- As Melhores Intenções -
— Mãe! Ele está acordando!
Adilan viu-se obrigado a abrir os olhos perante a exaltação de Talion. O rapaz ainda estava tonto, sentia náuseas e o teto parecia estar à poucos centímetros de sua cabeça. Ao firmar a visão, viu que tudo se tratava de uma ilusão.
— Por que está em cima de mim, bobão? — murmurou Adilan ao sentir o odor de suor característico de seu irmão.
— Ah, graças aos céus! — Laurelia jogou Talion para o lado com um brusco empurrão e sentou-se na beira da cama.
— O que... o que aconteceu, mãe? Por que a minha cabeça está doendo tanto?
— Ah, querido. Não sabe como eu estou feliz por você ter acordado. — A mulher esbanjava sua felicidade em um amigável sorriso.
Laurelia não demonstrava surpresa pelo despertar de seu filho, como se no fundo ela já tivesse a certeza de que ele logo acordaria.
— O que aconteceu comigo? O que aconteceu com a gente?
— Ele não se lembra de nada mesmo, mãe.
— Eu já esperava.
Adilan olhava para os dois em busca de respostas.
— Você puxou briga com um vagabundo lá na taverna do Gordel — disse Talion. — Ele te bateu e você ficou desacordado por dias.
Adilan revirou os olhos.
— Eu me lembro de... ele ter batido minha cabeça numa mesa. E depois chutou meu estômago quando eu estava no chão.
— Não tente se lembrar dessas coisas horríveis, querido. Tudo o que aconteceu não importa mais.
— A minha cabeça... — Adilan levou a mão na testa e por tateá-la descobriu haver uma cicatriz vertical indicando a fechadura de um grande ferimento.
— Não se preocupe, não há mais nenhum ferimento no seu corpo. Você foi curado — disse Laurelia.
— Curado por quem?
— Um andor maluco que a gente conheceu quando chegamos aqui — respondeu Talion.
— O Senhor Idarcio foi muito bondoso conosco para você chamá-lo assim, Talion. — A mulher lhe deu um olhar de reprimenda.
— Bondoso, é? Imagino o que nos será cobrado para pagarmos esse grande favor a esse andor — comentou Adilan.
— Nada será cobrado. Ele nos garantiu.
— Pois é, a gente deu muita sorte — Talion escorou-se na cômoda ao lado da cama. — Adivinha aonde nós estamos agora, irmãozinho?
Adilan observou o lugar ao seu redor. Viu que tratava-se de um quarto com o dobro do tamanho de onde ele estava acostumado a dormir dentro daquele moinho. Além de duas camas grandes visivelmente confortáveis. Através da janela aberta ele pôde ver um céu rosado atravessado por raios solares amarelos pertencentes às comuns tardes daquele reino.
— Estamos na Cidade de Asmabel?
Talion mostrou-se surpreso.
— Como você...
— Vocês conseguiram me carregar até aqui desacordado?
— Acho que é um milagre você ter sobrevivido toda essa viagem, meu querido — disse Laurelia. — Mas nós não chegamos aqui sozinhos, fomos ajudados por um grupo de quatro cavaleiros.
— E por que eles quiseram nos ajudar?
— Eu me faço essa mesma pergunta. Só pode ter sido uma benção dos Seres Aliais que aqueles homens tenham chegado justamente quando nós mais precisaríamos. Eles nos ajudaram na taverna e pediram que eu os acompanhasse para trazer você até aqui. Pelo visto, ainda existem homens bons nesse mundo.
— Eu me lembro de ter servido cerveja na mesa deles. Eram quatro homens de preto com espadas na cintura. Um deles era grande e grosseiro.
— O Borbon? — deduziu Talion. — Ele pode ser grosseiro sim, mas ele também é legal. Todos são, na minha opinião.
— Quando você os ver, quero que seja gentil e agradeça por tudo o que fizeram por nós. — Laurelia segurou a mão do rapaz.
— Eu sei ser gentil, mãe. Quem não sabe é o Talion.
— Olhe só, mãe. Ele mal acordou e já tá fazendo gracinhas.
— Eu menti?
— Não sou eu quem tem problemas em conversar com as pessoas, irmão.
— Ah, cale-se.
— Parem com essa implicância, vocês dois — Ela direcionou um olhar severo para ambos. — Olhem, eu acho que a Senhora Emelia vai me pedir para comprar alguns utensílios para a cozinha lá embaixo.
— Quem é Senhora Emelia?
— Minha nova patroa e a dona dessa estalagem. Ela permitiu que nós três dormíssemos aqui nesse quarto por uns meses até conseguirmos comprar uma casa decente. Eu vou trabalhar no restaurante da estalagem para pagarmos nossa estadia.
— Quem diria que logo quando chegássemos aqui já teríamos um lugar para ficar. Eu achava que nós iríamos morar nas ruas — comentou Talion.
— Também pensei a mesma coisa. Eu nunca esperei que as coisas mudariam na nossa vida de um jeito tão rápido. Ontem nós morávamos em um moinho velho, hoje nós estamos em uma estalagem na cidade do reino. Só pode ser um milagre.
— Já vi que nossa mãe vai fazer muitas orações para agradecer aos Seres Aliais — murmurou Adilan.
— Se for preciso, farei. Bom, acho que você deve estar cansado de ficar deitado nessa cama. Tem uma cidade inteira lá fora esperando para você conhecê-la. Talion, eu vou descer agora e quero que você passe o resto do dia ajudando Adilan no que ele precisar.
— Não preciso da ajuda dele, posso andar sozinho — afirmou Adilan prontamente.
— É, você pode. Mas também pode cair por aí e se machucar. Por isso, seu irmão vai ficar com você o resto do dia até você estar completamente bem. Até mais, querido.
Após um beijo na testa do filho, Laurelia sorriu para ambos e saiu pela porta do quarto. Um silêncio pairou pelo cômodo. Adilan direcionou sua visão para Talion que permanecia apoiado num móvel com os braços cruzados.
— E aí? — iniciou Talion. — Você vai querer sair lá para fora ou ficar aqui no quarto até anoitecer?
— É claro que eu vou sair. — O rapaz apoiou-se na cabeceira e começou a se levantar. Talion fez menção de lhe ajudar mas este recusou.
Adilan ainda dava passos errôneos e sua visão lhe pregava peças, como se estivesse pisando em um chão pouco sólido ou pouco real. Ele foi até o banheiro e fechou a porta. Viu que havia um espelho sobre uma pia de pedra e pôs-se a observar-se. Tudo estava igual ao que era antes exceto por horríveis olheiras, lábios rachados e uma cicatriz vertical em sua testa. Levou sua mão ao local e tentou imaginar a proporção da ferida que estava ali aberta algumas horas atrás. Apesar de estar mais feio, nada lhe preocupou, afinal a vaidade não era uma de suas virtudes. Tirou sua camisa amarela de mangas compridas e percebeu o quanto estava magro, de fato a viagem até a cidade havia lhe custado muito. Após tirar as calças sujas, sentou-se na banheira e começou a se limpar com uma barra de sabão.
Logo após o banho, Adilan lembrou-se do único bem que ele possuía, seu diário. Ele vestiu-se e procurou por seu cinto nas gavetas da cômoda onde acabou por encontrar o precioso objeto, cobriu o diário com a capa de couro e o prendeu na lateral de seu cinto.
— Já? — Talion aguardava o irmão terminar de se vestir.
Quando enfim julgou estar pronto, Adilan saiu pela porta e Talion o seguiu a fim de observá-lo e garantir sua segurança. O irmão mostrou-se muito paciente em esperar que Adilan descesse lentamente cada degrau da escada que levava ao andar inferior. Um passo de cada vez. Ambos desceram e seguiram para fora da estalagem que encontrava-se vazia.
O som do combate entre as lâminas ressoava por toda aquela viela. Apenas alguns civis passavam pelas redondezas e não aparentavam incômodo com a livre demonstração de habilidades entre os dois cavaleiros. Diante do resto de seus companheiros, Borbon e Roren travavam um árduo duelo como se suas vidas dependessem da vitória.
Eurene permanecia em pé com os braços cruzados observando cada movimento que os duelistas executavam. Devin estava ao seu lado e não continha sua exaltação por estar presenciando uma luta de verdade pelos cavaleiros que ele tanto admirava. Idarcio havia pegado um caixote para sentar-se e permanecia comendo uma rosquinha adocicada enquanto Filo dormia em seus pés. Adamor observava com seriedade e apoiava sua mão no punho de sua espada, provavelmente analisava em silêncio os passos de seus seguidores. Já Mercel, por sua vez, estava sentado e parecia desinteressado no que acontecia em sua frente.
O duelo se mantinha em um ritmo frenético, Roren rodopiava com a espada em sua mão e desviava dos golpes com impressionante agilidade. Borbon era mais lento, mas sua maestria com a lâmina lhe garantia uma boa defesa de qualquer ataque que vinha em sua direção, sua força era perceptível em cada choque das duas espadas. Houve uma pausa, Roren afastou-se e largou a arma a fim de recuperar o fôlego.
— Foi me dito que você, Borbon, era um dos cavaleiros mais valentes dessa terra. Não é o que meus olhos estão vendo! — comentou Idarcio em um tom de deboche.
— Não atrapalhe, andor! Logo você vai se calar pela minha vitória — esbravejou Borbon bebendo um gole de um cantil.
Quando Adilan e Talion chegaram no local, os dois duelistas voltaram a se enfrentar. Adilan olhou para o lado e viu todos os presentes concentrados em observar o espetáculo.
— Por que aqueles dois estão tentando se matar? — ele murmurou para o irmão.
Os ouvidos atentos de Idarcio perceberam a inesperada presença.
— Ah, mas vejam quem está nos presenteando com sua vinda! Se não é o corajoso Adilan e seu irmão Talion!
— Han... quem é esse, Talion?
— Esse é o...
— Permita que eu me apresente, me chamo Idarcio e sou um andor — Ele fez uma reverência. — Um andor andarilho, na verdade. Este aqui ao meu lado é o Filo e ele também está contente em finalmente conhecê-lo. Não é mesmo, Filo?
O animal levantou-se e ergueu as peludas orelhas olhando para o rapaz. Adilan de imediato lembrou-se do que sua mãe lhe dissera sobre a cura de seu ferimento.
— Han... por acaso foi você quem me curou?
— Ah, sim. Fui eu, sim.
— Eu gostaria de agradecê-lo por isso. Por ter... — Aparentemente, Adilan encontrava uma leve dificuldade em proferir as palavras. — Salvado minha vida.
— Ah, não há necessidade de agradecer. Estou contente que tudo deu certo e que esteja bem. É como eu costumo dizer, boas ações costumam trazer boas recompensas.
— Sim... eu espero que você receba uma grande recompensa pelo o que fez por mim.
— É... eu também espero. — Por um momento, Idarcio pareceu esquecer que estava rodeado por pessoas e afundou em pensamentos profundos que desfizeram o sorriso em sua face.
— Ah, que bom que finalmente despertou, corajoso Adilan. — Adamor aproximou-se de ambos com um sorriso satisfeito no rosto.
— Han... obrigado. Você seria?
O cavaleiro suspirou amigavelmente.
— Sou Adamor, líder dos Cavaleiros Irmãos.
— É um prazer conhecê-lo, Adamor. – Ele estendeu a mão para cumprimentar o homem.
— Creio que já nos conhecemos há bastante tempo, rapaz. O ato que você tomou de defender sua mãe naquela taverna foi muito admirável. Laurelia se orgulha de ter vocês dois como filhos.
— É, eu acho que sim. — Adilan olhou de soslaio para o irmão.
— Mas vejam só! Se não é o corajoso Adilan! — disse Borbon aproximando-se ofegante com um cantil na mão.
— Borbon, não é? Me lembro de você lá na taverna. Han... vocês estão me chamando de corajoso mas com certeza qualquer filho faria o mesmo pela própria mãe.
— Nem todos, filho. Muitos teriam medo de enfrentar um cuzão igual aquele vagabundo lá. — Ele tomou um farto gole d'água do cantil.
— Bom, obrigado. Por terem dado uma surra naquele cara e por nos trazer até aqui. Talion me disse que você arrancou até um olho dele.
— Não foi nada de mais. São deveres de um cavaleiro, como o Adamor costuma dizer.
— Lamento, Talion — disse Roren guardando sua espada na bainha. — O dia não foi favorável para eu derrotar o Borbon hoje, por isso não poderei ser seu treinador por enquanto. Ah, olá, Adilan.
O rapaz apenas o cumprimentou com a cabeça. Talion estava prestes a argumentar mas foi interrompido.
— O dia não foi favorável? — debochou Borbon virando-se para o colega. — Pois espere sentado pelo dia que será bom para você me derrotar, Roren.
— Já que nenhum dos dois conquistou a vitória hoje, acredito que o mais adequado seria se ambos treinassem o rapaz — aconselhou Adamor. — Se assim ele quiser, é claro.
Os dois cavaleiros viraram-se para Talion.
— Sim, é claro que posso ser treinado pelos dois.
Tanto Borbon quanto Roren mostraram-se satisfeitos pela decisão do rapaz.
— Adamor — Eurene o chamou. — Você me disse que eu também aprenderia a usar uma espada.
— Sim, acho que Mercel está disposto a iniciar seu treinamento, Eurene.
Se tratando de uma pergunta ou não, Mercel imediatamente se levantou e pôs-se ao lado do líder.
— Vamos iniciar seu treinamento, Eurene — Ele afirmou olhando nos olhos da menina. — Mas antes de tudo precisamos encontrar uma espada adequada ao seu porte. Uma lâmina convencional apenas dificultará seu aprendizado.
— Tudo bem. E onde nós vamos encontrar uma espada assim?
— Em uma forja. Compraremos uma espada adequada para você.
— Ótimo, e quando nós vamos?
— Daqui alguns instantes. Eu preciso pegar minhas moedas no quarto da estalagem. Me espere aqui e nós iremos juntos procurar um bom ferreiro.
— Eu também posso ir?! — perguntou Devin alegremente.
— Pode sim, corajoso Devin. Aguardem o meu retorno, por favor.
Assim, o sereno homem afastou-se dos demais e caminhou em direção à entrada da estalagem.
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