Grival.
— Se ousar tocar no punho da espada, você será condenado e sentenciado à morte por traição — disse o rei.
— Se ousar tocar no punho da espada, você e sua esposa, seus filhos e seus netos serão recompensados com riquezas e honrarias até a última geração da sua família — disse a rainha.
O homem estremeceu. Seus olhos vagavam de uma lado para o outro e sua cabeça era atormentada por pensamentos duvidosos.
— Já estou farto disso. — Grival afastou sua cadeira da mesa e levantou-se com grande revolta. — Guardas! Venham aqui e levem este homem como prisioneiro!
Mas Eledon não permitiria que isso acontecesse. Através de seu puro instinto, ele puxou a espada da bainha e o aço silvou quando cortou o ar. Ninguém naquele lugar foi capaz de ver detalhadamente o momento em que a espada daquele homem perfurou e atravessou o estômago do rei ao seu lado. Grival arregalou os olhos e abriu sua boca enrugada. Alternou sua visão entre o ferimento em sua barriga e o rosto do assassino diante de si.
— Perdão, Majestade — Eledon sussurrou antes de puxar a lâmina de volta. Ele mal tinha a coragem de encarar os olhos aflitos de seu rei.
Grival apoiou-se na cadeira em que estava sentado e levou sua outra mão no corte que não parava de jorrar sangue. Eline ainda estava sentada na mesa, ela observava inexpressiva os passos cambaleantes e os engasgos dados pelo marido. Eledon afastou-se para não interferir nos últimos suspiros do rei. Seu rosto estava completamente suado e reluzia a luz das chamas na lareira. Ele estava ofegante e totalmente duvidoso. A mancha vermelha agora cobria todo o branco das vestes na barriga do rei. Ele não demorou em perder as forças dos braços e das pernas, caiu no tapete e continuou engasgando o sangue que escorria de sua boca.
Eline enfim se levantou e caminhou elegantemente até o corpo do monarca. Eledon não sabia se olhava para ela ou para o velho moribundo. Ela permaneceu parada diante do marido caído no chão lustroso, observava-o em silêncio como um abutre esperando pela morte de sua presa. Quando Grival parou de mexer os membros do corpo e suas pupilas se dilataram, ficou constatado que o rei estava morto.
— Que os Seres Aliais me perdoem por isso — Eledon suplicou ao vazio.
— Não se condene, você honrou sua palavra. Não há dignidade maior.
— Todos no castelo vão descobrir o que eu fiz.
— Não se preocupe, eu cuidarei para que a culpa da morte de Grival caia sobre outros. Agora preciso que me diga, você fez o que eu lhe pedi hoje mais cedo? — O homem aparentemente não a ouviu pois fitava o defunto no chão. Estava perturbado pelo seu recente ato. — Eledon!
— Perdão, Majestade. — Ele logo virou sua atenção para ela.
— A espada em sua mão, é a de Fenuella?
— Sim, eu a peguei nos aposentos da princesa quando ela não estava no castelo.
— Você tem certeza?
— Sim, eu a troquei por uma idêntica. Esta é a espada da princesa. Fiz isso mesmo sem saber para qual propósito seria.
— Ótimo. — Eline deu a volta pelo corpo de Grival e caminhou tranquilamente até a porta da sala de jantar. Quando a abriu, gritou pelos guardas mais próximos.
Cinco militares surgiram apressadamente no cômodo, estavam todos trajados com armaduras e espadas em punho, aparentemente esperavam encontrar a rainha em perigo ou algo do tipo. Mas a surpresa que tiveram não foi pequena. O rei havia sido assassinado.
— Vossa Majestade nos chamou? — indagou um deles.
— Eu acabei de chegar aqui e me deparei com essa cena terrível. O meu marido está morto. E o assassino está diante de vocês com a espada coberta de sangue.
Todos viraram-se para Eledon, e este estremeceu. Antes mesmo que tentasse proferir qualquer palavra em sua defesa, os cinco militares avançaram e lhe agarraram com uma tremenda selvageria. O homem tentou lutar, mas teve a espada derrubada e as pernas chutadas. Foi ajoelhado e enfim dominado.
— Levem-no para os calabouços e o executem nesta noite — a rainha ordenou. — Um regicida não pode ser mantido vivo.
— Majestade... — Quando o homem estava prestes a suplicar por misericórdia, um guarda deu-lhe um soco no estômago para calá-lo.
Dois soldados o seguraram, um em cada braço e começaram a levá-lo para fora da sala. Ele resistia, mas não possuía a força para deter aqueles homens. Foi escoltado por mais dois atrás e assim marcharam rumo aos calabouços.
— A senhora está bem, Majestade? — perguntou o guarda que restou na sala.
— Sim, eu estou bem, apesar de presenciar essa cena horrenda. Pegue a espada que ele usou para assassinar meu marido. — O homem virou-se para o chão e obedeceu a ordem, apanhou a arma e a analisou. A lâmina ainda pingava gotas de sangue. — Não a reconhece? É a espada da princesa Fenuella. Eu não tenho dúvidas disso.
O guarda foi incapaz de compreender o significado por trás daquilo.
— O que deverá ser feito, Majestade? — perguntou ele com um olhar atônito.
— Eu lhe direi detalhadamente o que deve ser feito. Preste bastante atenção.
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