- As Crianças Sem Rumo -
Tudo mudou, mas mudou para pior. Já havia se passado três dias desde a noite em que eles perderam tudo. Três dias de dor, de luto e de lamentos.
A última noite foi a única em que Eurene não se viu desmoronando em lágrimas. Já estava cansada de chorar por tudo que aconteceu, sendo que não havia como mudar o ocorrido. Mas ela poupava-se de chorar na presença de Devin. Quando as lembranças invadiam sua mente, ela se afastava de sua companhia e deixava as lágrimas escorrerem. Em sua mente ela acreditava possuir a obrigação de manter-se forte e firme, pelo menos na presença do menino. Pensava que, se ela sucumbisse ao desespero, o que seria de seu pequeno irmão? Devin era sua única companhia e o único que restou de sua família. Não poderia perdê-lo de forma alguma.
Em certos momentos, Eurene via-se pensando em como estava perdendo sua postura de uma garota dura e séria. Quando anoitecia, ambos buscavam por uma árvore em meio as proximidades para dormirem em suas grossas raízes. Quando acordava por qualquer barulho na noite, Eurene percebia que dormia abraçada ao menino. Não sabia dizer se ela inconscientemente envolvia seus braços no pequeno durante o sono, ou se era ele que se aproximava em busca de conforto.
A cada dia que o sol surgia, quando julgava ser a hora de continuar sua caminhada, ela se questionava se estava tomando o caminho certo para qualquer lugar que fosse.
Desde que se afastaram dos campos do Vilarejo Erban, os jovens irmãos viajavam hora montado no cavalo, hora a pé. Em momento algum do dia eles arriscavam se afastar da afluente do Rio Florin, o mesmo rio que abastecia seu antigo lar. Mesmo que não tivesse nenhuma certeza, Eurene tinha esperanças de que o rio os levasse até outro vilarejo que também aproveitava de suas águas. Além do mais, esse plano também servia de garantia que eles não viessem a morrer de sede.
Três dias vagando em passos lentos pelas pradarias de Asmabel causaram mudanças na aparência dos irmãos. Devin perdera notavelmente a maciez de suas rechonchudas bochechas. Quando Eurene o pegou para ajudá-lo a descer do cavalo, ela percebeu o quanto ele estava mais leve. Várias vezes ele avançava o caminho sem a camisa por conta do calor latejante, e os ossos de sua costela estavam notáveis à distância. Eurene lamentava em ver o irmão de tal modo.
Mas ela também sabia que sua aparência não era mais a mesma. Dias sem banho e um pente renderam-lhe um cabelo desgrenhado e desidratado com cachos quebradiços. Seu rosto exibia olheiras pelas poucas horas de sono e seus braços começavam a exibir uma fina musculatura por conta de sua molesta magreza.
Se por um lado a água nunca estava em falta, por outro era a fome que predominava. O único alimento que eles foram capazes de encontrar eram frutas, vezes boas vezes estragadas. Eurene perguntava-se o que seria deles se não houvesse árvores frutíferas em seu caminho. Decerto já estariam mortos.
Esta noite estava fresca e isso era algo a se agradecer. Eles avistaram um conjunto de árvores não muito longe da correnteza do rio e este seria o lugar mais adequado para passarem a noite. O solo estava repleto de folhas secas que caíram dos galhos e uma alta grama cercava os arredores. Eurene amarrou as rédeas do cavalo no tronco de uma árvore com abundância de capim nas raízes para que este não passasse fome.
Dormir a céu aberto por vezes causavam-lhes tremedeira pelos ventos frios da noite, um cobertor nunca fizera tanta falta. Na verdade, objetos insignificantes como uma simples lamparina tornaram-se infinitamente apreciáveis e importantes para os dois. Eurene sentou-se na raiz enquanto Devin se afastou alguns metros para procurar por alguma árvore que fornecesse frutos para se alimentarem. A menina pensou em juntar alguns gravetos para acender uma fogueira mas logo lembrou-se que não possuía uma pederneira ou fósforo para criar centelha. Dessa forma, os ventos gélidos teriam que ser suportados mais uma vez.
O silêncio das redondezas era tão presente que o movimento de uma folha era motivo de precaução para os dois. Eurene virava sua cabeça para os lados para averiguar se algo ou alguém se aproximava mas por vezes percebera que se tratava apenas dos passos pesados do cavalo.
Devin estava sentado na sua frente com as costas encostadas em uma das raízes. O menino havia encontrado uma goiabeira pelas proximidades e trouxera consigo quatro goiabas maduras, o suficiente para se manterem vivos por mais uma noite. Os dois mastigavam as frutas sentados perto um do outro mas não olhavam diretamente nos rostos. Eurene tinha seus pensamentos tomados por medos sobre as mais terríveis coisas que poderiam acontecer a eles dois.
— Eu estou com fome. — Devin quebrou o silêncio.
Ela virou seus olhos para ele embora a falta de luz não permitisse que sua face fosse bem visualizada.
— Eu também.
— A minha goiaba não está doce — disse Devin. — E tem um bicho nela.
— Pensei que você gostasse de bichos.
— É, mas não na minha goiaba.
Eurene continuou a mastigar sua fruta. Virou-se para os arredores escuros novamente.
— Vou procurar outra árvore com frutas.
— Não! — Ela gritou antes de ele se levantar por completo. — Não quero que você se afaste de novo.
— Mas não tem ninguém aqui. Ninguém vai me machucar.
— Se tiver alguém aqui que queira nos machucar, com certeza nós não estaríamos vendo ele. Assim como agora. Fique aqui. É perigoso andar por aí.
Devin sentou-se da forma como estava e tornou a mastigar sua goiaba. Ficou quieto por alguns segundos.
— Será que o papai ainda está escondido?
— Ahhh, será que você é tão infantil assim?! Nosso pai está morto, Devin. Nossa mãe também está morta. Todo mundo do vilarejo morreu. Consegue entender isso?!
O menino calou-se perante a exaltação da irmã. Abaixou a cabeça lentamente e olhou para sua goiaba.
— Eu... eu sei que aquele soldado matou a mamãe. Só que eu achei que o papai ainda podia estar bem em algum lugar.
— Só sobrou nós dois agora. Não pode se afastar de mim, Devin, senão sobrará apenas um.
— E para onde é que nós vamos?
— Eu não sei. Não sei nem aonde estamos.
— A mamãe disse para irmos para qualquer lugar longe do vilarejo.
— Sim, ela disse. E é isso que nós vamos fazer.
As horas passaram com uma lentidão estressante. A noite parecia nunca ter fim por terem que ficar parados olhando para a escuridão e ouvindo o barulho dos insetos. Dormiram no chão, e várias vezes Eurene despertava pelo mínimo ruído que ouvia.
Os dois seguiram a diante quando acordaram. Foram até a correnteza do rio e lavaram seus rostos com expressões sonolentas. Eurene também levou o cavalo para beber água e começou a caminhada apenas puxando-o pelas rédeas. A alvorada ainda mantinha ventos frios e o capim estava úmido. O céu de Asmabel exibia um tom rosado que aos poucos dava espaço ao azul claro. As pradarias que ambos atravessavam permitia que se deparassem com árvores e arbustos frutíferos o que os obrigava a fazer paradas para descansar do sol e comerem o máximo que conseguiam.
Mas para a sua surpresa, aconteceu o que eles aos poucos perdiam as esperanças de acontecer. Devin estava montado no cavalo e subia e descia a cada passo do animal no gramado. Quando olhou de relance para a frente, viu o que seria a ponta de uma torre branca com telhado vermelho.
— Ei, mana! — o menino chamou a irmã cabisbaixa que segurava as rédeas. — Acho que tem alguma coisa lá.
Após quatro dias vagando pelas pradarias do reino, enfim eles haviam chegado em algum lugar. Eurene mostrou-se aliviada mas não se exaltou em alegria pois sentiu receio sobre o tipo de pessoa que encontrariam por lá. Assim, Devin pediu para que ela montasse para que ambos cavalgassem logo até seu novo destino.
À medida que foram se aproximando, uma torre de andor muito semelhante a que havia no Vilarejo Erban revelou-se. Enquanto a outra torre possuía um aspecto humilde, esta era bela e simetricamente construída. Todas as construções eram mais formosas, os estabelecimentos estavam bem movimentados mesmo durante aquele fim de tarde e as casas eram maiores e mais donairosas.
A humildade que Eurene conhecia em seu vilarejo não existia ali. O aspecto básico das moradias era o mesmo das do Vilarejo Erban, dessa forma Eurene teve certeza que eles ainda estavam nas terras de Asmabel. Pensou em parar para pedir informações a alguém mas todas as pessoas que cruzavam seu caminho estavam apressadas e falantes. Vários senhores e senhoras que vestiam-se da mesma maneira que os moradores de seu antigo lar; carregavam cestos, baldes, enxadas, carrinhos de mão, tábuas de madeira entre outros objetos e ferramentas. Mesmo estando entre tantas pessoas, Eurene sentia-se sozinha. Aqueles rostos desconhecidos não lhe trazia nenhum conforto ou tranquilidade.
Mesmo com todas as semelhanças com o Vilarejo Erban, havia algo específico que o diferenciava. A primeira rua do local estava preenchida por uma feira de bancas dos vendedores que comercializavam seus produtos aos gritos. A existência daquela feira dava-se ao fato daquele ser o mais extenso vilarejo em todo o reino. Desta maneira, a rua estava repleta de senhoras que paravam sua caminhada para buscar algum condimento ou especiaria que os vendedores forneciam.
Os produtos eram os mais diversos, desde verduras a hortaliças, grãos a frutas, temperos a utensílios. Cada banca exibia cores diferentes como o vermelho reluzente das maçãs, ou o amarelo chamativo dos melões e em cada banca os vendedores convidavam os apressados moradores a provarem seus admiráveis produtos.
O esgueiro animal precisava ser rápido. O pé da banca não era alto e isso facilitava o seu trabalho. Ele subiu rapidamente na madeira quadrangular e quando chegou no topo, esticou a branca patinha, revelou suas finas garras e cravou-as em um grande pêssego. A fuga foi mais rápida do que a ida. O pequeno animal corria por baixo das bancas levando o pêssego nos dentes e desviava ligeiramente dos pés das estruturas de madeira.
Este era um animal pequeno possuindo a altura e comprimento semelhante a de um furão. Coberto por uma pelugem branca como a neve, possuía um longo rabo peludo que balançava como uma onda a cada pulo ligeiro que dava. Suas longas orelhas inclinavam-se para trás na corrida. Os olhos negros miúdos estavam atentos a qualquer movimento ameaçador e seu focinho redondo o ajudava a encontrar a localização de seu amigo e dono.
No fim daquela rua e ao lado da última banca, estava sentado no chão terroso um mendigo que estendia sua mão pedindo por esmolas.
— Uma esmola... uma esmola para um pobre coitado...
O homem possuía uma aparência jovem embora usasse trapos como vestes. Os fios de seu cabelo castanho o denunciava como um asmabeliano nato. Ao contrário dos demais mendigos, seu cabelo não estava longo nem desgrenhado, assim como sua barba que exibia um tamanho agradável aos olhos. Não havia sujeira visível em seu rosto de pele clara. Na verdade, estava bastante limpo para um pobre mendigo. Entretanto, o mesmo não poderia ser dito de suas roupas pois seus trapos exibiam buracos e rasgados.
As roupas que usava não se assemelhava às de nenhum outro morador naquele lugar. Elas eram de tecido marrom com mangas compridas e justas. Sobre suas roupas, uma longa capa escura aberta nos ombros estendia-se até seus pés e se espalhava pelo chão cobrindo assim suas pernas dobradas. Suas calças eram simples, com um cinto fino e duas bolsinhas ao lado. As botas eram pretas e apresentavam desgaste em sua estrutura. Além da aparência, havia algo que o diferenciava de todas as outras pessoas que passavam por aquela rua; em sua mão esquerda ele segurava um bastão preto pertencente aos andors.
O homem continuava a estender a mão clamando por esmolas. Em um momento de pausa, um benevolente senhor entregou uma moeda em sua mão.
— Só uma moeda? E ainda me disseram que esse é o vilarejo mais rico de Asmabel.
Enquanto queixava-se de sua falta de sorte, o pequeno animal aproximou-se dele e colocou as patas dianteiras em seu joelho para enfim lhe entregar a fruta que trazia consigo.
— Um pêssego?! Está ficando cada vez melhor na arte do roubo, Filo.
O animal fechou os olhos miúdos para desfrutar do cafuné que seu sorridente dono lhe fez na cabeça.
— Mas o que é aquilo ali? — Quando Filo virou-se para trás, o mendigo rapidamente molhou o pêssego com um cantil e o limpou para tirar os resquícios de saliva. — Ah, não. Não é nada de mais.
Assim, ele comeu metade da fruta e deu o restante para o amigo peludo se deliciar.
No outro lado daquela rua, os dois irmãos ainda avançavam em passos lentos pelas bancas. Eles desceram do cavalo e o puxaram pelas rédeas. Eurene ainda analisava toda a situação e ponderava o que seria melhor aos dois fazerem. A fome estava tomando seu estômago e sua mente. Pensamentos de furtos de comida nunca lhe pareceram tão atrativos. Mas por mais que pensasse nas formas a se fazer isso, as possíveis consequências também lhe importunavam.
— Será que esses senhores dariam uma dessas frutas? — perguntou Devin olhando para as coloridas bancas.
— Eu duvido muito, somos estranhos aqui. Vamos ter que pagar por comida.
— Você tem moedas?
— Não, Devin. Não tenho nenhuma moeda.
— Então vamos ter que pedir.
— Não, vamos ter que trabalhar para ganhar moedas.
— Ou a gente pode roubar.
Eurene virou-se para ele.
— Não somos ladrões.
— Então vamos trabalhar em quê?
— Eu não sei!
— Com licença, crianças.
Os dois logo tiveram sua atenção tomada pela figura que surgiu atrás deles. Um homem de meia idade e calças com suspensório aproximou-se acuradamente.
— Olá, eu estava andando por ali e vi que são estrangeiros.
— Sim, somos sim — Eurene respondeu com o olhar desconfiado.
— Bom, então eu suponho que não sabem de algumas leis que temos aqui no Vilarejo Cimonell. Meu nome é Ermundo, eu sou o dono do grande estábulo aqui do vilarejo.
— Prazer.
O homem esperou que os dois se apresentassem mas essa não parecia ser uma gentileza que Eurene estava disposta a fazer.
— Bom, acontece que existe uma lei aqui em Cimonell, sugerida por mim e aprovada pelo nosso governante, que diz que todo cavalo ou burro sem registro deve ficar no meu estábulo enquanto seu dono permanece no vilarejo.
— Ah, é? E o que você vai fazer com ele?
— Eu? Nada, oras. O cavalo não é meu para eu usá-lo.
Eurene pensou por alguns segundos. Olhou para o animal ao seu lado e chegou a uma incerta decisão.
— Se você der a ele comida e água, então acho que não tem problema.
— Muito bem. O primeiro pagamento já pode ser feito agora se vocês quiserem.
— Que pagamento?
— Como assim "que pagamento"? Os impostos cobrados pelo capim e pela água que eu o darei. Cada dia no meu estábulo lhes custará duas moedas.
— Mas nós não temos dinheiro.
— Então, eu ficarei com ele e vocês pagarão cinco moedas para pegá-lo de volta quando deixarem o vilarejo. Nenhum estrangeiro fica aqui por muito tempo mesmo.
— Então ele vai ficar com a gente. Eu mesma o darei comida e água.
— Você não entendeu o que eu te expliquei, menina? Vocês são estrangeiros. Seu cavalo vai ficar comigo até que vocês me paguem para pegá-lo de volta.
— Eu não vou te entregar meu cavalo.
— Então eu terei que pedir ao governante que mande os guardas do vilarejo tomá-lo de vocês.
Eurene definitivamente não esperava tal situação. O vilarejo em que morava nunca possuíra guardas e tampouco tal lei absurda. Devin estava apreensivo, colou-se na irmã como se esta fosse sua mãe. Não por medo, mas para saber o que ela diria para ambos fazerem. Correr? Pedir por ajuda? Ou entregar o animal? A apreensão que ali pairava tomava a atenção dos três que se desafiavam.
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