- As Baixas da Batalha -
As últimas horas foram as mais terríveis para Laurelia. Foi como um pesadelo que retornou para assombrá-la, ver novamente um de seus filhos prestes a encontrar a morte.
A correria foi intensa, Borbon adentrou a Estalagem de Emelia trazendo Talion em seus braços, subiu as escadas com a indecisão de apressar-se ou tomar os devidos cuidados. Quando ele chegou no quarto, depositou o rapaz desacordado sobre a cama e não pôde negar a impressão de que ele já estava sem vida. O grito de Laurelia veio com lágrimas e desespero, mas Adilan suplicou que ela não subisse até o quarto pois seus companheiros já apressavam-se em tomar os procedimentos necessários.
Todos consideravam a atuação de Idarcio imprescindível naquele momento, por isso ninguém o contestou ou indagou sobre qualquer atitude que ele tomaria. O andor pediu que algum dos cavaleiros lhe trouxesse uma barra de ferro quente para a cauterização do ferimento exposto. Roren, afirmando ser o mais rápido dentre seus companheiros, correu à procura de um ferreiro disposto a lhe emprestar ou vender a barra. E para a sua sorte, ele teve êxito na tarefa.
Idarcio já havia providenciado panos limpos e um balde de água, retirou o excesso de sangue do braço decepado e qualquer resquício de sujeira que havia ali. Quando lhe foi dado a barra de ferro extremamente quente por brasas, ele a aplicou no ferimento e torceu para que o rapaz não se contorcesse demais. Ele enfaixou o braço com um pano limpo para que ali não acumulasse insetos transportadores de enfermidades. Após a cauterização, Idarcio preparou numa cuia uma substância de ervas com efeito anestésico, tinha o costume de trazer algumas folhas na pequena bolsa em seu cinto. A substância pastosa era composta de ervas com efeitos soníferos, assim o rapaz não acordaria por um bom tempo. Teve que erguer a coluna de Talion para que ele engolisse o conteúdo, mas fez sem resmungar.
A tarefa estava concluída, e isso exigiu muito do conhecimento botânico de Idarcio. Ele estava exausto pela recente batalha, mas também satisfeito por ter concluído todo o procedimento sem muitas complicações.
— Depois de todo esse esforço, acho que preciso de um chá calmante, Filo — disse ele para o animalzinho peludo.
Dentro do quarto destinado à hospedagem de Roren e Mercel, os cavaleiros tentavam decidir o que fazer com o príncipe em seu poder. Os companheiros deram-se ao trabalho de retirar a espada do rapaz e trazer uma corda para amordaçá-lo, mas Finnan não cederia assim tão fácil perante seus captores. No entanto, para o seu azar, o menino não seria capaz de resistir a força de três cavaleiros adultos... sua própria armadura o atrapalhava em sua defesa.
Não demorou para que ele possa estivesse sentado no chão e amarrado ao pé da cama.
— Vocês vão se arrepender terrivelmente por isso. Guardem minhas palavras. — O menino exibia um olhar feroz para Borbon em sua frente, este terminava de dar os últimos nós nas pontas da corda. Pela pressão que Finnan sentia, via-se que aquela experiência não seria nem um pouco agradável. — Não sou um cachorro para ser amarrado numa cama!
— Não cansa de fazer ameaças, garoto? — indagou Roren. — Você vai ficar aqui, não adianta resmungar.
Roren e Mercel permaneciam diante da porta fechada do quarto, eles estavam de braços cruzados enquanto Borbon terminava de dar os últimos ajustes na mordaça improvisada.
— Deixa ele nos ameaçar, isso faz ele se sentir mais seguro. Não é, criança? — Borbon deu um ou dois tapas no rosto do menino sentado no chão. Finnan porém, o encarou com um terrível ódio estampado no rosto.
— Não o machuque, Borbon — Mercel o repreendeu. — Manter ele incólume é o mais correto a se fazer por enquanto.
— O que pretendem fazer comigo? — Finnan ergueu a cabeça para os cavaleiros.
— Algo que você vai adorar. Tem a ver com ossos retorcidos... — As palavras maldosas de Borbon causaram uma pequena, quase imperceptível, expressão de temor no rapaz.
— Borbon está tentando assustá-lo, não vamos te machucar — disse Mercel. — Um príncipe ferido não nos seria útil para nada. Nós o traremos água e comida durante o tempo que ficarmos aqui, depois decidiremos o que fazer com você.
— E para deixar claro, se você gritar por ajuda de alguém na estalagem, nós enfiaremos um pano na sua garganta — salientou Roren. — Então se comporte e todo mundo fica feliz.
Dito isso, Mercel virou-se e saiu pela porta. Roren lançou um olhar de desprezo no menino e logo seguiu os passos de Mercel. Borbon foi o último.
— Ei! — Finnan o chamou antes que ele deixasse o cômodo. — Eu quero ir no banheiro.
— Cague aí mesmo. — E assim fechou a porta, trancando-a em seguida.
No andar de baixo, o restante do grupo descansava e fazia o que lhe parecia mais adequado a se fazer. Laurelia rezava aos Seres Aliais pela vida de seu filho, ela sentou em uma mesa nos fundos do restaurante e por lá ficou rezando sozinha. Adilan ainda demonstrava certa dificuldade em acreditar no que havia acontecido, não apenas pelo estado de seu irmão, mas também pelo ocorrido em si, algo muito inesperado e surreal. Eurene e Devin estavam sentados um ao lado do outro numa mesa, a garota usava um pano molhado para limpar o corte na bochecha do menino. Porém, Devin estava tão coberto de sangue que um banho completo seria necessário. Eurene não estava muito diferente do irmão, seus braços e cabelo também exibiam aquela sujeira vermelha e mal cheirosa.
Em meio ao silêncio no local, os passos dos três cavaleiros descendo a escada ressoou em seus ouvidos.
— Amigos — Mercel dirigiu-se aos três jovens nas mesas. — Quero avisá-los que o príncipe de Vordia será mantido amordaçado no quarto usado por mim e Roren. Vocês não devem entrar lá para vê-lo ou ajudá-lo em nada, deixem que nós nos responsabilizamos por isso. Também quero pedí-los que não falem sobre isso com ninguém, nem mesmo com as mulheres que trabalham nesta estalagem.
Eurene e Adilan entreolharam-se, mas não havia o que contestar. Os dois juraram que não falariam no assunto com ninguém.
— Idarcio ainda está lá em cima? — perguntou Mercel.
— Sim, e minha mãe está ali no canto rezando — respondeu Adilan apontando para os fundos do restaurante.
— É o melhor a se fazer no momento, para os que têm fé nos Seres.
— Só pode ter sido uma intervenção divina mesmo, para eu ter saído viva da luta contra aquele soldado.— Eurene possuía calmaria em sua voz, um certo alívio por dizer aquilo.
— Você se saiu muito bem, Eurene — disse Mercel. — Não só sobreviveu como também derrotou seu oponente.
— Obrigada, mas não sinto nenhuma vontade de festejar minha vitória. O ambiente aqui está péssimo.
— Eu podia ter vencido ele se eu estivesse com uma espada — disse Devin com a cara fechada. Era notável seu incômodo por ter o rosto sendo cuidado pela irmã na frente de tantas pessoas.
— Não poderia, não — retrucou Eurene.
— Tem sorte de ainda estar vivo, Devin. Se não fosse um último esforço de Talion, você certamente estaria morto agora. — Eurene escutou as palavras que Mercel dirigiu ao menino e refletiu sobre elas. Por um momento, sua mente imaginou como estariam as coisas para Devin se não fosse a intervenção de Talion naquela hora desesperadora.
— É. Sei não. — O menino abaixou os olhos ignorando-o.
— Você precisa de um banho. — Eurene recolheu os panos sujos de sangue e os colocou em um balde. — E roupas limpas também.
— Você tá mais suja do que eu.
— Eu sei disso, por isso também vou tomar um banho.
— Vocês vão descer aqui hoje mais uma vez? — perguntou Mercel.
— Eu acho que não, estou cansada e meus braços estão doendo.
— Então nos vemos amanhã, Eurene. Tenha uma boa noite. E você também, Devin.
Assim os dois irmãos seguiram para subir a escada destinada ao andar superior, provavelmente não ousariam deixar o confortável quarto para dialogarem com mais alguém pelo resto daquela noite. Mercel puxou uma cadeira para sentar-se, retirou o cinto que continha sua espada e suspirou profundamente, era notável a sua exaustão. Borbon e Roren já haviam feito o mesmo desde que chegaram por ali.
— Você está bem? — Adilan indagou a Mercel, não podia deixar de perceber o quanto os três cavaleiros estavam pouco ativos naquela noite.
— É apenas o cansaço após uma luta difícil, Adilan. Mas obrigado por perguntar.
— Eu gostaria que eu estivesse lá para ter ajudado. Talvez poderia ter sido mais fácil de vencermos.
— Não diga bobagens, rapaz — disse Borbon espreguiçando-se na cadeira. — Você não sabe usar uma espada, já estaria morto se tivesse enfrentado um daqueles soldados.
— Teve sorte de não estar lá, Adilan — Mercel complementou. — Você escapou da morte uma vez, preserve a chance que lhe foi dada.
— Bom, talvez estejam certos. Não, obviamente estão certos. — Ele suspirou e abaixou a cabeça, seu rosto transmitia um tristonho desânimo. — Mas isso não faz eu me sentir menos inútil.
— Ninguém aqui é um inútil, Adilan — Roren apressou-se em dizer. — Você pode não saber usar uma espada e nem dominar artes de combate, mas é bom em... — Pela sua demora em proferir as palavras, tornou-se claro a dificuldade que levava para vasculhar sua mente. — Em saber das coisas. Você entende das coisas, de como tudo funciona.
— E isso foi útil até agora para quê? Para nada.
Os três cavaleiros entreolharam-se. Roren encolheu os ombros deixando claro que seus argumentos de convencimento já estavam esgotados.
— Eu não sei dizer se você poderá ter alguma atuação importante nessa cidade depois de nos separarmos, Adilan — Mercel virou-se para ele. — Mas Borbon, Roren e eu acreditamos que quanto mais espadas tivermos ao nosso lado, melhor será; assim como Adamor acreditava. Você é muito bem-vindo para nos acompanhar na nossa jornada, se estiver disposto a aprender a manusear uma espada.
— Hmm, não creio que eu serei capaz de me tornar um bom espadachim um dia. Mas sim, eu gostaria de aprender a usar uma espada.
— Ótimo, sinta-se como um membro dos Cavaleiros Irmãos agora, se é que isso lhe faz alguma diferença.
— Faz, sim. — Ele abriu um sorriso para os companheiros ao seu redor. — Por um momento eu imaginei que vocês deixariam de lado o nome Cavaleiros Irmãos.
— Ué, por que pensou isso? — questionou Roren com evidente curiosidade.
— Bom, agora que o Adamor não está mais aqui, vocês são um grupo só de três, o que se torna um trio. Além do mais, quem será o líder?
A questão que Adilan trouxe incomodou grandemente os companheiros. Mas não de uma forma impertinente, e sim de uma forma preocupante.
O momento tomado pela reflexão foi interrompido pelo barulho de uma charrete que aproximava-se da entrada da estalagem. Cavalos relincharam e uma porta rangeu ao ser aberta. Os quatro que estavam no restaurante puseram-se de pé quando dois guardas entraram no estabelecimento e se posicionaram nas paredes. Um arauto magricelo surgiu em seguida e anunciou em voz alta:
— Todos saúdem o nome de Sua Majestade, o Rei Grival de Asmabel, Protetor do Reino, Chefe da Coroa...
— Ah, cale-se, sua gralha — Fenuella o interrompeu após surgir na porta. — Eu disse que não era para nos anunciar.
Os cavaleiros mostraram-se curiosos com o aparecimento da princesa, afinal fazia poucas horas que ela os tinha deixado para retornar ao Castelo da Corte. Mas nenhum deles estava mais contente de vê-la do que Adilan, ele foi incapaz de conter o sorriso em seu rosto.
— Não esperávamos que viria até nós mais uma vez hoje, princesa — disse Mercel demonstrando respeito.
— É, nem eu. Mas eu não vim sozinha, trouxe uma pessoa que eu acredito que vocês gostariam de conversar.
E eis que o Rei Grival pôs os seus pés reais no chão da estalagem. Talvez o lugar não poderia ser considerado digno da presença de um rei, mas isso não teria importância agora.
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