- Mais Um Belo Dia em Asmabel -
O fresco vento da manhã tremulava seu manto marrom como se estivesse no topo de uma montanha. Os raios do sol que surgiam no leste aqueciam a madeira do pequeno balde em sua cabeça. Seus olhos castanhos estavam fixos no horizonte da verde planície coberta por capim úmido e a coragem que emanava de seu coração resplandecia em sua face.
Esbanjando confiança, ele segurou o cabo da espada de madeira em sua cintura e, ao puxá-la, ergueu-a para o céu e determinou sua vitória em um alto pronunciamento triunfal.
— Em nome da Ordem dos Cavaleiros, eu Devin, o Destemido, sentencio você, perversa criatura, a morrer pela lâmina da minha espada.
Segurando o punho de madeira com as duas mãos, cortou o ar com um único golpe e fez jus a sua declaração. No entanto, sua imaginação não foi suficiente para formar em detalhes a criatura que acabara de combater, mas foi capaz de lhe fazer sentir a satisfação de empunhar uma espada, colocar um elmo e vestir um manto.
— Devin! Vem aqui e me dê o balde!
Ao ouvir o chamado da irmã, o mundo fantástico do menino de apenas nove anos se desfez. Teve de se virar e abandonar sua espada de brinquedo na carroça para que atendesse ao chamado. Ao retirar o pequeno balde de madeira da cabeça, revelou cabelos castanhos ondulados que seguiam o vento para o oeste. Não perdeu tempo em se afastar da carroça e caminhar em direção à porteira do curral, sempre se desviando dos estercos espalhados pelo solo terroso para não sujar suas botas de couro.
Assim, ele logo chegou à porteira onde sua irmã ordenhava os vorgos.
— Brincando de novo com a toalha de nossa mãe? — perguntou Eurene sentada ao lado de um dos animais.
— Eu gosto dela, faz eu parecer um cavaleiro de verdade.
— Não existe cavaleiro de verdade com a sua altura, Devin.
A menina estendeu o braço para pegar o balde que ele trazia.
— Sua chata — proferiu o pequeno irmão.
Os vorgos não se incomodavam com a movimentação dos dois jovens dentro do curral. Poupavam-se em apenas mastigar o capim e observar com seus miúdos olhos negros o horizonte à frente.
Vorgos eram grandes animais cobertos por uma espessa camada de grossos pelos castanhos que estendiam-se para baixo, o pelo cobria todo seu corpo e parte de suas pernas curtas. Uma grande corcunda era notável em suas costas e grossas galhadas negras saíam de sua cabeça.
Devin nunca deixava de se incomodar com o fétido odor exalado pelo animal, mas poupava-se de reclamar pois todos os dias era sua responsabilidade ajudar a irmã a ordenhá-los. Mesmo tendo uma mente inocente, ele possuía a maturidade de evitar deixar as coisas mais desagradáveis por suas palavras.
Eurene mantinha-se sentada num banquinho ao lado do animal para tirar o leite das negras e rechonchudas tetas. A atividade nunca lhe agradou, mas sabia que era mais racional fazê-la do que deixá-la nas mãos de seu irmão que estava mais interessado em brincar com o toalha de sua mãe e a espada de brinquedo.
Ao fim da manhã, quatro baldes estavam cheios de leite e Devin era encarregado de levá-los e posicioná-los adequadamente na carroça. Eurene libertou os animais do curral, embora eles não apresentassem sinais de insatisfação, e guardou as varas e o banquinho que usou durante a atividade. Subiu na carroça ao lado de Devin e puxou as rédeas para que os burros seguissem pela estrada de terra rodeada por capim.
O pasto mantinha vinte e dois vorgos saudáveis, incluindo os filhotes. Embora os dois irmãos viessem todas as manhãs para ordenhá-los, os animais não pertenciam a seu pai nem a sua mãe, mas sim ao seu vizinho, o Senhor Borges. Todos os animais eram marcados no couro com um número que o identificava e cada família do vilarejo tinha a permissão de ordenhar determinado animal e desfrutar de seu leite mediante pagamento. As famílias que não conseguiam adquirir um vorgo com o Senhor Borges eram obrigadas a comprar litros de leite que os comerciantes traziam diariamente.
— Conseguimos quatro baldes cheios hoje — Eurene comentou. — Quero ver se nossa mãe não vai ficar satisfeita.
— É, mas não adianta muito se tudo vai virar pão para vender.
— Não é verdade. Nossa mãe não usa todo o leite para fazer os pães, ela sempre faz uns bolinhos para nós dois também.
— Acha que ela pode fazer hoje os bolos cobertos com mel?! — Devin demonstrou grande esperança em sua pergunta.
— Talvez ela faça, o pai também gosta muito dos bolos cobertos de mel, lembra?
— É o melhor bolo que existe.
— Quantos tipos de bolo você já comeu? Sete? Seis?
Não foi difícil para o menino responder.
— Tirando o bolo coberto de mel? Três, eu acho.
— Te garanto que existem bolos tão deliciosos quanto. A mãe já fez muitos bolos com sabores que eu nem sabia que existiam, principalmente com legumes e verduras.
— Eca. Não gosto de legumes e verduras.
Os dois burros cinzentos puxavam a carroça pela estreita estrada de terra e seguiam para fora do pasto. Ao atravessar a porteira aberta, viam-se à caminho do vilarejo em que moravam.
A estrada era de terra seca batida e a carroça balançava aos passos pesados dos burros. Mas como sempre, Devin certificou-se de encaixar os baldes nos encaixes de madeira construídos especialmente para impedir que eles virassem ou caíssem. O espesso leite balançava no interior do recipiente mas felizmente não chegava ao ponto de pular para fora.
À medida que avançavam, as casas tornavam-se maiores e logo eles passaram pela placa de madeira pregada num pau que anunciava a chegada ao humilde Vilarejo Erban.
As casas eram muito semelhantes entre si. Eram construídas de blocos de tijolos revestidos por uma lisa massa bege com a função de esconder os defeitos dos encaixes dos tijolos. Toras de madeira ajudavam a sustentar os andares superiores e segurar a cerâmica do telhado. Todas as casas possuíam dois andares e uma extensão para o lado direito ou esquerdo; estes vinham a ser a cozinha ou o banheiro. No telhado de cerâmica que geralmente era vermelha, erguia-se uma ou duas chaminés onde todas as casas liberavam a fumaça de suas lareiras e fornos.
As moradias eram alinhadas, fazendo com que o vão entre elas fossem ruas para a locomoção. Cerca de cinquenta casas e dez estabelecimentos formavam o vilarejo por completo e todas estavam na área delimitada por uma cerca de madeira que os separava dos pastos e das plantações de grãos ao redor. Um estreito rio corria à menos de três quilômetros ao norte da última casa e servia de abastecimento para os moradores que dependiam dos carroceiros que traziam vasos cheios de água todas as manhãs. Também havia um poço no centro do vilarejo mas os moradores por diversas vezes duvidavam da pureza de sua água.
Eurene e Devin passaram todo o percurso dialogando sobre as massas e sobremesas que eram especialidades de sua mãe. Mas no momento que passaram na frente da primeira casa, tiveram de parar para cumprimentar os gentis moradores que saíam de suas residências.
— Um ótimo dia, crianças — cumprimentou o bigodudo Senhor Medrin que saía para iniciar seu dia de trabalho nas plantações de trigo.
Os asmabelianos costumavam se gabar de serem o povo mais feliz de Aradus. De fato era difícil ter o azar de encontrar um asmabeliano ranzinza por natureza. Era necessário grande sofrimento para mudar de tal forma a personalidade de uma pessoa nativa do dito maravilhoso Reino de Asmabel.
Os moradores exibiam roupas com as mais diversas combinações de cores fazendo com que cada vestimenta fosse única. As mulheres eram mais contidas do que os homens no comportamento, caminhavam uma ao lado da outra carregando baldes e cestos. Sempre demonstravam gentileza e esbanjavam sorrisos alegres.
Por sua vez, os homens preservavam-se em cultivar delicados bigodes e barbas bem aparadas, somente os paletós exibiam cores vivas. Suas calças costumavam ser de cores escuras para não chamar atenção e todos usavam calçados fechados. Os mais velhos apoiavam-se em bengalas e alguns cobriam suas cabeças com pequenos chapéus de cores que combinassem com seus paletós. Estes contavam histórias entre si e, ao contrário das mulheres, riam em alto e bom som.
A carroça avançava curvando à direita e à esquerda, os irmãos cumprimentavam as senhoras que plantavam flores em seus quintais e os senhores que consertavam as cercas que demarcam sua propriedade. As casas distribuíam-se entre lojas e estabelecimentos que abasteciam as necessidades dos moradores. Cada estabelecimento levava o nome de seu proprietário na placa.
Embora todos os lugares por ali fossem de grande importância para o conforto na vida de Eurene e seu irmão Devin, nenhum se equiparava à importância da Padaria de Eugus, o estabelecimento de seus pais. Em seu trajeto para casa eles não passaram diante da padaria pois ela se encontrava à várias casas de distância, próximo à Residência do Senhor Erban, o governante do vilarejo.
Após alguns minutos balançando sobre as rodas da carroça, eles avistaram a fachada de sua casa. Eurene e Devin estavam na esperança de parar o veículo de tração em frente a cerca de casa e entrar com os baldes de leite, finalizando assim o trabalho desta manhã. Mas o que eles temiam estava prestes a acontecer.
Na casa ao lado, a enfadonha Senhora Molline estava ajoelhada e de costas para a rua enquanto cortava com uma tesoura algumas ervas insignificantes. Como sempre, estava vestida com seu clássico vestido rodado colorido em tons de roxo e amarelo e também usava um grande chapéu para poupá-la do sol da manhã.
Os irmãos não pararam. Se esforçaram em manter toda a atenção no caminho à diante mas era inevitável. Ao ouvir o som das rodas da charrete, a pressurosa Molline levantou-se em um pulo e gritou com sua aguda voz:
— Crianças!
Eurene imediatamente puxou as rédeas e parou a carroça.
— Bom dia, Senhora Molline — os irmãos cumprimentaram forçando um sorriso gentil.
— Ah, graças aos céus eu os encontrei. — A mulher puxou a saia rodada e aproximou-se de sua cerca em passos afastados para não pisar em suas flores. — Faz dois dias que estou tentando lhes entregar um pedido que a mãe de vocês me encomendou. Mas até hoje não os tinha visto pelas proximidades. Curioso pois esse lugar nem é tão grande.
Os irmãos se entreolharam buscando uma resposta apropriada.
— Nós... temos ajudado muito nossos pais nesses últimos dias.
— Ah, imagino que sim. Sem dúvida Eugus deve estar louco para retornar ao ofício de padeiro. Deve estar sendo terrível para ele ficar dentro de um quarto sozinho com o pé enfermo. Vocês, duas pequenas crianças tendo que fazer todo o trabalho pesado durante esses dias, isso não está certo. Mas digam-me, Nirene continua fazendo os bolinhos mesmo não tendo onde vendê-los?
Por algum motivo Eurene não estranhou a curiosidade da vizinha. De certa forma ela já esperava que em algum momento eminente Molline procuraria saber sobre os movimentos de sua mãe. Especialmente agora que seu pai se encontrava adoentado.
— Sim... ela ainda faz alguns para nosso próprio consumo.
A mulher fitou os irmãos por alguns segundos com seus olhos curiosos, avaliando a resposta lhe dada. Estes, por sua vez, não se esforçaram em dar continuidade ao assunto pois estavam apressados demais para sair da presença da vizinha.
— Ah, quase me esqueci. — Molline inclinou-se e pegou um pequeno cesto no degrau que dava acesso à porta de sua casa. — Sua mãe me pediu algumas ervas para cuidar da enfermidade de seu pai — Devin esticou o braço para pegar o cesto. — Aí tem folhas de moleira, galhos de enduto e flores de manticoria.
— Han... obrigada.
— E diga a ela que não se preocupe com o pagamento, sei que ela deve estar muito ocupada cuidando do marido e limpando a casa todo santo dia. Ah, acreditem em mim, eu sei o que é isso. Já tive que passar dias extremamente atarefada quando meu querido marido Esmonde sofreu um terrível acidente enquanto consertava a fachada de nossa loja. Na verdade não foi um acidente muito grave mas o deixou incapacitado de trabalhar por quase quarenta dias...
Essa era sempre a pior parte para os irmãos. Molline não podia terminar um diálogo sem contar algumas das infelicidades de sua confortável vida no vilarejo. Felizmente a história não se prolongou e na primeira oportunidade Eurene se despediu e puxou as rédeas para que os burros seguissem em frente.
A tagarelice não era o único motivo responsável por fazer os dois irmãos evitarem a presença da vizinha, por diversas vezes Eurene já fora desafortunada com sugestões de um possível relacionamento com o único filho de Molline. Albrian era um rapaz franzino e tímido que vez ou outra era dito como a melhor opção para uma bela moça como Eurene se casar. Embora fosse socialmente forçada a manter uma compostura afável quando era necessário dar-lhes uma resposta à maldita sugestão, Eurene nunca sequer cogitou tal possibilidade.
Seguindo adiante e evitando outra parada desagradável, os irmãos logo chegaram à humilde casa em que moravam.
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